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"A Minha Guerra"

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“Fui castigado com cinco dias de detenção”

A Minha Guerra

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No Pelundo, com o irmão Arménio, o amigo Rodrigo Borges (ainda hoje amigos e companheiros de caça),a ‘mascote’ Mussá Seidi e outro camarada, em Julho de 1972

Discordei de uma ordem mal dada por um oficial e cheguei a vias de facto. castigaram-me fazendo honras a Spínola – e senti-me honrado

Guardo na memória uma operação na região de Badã, na Guiné, a 4 de Março de 1972. Ao tomarmos de assalto um acampamento que, supostamente, seria depósito de armamento com destino à zona do Churo, já durante a acção de busca e recolha - e quando já estávamos a preparar toda a segurança para a retirada -, somos atacados, do outro lado, por tiros de Kalashnikov, lança-granadas, foguetes e morteiros. Do confronto resultaram dez feridos. Felizmente saí ileso. Valeu-nos a intervenção do apoio aéreo, quer na evacuação dos feridos - altura em que sofremos nova flagelação -, quer no que respeita a conter a acção inimiga no regresso ao aquartelamento, para que as repercussões não tivessem sido maiores.

ESCAPEI À EMBOSCADA

Tinha chegado à Guiné a 28 de Dezembro de 1971, para substituir um furriel miliciano falecido numa emboscada quando se preparava para vir de férias à Metrópole. Nunca confirmei este facto, pois entretanto fui requisitado para Jolmete, tendo assim ficado mais perto do meu irmão Arménio - também ele mobilizado um ano antes para este teatro de guerra.

Foi precisamente perto do aquartelamento de Jolmete que, a 20 de Abril de 1970, teve lugar o assassinato dos três majores e do alferes que estariam a negociar o fim das hostilidades no Chão Manjaco. Após o regresso do Batalhão à Metrópole, por ter terminado a comissão, sou colocado no Depósito de Adidos em Brá, onde permaneci mais um ano.

Para além do serviço na Secção de Justiça, como escrivão, tinha também periodicamente a missão de fazer de sargento de dia à Casa de Reclusão Militar. Um dia, no render da guarda, tinham desaparecido 12 reclusos, que, entretanto, estranhamente voltaram. Outro dia, desapareceram mais cinco. E voltaram a aparecer. Nunca cheguei a saber por onde os presos fugiam. Só sei que saíam para ir ao Pilão, a Bissau (às ‘meninas'). A partir desse dia combinei com um dos presos para fazer uma ‘escala de saída', com a condição de todos estarem presentes ao render da guarda. Nunca mais me faltou nenhum recluso.

Quando eu já estava a escassos três meses de acabar a minha comissão, por ter discordado de uma ordem mal dada por um oficial - o que mais tarde viria a ser confirmado - e, depois de ter chegado a vias de facto, fui castigado com cinco dias de detenção. Foi-me dito, na altura , pelo então comandante do Depósito de Adidos, que eu tinha razão, "mas que a democracia ainda não tinha chegado à tropa" e que a ordem de um superior, mesmo mal dada, era para ser sempre cumprida. Fui ainda castigado com a missão de fazer a guarda de honra ao general Spínola, na sua última deslocação a este aquartelamento - o que para mim foi uma honra.

Lembro-me que no final de 1973 era já grande a tensão que se vivia. Também me recordo de Bissau começar a ser cercada de arame farpado e da colocação de minas nalgumas zonas da periferia. Avisaram-nos, na mesma altura, da possibilidade de podermos sofrer um ataque aéreo. E tudo isto ditava que o fim estava próximo.

Regressei a Portugal no dia 22 de Dezembro de 1973, com 24 meses de comissão. Não posso considerar que a minha passagem pela Guiné tenha sido das piores. Passei por bons e maus momentos. E durante a guerra fiz amizades que perduram até aos dias de hoje, como é o caso do Rodrigo Borges, meu companheiro da caça há muitos anos.

