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Literatura: Lugares e homens da guerra colonial em Moçambique "contados" em livro

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Literatura: Lugares e homens da guerra colonial em Moçambique "contados" em livro

** Raul M. Marques, da Agência Lusa **

Lisboa, 27 Set (Lusa) - A guerra colonial "tomou de assalto" a edição livreira : os títulos, novos ou antigos, sucedem-se a uma cadência talvez sem paralelo nos mais de 30 anos passados desde a independência das colónias de Portugal em África.

São romances, contos, poemas, diários, memórias com a assinatura de ex-combatentes já conhecidos como escritores - Manuel Alegre, Cristóvão de Aguiar, António Vieira -, conhecidos de outras áreas - Beja Santos (direitos do consumidor) - ou estreantes nas Letras, António Brito. Apenas cinco entre dezenas de nomes.

Mas há um outro modo - mais discreto - de falar da guerra. É o que vem praticando Manuel Pedro Dias, 65 anos, nascido em Alagoa, Portalegre, furriel miliciano de Infantaria em Moçambique entre 1966 e 1968.

Talvez um dia também ele escreva um romance - admitiu essa possibilidade à Lusa. Para já, a opção foi outra: deixar registados em livro os lugares de Moçambique onde companhias e batalhões se instalaram para «fazer a guerra».

Conta como se instalaram, qual era o enquadramento operacional, como se vivia, que dificuldades e carências enfrentavam, que incidentes marcavam os dias.

Fotografias desses lugares, desses homens e das máquinas ao seu serviço - nem sempre intactas - não faltam a completar o retrato que o texto dá.

Para o texto e as fotos, Pedro Dias procurou onde sabia poder encontrar atendimento - na memória, em cartas, em «álbuns no sótão» de antigos combatentes, em instituições do estado. No Arquivo Histórico Militar, sobretudo.

Passou tardes inteiras no Arquivo consultando documentação, tirando notas, fotocopiando. Ligou e atendeu milhares de vezes o telefone. Viajou vezes sem conta para longe de Odivelas, onde reside, para contactar antigos combatentes.

Por exemplo - contou à Lusa - «para o livro sobre os aquartelamentos em Cabo delgado, fiz 500 contactos telefónicos ou mais. E depois havia sempre alguém que me dizia: 'Gostava de falar consigo'. Eu perguntava: 'Onde é que mora?'. 'Em Alhos Vedros'. 'Está bem, vou aí ter consigo'. E ia. Todas as despesas por minha conta, naturalmente».

Recorda agora que todos os ex-militares que contactou, da sua companhia e de outras, o receberam bem, «sempre de braços abertos». E todos se mostraram disponíveis para lhe dar informações, papéis antigos, cartas, fotografias...

Em rigor, não todos. «Quase todos». Os que se recusaram, poucos, apoiavam a ideia dele, sim, mas...voltar a ouvir falar da guerra, ele que desculpasse, não, nunca mais. Assunto encerrado.

Foram para Pedro Dias anos de trabalho, de paciência, de persistência. Ao fim desse tempo tinha juntado material para três livros, que publicou, espaçadamente, e a expensas próprias, em edição de autor, sobre os aquartelamentos de Moçambique nos distritos de Niassa (2002), Cabo Delgado (2006) e Tete (2008), nos anos da guerra, 1964-74.

No livro sobre os aquartelamentos do Niassa está, entre muitas dezenas de outras, a história possível da sua companhia e do Batalhão de Caçadores 1891 a que pertencia.

A sua história pessoal, a história do furriel Pedro Dias, pode ser que um dia se decida a contá-la, à mistura com as de outros ex-combatentes que consiga recolher em telefonemas, em viagens, em trocas de correspondência, em papéis velhos, em «álbuns no sótão»...

Hoje, bancário reformado, está convencido de que valeu a pena o esforço da escrita. A destes livros e não só.

É que, entretanto, deu à estampa outros três livros - em edição de autor, sempre: «Moçambique, Memórias de um combatente», «38 anos depois Moçambique reencontrado por um combatente», e«Moçambique terra de magia» (em parceria com Eurico Lage Cardoso e com prefácio de Marcelo Rebelo de Sousa).

Mais ainda, uma vez por ano, durante 13 anos consecutivos, produziu, praticamente «a solo», uma revista, «O Batalhão», dirigida essencialmente aos seus camaradas de armas.

Precisamente este ano lançou o último número da revista, desligou-se do projecto. Por nenhuma razão especial, assegura. Simplesmente, porque tudo tem o seu tempo.

Já em preparação tem o último volume da série sobre Aquartelamentos. Lá aparecerão registados os que, ao tempo da guerra, havia em Manica e Sofala, Zambézia, distrito de Moçambique, Inhambane, Gaza e Lourenço Marques.

«Como são poucos, ficam todos num livro. E fica o trabalho completo, nos mesmos moldes», diz.

A parte maior da obra está feita. Pedro Dias encara-a como «um legado», não espera compensações. Esteve, por sinal, há poucos anos, prestes a conseguir uma - sob a forma de uma medalha, atribuição proposta por um brigadeiro.

Mas qualquer coisa falhou no processo, não percebeu bem o quê. A verdade é que não recebeu medalha nenhuma.

O tom do que deixou escrito não é de exaltação, e tão-pouco de nostalgia, de denúncia ou de lástima. Pedro Dias quis ser objectivo, preciso, quis contar, «mostrar as coisas como foram», simplesmente isso.

Mas de uma coisa está certo - e sabe que muitos, muitos mais, também assim pensam e sentem: a guerra marcou todos quantos a fizeram.

Síntese perfeita dessa marca fê-la o poeta e ex-combatente Fernando Assis Pacheco (1937-2005) no livro «Catalabanza Quilolo e volta»: « (...) Dizem que a guerra passa: esta minha passou-me para os ossos e não sai».


Lusa/fim​
 
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