PERFIL

Nome: Augusto Silva Santos

Comissão: Guiné (1971/73)

Força: B. Caç. 3833/C. Caç. 3306 e Depósito de Adidos/Brá

Actualidade: Vive em Almada, 60 anos, empresário reformado, casado, com duas filhas e uma neta
Por: Augusto Silva Santos, Guiné (1971/1973)​
 

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“Camarada afogado marcou comissão”

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Com conterrâneos e uma mascote, em Santo António do Zaire (sou o segundo à esq.)

Tivemos mais quatro mortes em acidentes de viação e outro num acidente com arma de fogo. Não registámos nenhuma baixa em combate.

A morte do escriturário Coelho, afogado numa praia perto de Santo António do Zaire, em dia de folga da companhia, foi o dia mais marcante da minha comissão de serviço, de dois anos, em Angola.

Natural de Monte Gordo, cedo aprendi a nadar. Pescador até ir para a tropa, sentia-me como um peixe na água. Deixar morrer um camarada, afogado, perto de mim, custou-me muito e ainda hoje não compreendi como tal foi possível.

Como era exímio nadador, estava com mais dois algarvios, ao largo, a nadar. Até parecia que estava nas cálidas águas de Monte Gordo. No final, quando regressávamos à margem, um camarada disse-nos que estava a sentir algo a bater-lhe nas pernas. Ajudamo-lo a puxar e, horrorizados, constatámos que era o corpo, sem vida, do soldado Coelho. Tinha-se afogado mesmo junto a nós. Foi um choque terrível.

Outros dias tristes de uma comissão que recordo com grande saudade foram as mortes, em acidentes de viação, de quatro soldados.

Mas a sexta baixa do Batalhão verificou-se num acidente caricato. Uma coluna deslocava-se na picada, numa patrulha de rotina. Subitamente, um soldado gritou, alertando para o facto de ter visto uma galinhola. O sargento fazia-se sempre acompanhar de uma caçadeira para estas eventualidades e, de pronto, mandou parar a viatura. Passou a arma, pronta a disparar, ao soldado e deu-lhe ordem de perseguição ao animal. O soldado – já não me lembro o seu nome – de imediato, de arma em punho, saltou da viatura, caindo numa vala, que não vira. Na queda, a arma disparou-se e atingiu-o. Teve morte imediata.

LONGE DO INIMIGO

Seis mortes num Batalhão que praticamente não deu um tiro em combate. Até parecia que o inimigo tinha medo de nós. Mandavam-nos para uma ‘zona de porrada’ e, logo que lá chegávamos, acabava a guer- ra. Saíamos de lá e voltava a haver barulho. Só agora percebi que a férrea disciplina imposta pelo tenente coronel Orlando da Silva Andrade e pelo capitão Eugénio Fernandes, que tanto criticávamos na altura, esteve na base deste sossego. O inimigo ‘cheirava’ a ‘bandalhice’ à distância e não atacava quem respeitava os procedimentos de segurança.

Praticamente sem guerra, o pior da minha comissão foi a falta de água e de alguma comida, na zona de Tomboco, Ambrizete e Santo António do Zaire.Na época da seca, tínhamos que ir aos charcos dos animais buscar água, que desinfectávamos. Não havia água para tomar banho e o pó da picada era retirado com um pincel. Como não havia electricidade, cerveja e refrigerantes só mornos. Um sacrifício que custou a passar.

Mas a época da chuva não era melhor. É certo que havia água para os banhos, mas, em contrapartida, as viaturas ficavam atoladas, o que nos dava um trabalhão para as desatolar.

Em 24 de Maio de 1969 deu--se o regresso do Batalhão a Portugal. Chegámos ao Regimento de Infantaria 16 em Évora, unidade mobilizadora, onde a família nos esperava com grande ansiedade.

Foi grande a alegria, vermos os nossos entes queridos e regressar ao meu Algarve. No entanto, confesso que hoje tenho saudades de Angola, que considero a minha segunda Pátria e onde gostaria de voltar, em férias, para recordar os bons e maus momentos ali vividos.

PERFIL

Nome: António Manuel Martins

Comissão: Angola (1967/69)

Actualidade: Aos 64 anos, é funcionário da Conserveira Ramires. Casado, tem dois filhos e quatro netos. Reside em Monte Gordo
Por: António Manuel Martins, Angola (1967-1969)​
 

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“Perdi a virgindade do fogo em Canjadude”

A minha guerra

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Vi lindas lavadeiras nuas, vi um povo e uma terra diferentes mas na minha memória vivem mais o fogo e a morte de um amigo meu

A 24 de Maio 1969, por volta do meio-dia, deixava o porto de Lisboa no ‘N/M Niassa', rumo à Guiné, como rendição individual. Lembro-me de ver familiares e amigos no cais. Choravam. Cada um expressava o desgosto com o sentimento de um gesto diferenciado. Interroguei-me: ‘será acertado empenhar-me na defesa da Pátria e da Bandeira? Têm razão os que desertam, como fizeram alguns lá da minha terra?' Confuso, olhava os rostos das pessoas que gostavam de mim.

Segui viagem. No aquartelamento dos Adidos, no dia 3 de Junho de 1969, informaram-me que tinha sido colocado na CCAÇ.5, uma companhia de africanos - os Gatos Pretos. Os da Metrópole eram pouco mais de 20. Estávamos todos sediados em Canjadude - Sector Leste - Nova Lamego.
Lavadeiras desnudas

Cheguei ao porto de Pidjiguiti em Bissau e só desembarquei dia 30. Levaram-me para o DGA, onde, logo que cheguei, quis o acaso que encontrasse um amigo. Tínhamos estudado juntos. Nesse dia deixei Bissau, estrada do rio Geba, rumo a Bambadinca numa LDG, onde iam militares e civis como sardinha em lata. Além da massa humana, havia muita mercadoria. Os civis carregavam de tudo: alfaias agrícolas, alimentos, pilões, gaiolas com galinhas e pintos, todo o tipo de animais - que confusão! - até cabras iam... Lembro-me das lavadeiras, mulheres agradáveis de se ver, algumas nuas. Uma delas, mais atrevida, vendo o nosso olhar aveludado de concupiscência, dirigiu-se assim ao meu amigo: ‘ bu mamé é p*, sinon bu cá tinha nascido'. [‘A tua mãe é p*, se não tu não tinhas nascido.']
A Canjadude, cheguei a dia 13 de Junho de 1969, na parte da tarde. Após o jantar, comunicaram-me que no dia seguinte, às 07h00, devia estar pronto para alinhar na operação a nível de companhia, ao Cheche. De transmissões iam o Silva, o Carvalho, que era o mais velho de transmissões, e eu, o mais novo, que para me familiarizar acompanharia o Carvalho.

Era norma que o ‘periquito chegado' pagasse umas cervejas aos camaradas da secção. Não fugi à regra. Mas não chegava. Estavam todos concertados. Queriam, amigavelmente, infernizar-me a vida. Às tantas, um deles sai-se com esta: ‘tu chegaste hoje, dia 13, sexta-feira, e amanhã vais logo para o Cheche, onde há quatro meses perderam a vida perto de meia centena de militares [na realidade foram 47]. Isto não é uma colónia de férias, para vires com gira-discos na bagagem. Isto aqui é a guerra, amigo! Não vais ter vida facilitada. Os graduados não são flor que se cheire'.

Debaixo de fogo

Eram 22h48 do dia 11 de Julho de 1969 quando se precipitou inusitado ribombar. Quando ouvi o primeiro estrondo quis-me convencer que fosse um trovão, mas em milésimos de segundo acordei para a realidade - era o meu baptismo de fogo. Perdia a virgindade no flagelo ao Aquartelamento de Canjadude. Saltei da cama para o chão, da parte superior do beliche, para tentar encontrar uma G3 - ainda não tinha arma distribuída. Nestas décimas de segundo o gerador de energia eléctrica foi-se abaixo e ficou tudo às escuras. Corro de mãos vazias pelo abrigo, saio e meto-me numa das valas. Cá fora, os rebentamentos eram constantes. Um ruído sibilino cruzava em todas as direcções. Estava amedrontado, confesso.

O pior momento da minha guerra foi durante o mês de Agosto de 1970. Perderam a vida dois camaradas, um dos quais o enfermeiro Dinis - meu amigo.
Regressei à Metrópole no dia 2 de Julho de 1971, no navio ‘Angra do Heroísmo'.

Comissão
Guiné (1969/71)

Força
Companhia de Caçadores nº 5

Actualidade
Em situação de pré-reforma; Casado;Tem três filhos e dois netosCorrigir
Por: José Manuel Silva Corceiro (depoimento recolhido por Maria Inês Almeida)​
 

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“Fui atingido a tiro na coxa. Tinha 19 anos”

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Momento de pausa, durante uma refeição, com os camaradas pára-quedistas fuzileiros, os ‘parafusos’, no início de 99 dias de guerrilha.

Fiz a guerra duas vezes. Fui a atingido e voltei. Mas guardo também o adeus sentido da minha madrinha, depois companheira pela vida fora.

A chegada a Luanda foi a 30 de Setembro de 1963, depois de longos nove dias de viagem, marcados por um episódio que retrata a força que os homens podem ter. Houve um levantamento de rancho dos embarcados da Marinha. Éramos, quanto muito, quatro por cento do total dos militares embarcados. Mas a decisão estava tomada. No terceiro almoço da viagem, ninguém entre a marujada comeu.

Entre os Fuzileiros, não havia ninguém obrigado. Íamos de vontade para o Ultramar. Assim foi comigo, duas vezes. Na minha primeira comissão, a chegada a Luanda foi feita com enorme expectativa. Lembro-me da aproximação ao porto de Luanda e da minha sensação de bem-estar que fazia esquecer a aproximação da guerra.

Os primeiros dois meses foram de adaptação ao clima, com treinos intensivos. Depois demos um ‘salto’ ao Zaire e regressámos a Luanda para substituir outro Destacamento. Esta substituição trouxe-nos uma operação em que o grau de dificuldade residia na enorme falta de água – um cantil para dois dias e duas noites. Num charco, onde boiavam esqueletos de animais, procurou-se mitigar a sede.

Caí na primeira emboscada, na região dos Dembos, mata, a 28 de Maio de 1964. Tinha acabado de fazer 19 anos. Fui atingido por um tiro. Andava a passo lento pela picada, quando senti na coxa esquerda, um choque, depois o som do tiro seguido de rajadas. Era o primeiro fuzileiro ferido em combate na província de Angola.

MADRINHA

Na saída para a minha segunda comissão, quando o ‘Niassa’ navegava em direcção à barra, a estibordo vi um grande pano branco; desfraldado parecia que acenava. Era só para mim. Era a minha Madrinha de Guerra da primeira comissão, minha companheira depois pela vida.

O regresso da primeira estada na guerra teve início em Luanda, a 23 de Outubro, com chegada a Lisboa a 02 de Novembro de 1965, 25 meses depois de ter partido. A segunda etapa da minha guerra mediou entre o dia 08 de Junho de 1966 e 05 de Agosto de 1968, o que perfaz 47 meses em África. Tempo que hoje, apenas nos dá direito, a não sermos respeitados por aprendizes de feiticeiros, gente que não teve, não tem, respeito pelos ex-combatentes que tudo deram e nada pediram.

MARIA, UM DOS ‘NAMORICOS’

Quando as saudades de casa apertam e a memória dos que lá deixámos nos consome os dias, encontramos alegria e consolo em perfeitos desconhecidos. Os laços de amizade que a vida nos põe diante dos olhos dificilmente desaparece, mesmo quarenta anos depois do momento retratado nesta fotografia. Os namoricos, aqui representados pela Maria, foram passageiros, mas a amizade jamais perecerá.

PERFIL

Nome: Mário H. Manso

Comissão: Angola (1963/65 e 1966/68)

Actualidade: 65 anos, reformado. É casado e tem uma filha
Por: Mário H. Manso, Angola (1963-1965 e 1966-1968)​
 

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Na guerra, os sobressaltos eram constantes

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A chegada da companhia à zona de Tomboco

Ainda hoje lembro as palavras do capitão Eugénio Fernandes, que dizia constantemente: “atenção! o perigo está sempre à espreita”

Embarcámos em Lisboa a 18 de Fevereiro de 1967, no paquete ‘Vera Cruz’, e chegámos a Luanda no dia 27 do mesmo mês, data que nunca esquecerei. Ainda estávamos a formar batalhão, no campo militar de Santa Margarida, quando se ouviu comentar: "vamos para a Guiné ou Angola?".

As ordens superiores eram de desembarque no cais em Luanda e o destino era o campo militar do Grafanil. Quando cheguei ao campo militar pensei em milhões de coisas: na família, nos amigos, no que é que me poderia acontecer… fiquei realmente muito emocionado ao ver tanta gente, uns a chegar, outros a partir para a Metrópole.

Passámos por algumas zonas consideradas de guerra, locais onde os cruzamentos eram bastante perigosos, e que faziam ligação com a picada que seguia para Bessa Monteiro, até chegarmos a Tomboco.

Quando lá chegámos, toda a população nos saudou. Fiquei muito emocionado ao ver imensa gente nas sanzalas a precisar da ajuda e segurança dos militares. Muitos camaradas diziam que eu era um privilegiado pelo lugar que ocupava, era 1º cabo amanuense, mas não era fácil a tarefa de secretário. Pela função que desempenhava e pela zona onde me encontrava, a guerra passou-me um pouco ao lado, mas os sobressaltos eram constantes. Fiz parte de saídas em colunas militares, para irmos fazer reconhecimentos, buscar materiais e produtos alimentares, ao passar por zonas de risco. Ainda hoje lembro as palavras do capitão Eugénio Fernandes, que dizia constantemente: "atenção! O perigo está sempre à espreita!".

Os conselhos nunca eram demais. A grande experiência e disciplina dos nossos superiores evitaram outros acontecimentos, mas mesmo assim faleceram alguns camaradas em acidentes, um deles era colega do meu curso. Esse camarada morreu afogado e o que me causa mais tristeza é que também eu estava a nadar mas quando cheguei ao sítio onde ele se encontrava, já tinha falecido.

ZONA DE GUERRA

Cheguei ao cais de Alcântara, Lisboa, no dia 3 de Junho de 1969. Foram quase dois anos e meio em Angola. Quando partimos de Luanda para a Metrópole, apenas deixámos para trás a terra – Angola. Porque nunca na vida vamos esquecer aqueles dias e os seus acontecimentos tão marcantes. Ainda hoje o Batalhão de Caçadores 1903 recorda esse tempo quando nos juntamos, de dois em dois anos, para confraternização nos almoços que se fazem.

Para mim, o dia mais marcante foi a mudança de aquartelamento de Tomboco para Santo António do Zaire, nos primeiros dias de 1968, na zona fronteiriça com o Congo Belga. Recordo-me que estávamos há poucos dias em Tomboco, em grupo na parada do aquartelamento, quando caíram três granadas perto de nós. Felizmente a pessoa não deveria ter muita experiência porque elas caíram com as cavilhas postas. Nada aconteceu, foi só o susto.

Para além das funções da minha especialidade de 1º cabo amanuense, praticava um pouco de desporto, futebol de 11 e futebol de 5 (salão), uma maneira de ajudar a passar o tempo. Ajudava os meus camaradas, na messe de oficiais, o cozinheiro Custódio e também os auxiliares. Existia um verdadeiro espírito de companheirismo, união e também preocupação entre todos. A moral desta história, uma das que tirei, é que de facto existia uma verdadeira relação de irmãos entre os companheiros mais próximos, tal como uma família.

PERFIL

Nome: Júlio de Brito

Comissão: Guiné (1967/1969)

Força: Batalhão de Caçadores 1903

Actualidade: Assistente administrativo de 1ª de contabilidade. Casado, tem dois filhos e uma neta

Por:Júlio de Brito, Guiné (1967/1969)​
 

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Estive 22 vezes debaixo de fogo

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Em Jolmete, a fazer pose para a fotografia antes de recolher os materiais para construção de abrigos. O material é pesado e iam muitos para empurrar

Entregues a nós próprios, começámos a fazer a nossa guerra. Evitámos flagelações ao quartel mas as emboscadas no mato eram constantes.

Embarquei para a Guiné a 7 de Maio de 1969, no paquete ‘Niassa’, onde cheguei a dia 12 do mesmo mês. Fomos informados pelo governador e comandante-chefe, sr. general Spínola, que a responsabilidade da nossa Companhia iria ser muito grande, pois íamos substituir uma das melhores Companhias Operacionais da Guiné (a acção psicológica já a funcionar).

Chegámos na altura da transição do tempo seco para a época das chuvas. A nível operacional, nos dez dias de sobreposição de companhias, tudo correu bem. Saíamos em patrulhamentos com os grupos de combate da companhia cessante, mas não íamos para zonas perigosas. O interesse da 2366 era passar o testemunho da melhor maneira possível, sem correr grandes riscos, pois a ‘peluda’ estava próxima.

No dia em que a Companhia cessante se foi embora começaram os nossos problemas, com dois mortos e vários feridos – não em combate, mas por acidente com arma de fogo. Ao chegarmos ao quartel, depois da operação de segurança e protecção à coluna auto que levou a 2366 para o Pelundo, o soldado que transportava a bazuca, ao retirar a granada da arma, talvez por deficiência da mola ou por descuido, ela caiu pelo tubo, explodindo ao tocar no chão. Este foi o primeiro contacto com a triste realidade das mortes e evacuações.

A partir deste dia, entregues a nós próprios, começámos a fazer a nossa guerra. Saídas diárias evitaram flagelações ao quartel, que nunca tivemos, todavia as emboscadas no mato eram constantes. Em 21 meses de mato a Companhia esteve 28 vezes debaixo de fogo, e eu com o meu grupo de combate estive 22. Lembro como se fosse hoje a primeira emboscada a sério em que caímos. Foi a 22 de Julho de 1969. Tivemos dois mortos e vários feridos por tiro de RPG 2 e respectivos estilhaços.

HOMENAGEM

Tenho o dever de salientar o contributo dos soldados africanos do Pelotão de Caçadores Nativos nº 59, comandado inicialmente pelo colega alferes Mosca, e pela secção de milícias, comandada pelo chefe da milícia, o célebre ‘Dandi’, mais tarde promovido a capitão de milícia pelo sr. General Spínola. O ‘Dandi’ conhecia como ninguém todos os recantos da mata. Bom guerrilheiro, muito nos ajudou a evitar cair em emboscadas, abrindo trilhos novos na mata. Quando saíamos para o mato com ele, ninguém tinha medo, por mais difícil que fosse a missão. Mais tarde fez parte do rol dos fuzilados.

O dia que mais me marcou, e que o fez profundamente, foi a morte dos oficiais do CAOP, os três majores e do meu colega alferes Mosca (além dos outros três nativos) no dia 20 de Abril de 1970, em prol da paz e do entendimento dos povos do ‘Chão Manjaco’. Perdemos ali, de uma só vez, um conjunto de oficiais único e inigualável. As tréguas que existiam acabaram nesse dia. Nos meses que se seguiram até ao fim de 1970 tivemos uma actividade operacional muito intensa. Felizmente sem baixas.

Embarcámos no ‘Uíge’ a 26 de Fevereiro, tendo chegado ao cais de Alcântara em 2 de Março de 1971. Era costume o sr. General Spínola convidar para um jantar de despedida com bate-papo os comandantes de Companhia (capitães) e um dos alferes de cada companhia antes do embarque de regresso. O sr. General fez questão de convidar todos os alferes além do capitão, como recompensa pela actividade desenvolvida. Nessa altura já o sr. general dizia que a Guiné não tinha solução pela guerra. Manifestava ideias que mais tarde veio a publicar no seu livro ‘Portugal e o Futuro’.

PERFIL

Nome: Manuel Resende

Comissão: Guiné (1969/1971)

Força: Companhia de Caçadores 2585

Actualidade: 63 anos, reformado. Casado, com uma filha
Por:Manuel Resende, Guiné (1969-1971​
 

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Eram secretos e gravados pelo Spínola

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Parada militar em Tavira, 1970, onde Jorge Ganhão fez a instrução militar

Estive nas informações. Tinha 20 anos. Foi no quartel de Amura. Nas minhas mãos tive documentos secretos. Falei com militares de Abril

Fui mobilizado, como furriel miliciano, para a Guiné-Bissau no cumprimento de uma comissão militar, entre 13 de Julho de 1970 e 18 de Agosto de 1972. Viajei no barco ‘Alfredo da Silva’. Tinha 20 anos, estava a entrar num continente que desconhecia, numa província ultramarina tida como o pior ‘teatro’ de guerrilha e, para agravar, com o pior clima.

Encaminharam-me para a minha nova morada nas instalações para sargentos no quartel-general, que eram dois quartos, cada um com quatro camas. Pensei: ‘Eu não vou ficar aqui!’ Falei com um colega açoreano de quem me tornei amigo, o Jorge do Nascimento Medeiros Cabral, que infelizmente nos deixou este ano, e um mês depois já estávamos a viver no centro de Bissau. Primeiro, num anexo e depois numa vivenda alugada a uma família cabo-verdiana.

Fomos colocados no quartel de Amura – eu, na repartição de Informações, o Cabral na repartição de Operações, cujo chefe militar era o tenente-coronel Firmino Miguel.

Foi neste aquartelamento que convivi de perto com os chamados militares de Abril – major Fabião, capitão Otelo Saraiva de Carvalho, major Almeida Bruno, general Spínola e outros.

Em 1970, com 20 anos, entrei no centro de uma guerra colonial e com a responsabilidade de contactar com todo o tipo de documentos, confidenciais e secretos. Tornei-me tradutor das Agências Internacionais de Informação (Reuters, France Press, Argélia Press Service, etc.). Transcrevia documentos do general Spínola para a Defesa Nacional, que me eram enviados do Palácio do Governador e entregues pessoalmente pelo chefe da minha repartição, o major Beja da Costa. Tinham a classificação de secretos e eram gravados pelo próprio Spínola em fita magnética.

CANTIGAS DA GUERRA

Já na Metrópole tinha tido uma actividade amadora nas cantigas. Por isso, foi fácil arranjar colegas, alguns já profissionais, para formar um grupo musical. Dele faziam parte, além de mim (cantor principal e viola), o Salvado, o Vítor Raposeiro, o Dany Silva, o Carlos ‘Brasileiro’, o Vítor Barros, o Luís Alberto Bettencourt e outros que apareciam de vez em quando.

Eu, o Luís Bettencourt e o Jorge Cabral fizemos até um programa de rádio (‘Dimensão 3’) transmitido pela Emissora Nacional nas suas instalações de Bissau. Cantei com o Bettencourt para os nossos militares que estavam no ‘mato’, através dos microfones do PFA (Programa das Forças Armadas), onde eram militares/locutores o João Paulo Diniz e o Armando Carvalheda.

Estive ainda como cantor com os músicos – o Vilas Boas, o Salvado, o Jorge e o Carlos ‘Brasileiro’ – na única boîte de Bissau, o Gato Negro.

Foi na minha comissão militar que aconteceu o célebre ataque à Guiné-Conakry. Acontecimento ainda hoje controverso e mal explicado. Li o relatório oficial que foi dactilografado pelo meu amigo Jorge Cabral. O que li e depois o que confirmei com fuzileiros e outros militares que fizeram parte daquele histórico acontecimento foram suficientes para afirmar que o que tem sido contado é apenas parte da verdade.

Voltei para a Metrópole no dia 18 de Agosto de 1972. Aprendi a gostar daquele povo, bom e generoso. Guardo ainda alguns aerogramas e cartas do meu camarada amigo guineense, condecorado com uma Cruz de Guerra, o soldado Luís Mãe de Água.

PERFIL

Nome: Jorge Ganhão

Comissão: Guiné-Bissau (1970/72)

Força: Repartição de Informações

Actualidade: Compositor e intérprete. Tem quatro CD gravados. É músico do Paco Bandeira há, aproximadamente, 15 anos
Por: Jorge Ganhão, Guiné-Bissau (1970-1972)​
 

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Voltei a Portugal no dia dos meus anos

A Minha Guerra

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O pelotão em formatura para seguir para operação de reconhecimento de oito dias no mato

Foi a melhor prenda da minha vida. A comissão foi feita com a força dos braços mas sem sangue e com saudades de uma certa miúda

Uma semana depois da morte da minha mãe, no dia 20 de Setembro de 1970, fui para França com o intuito de escapar à tropa. Mas as saudades do meu País e de uma certa miúda, de seu nome Maria Generosa, que viria a ser minha esposa, fizeram com que eu regressasse no final de 1971. Como já me devia ter apresentado, tive de requerer a anulação da nota de faltoso.

Em Agosto de 1972 assentei praça no RI 6, em Leiria, para fazer os testes psicotécnicos no curso de sargentos milicianos, que concluí com sucesso. Fui enviado para a Escola Prática de Cavalaria de Santarém onde fiz a recruta, para a Escola de Operações Especiais em Penude, Lamego – curso de Rangers – e depois para o campo militar de Santa Margarida para formar companhia e assim aguardar mobilização para o Ultramar.

Fui integrado na Companhia de Cavalaria 8453. Tinha prometido a mim mesmo que se fosse para o Ultramar não queria partir deixando compromissos para trás. Não queria ser estorvo para mulher nenhuma se me acontecesse alguma fatalidade. Inventei uma zanga, cortei relações, mas deixei um amigo alerta – ele devia manter-me informado. Um ano depois de estar em Angola recebi um aerograma dele – dizia que alguém andava a fazer a corte à minha Maria Generosa. Por isso, escrevi-lhe a dar notícias. Disse-lhe que estava bem, que estava tudo a correr bem.

OS DIAS DA COMISSÃO

Desembarcámos no aeroporto de Luanda. A viagem até ao Grafais, cerca de 15 km, foi feita em camiões militares, onde nos foi distribuído o material necessário à deslocação até ao Norte, onde assentámos arraiais no quartel da Manhosa. Tínhamos um outro aquartelamento, chamado Luvo, sob a nossa responsabilidade, que se situava a cerca de 8 km a norte, junto à fronteira da República do Zaire. Ali fazíamos a defesa com um pelotão em sistema rotativo. Tínhamos a ajuda de um pelotão de uma companhia vizinha que estava situada a cerca de 30 km.

Os nossos dias eram passados entre os trabalhos de manutenção das instalações e das valas de refúgio. O meu pelotão foi o primeiro a ser destacado para o Luvo. Recordo-me da primeira vez que saímos para ir buscar lenha – ficámos atolados com uma viatura berliet e tivemos de ali passar a noite, num acampamento improvisado. Quando a chuva parou, fomos barbaramente atacados por mosquitos.

Nunca nenhum de nós sofreu qualquer ferimento grave. O grande ‘sofrimento’ da minha comissão não tem sangue a lamentar. Tempos houve em que às nossas barrigas só chegava atum enlatado. A coluna de abastecimento de géneros secos, M.V.L. (Movimento de Viaturas Logístico), fora atacada por terroristas e em Luanda reorganizava-se.

Uma das nossas maiores alegrias era a chegada do correio, uma vez por semana. Quando não tínhamos correspondência era notório o desânimo. Por isso a importância das madrinhas de guerra – as suas palavras eram conforto em território distante. Mantive em permanência 14 madrinhas, que me respondiam regularmente.

A nossa vida militar integrava operações de reconhecimento periódicas que, por vezes, se estendiam até dez dias fora do quartel. A nossa missão terminou em Janeiro de 1975. Ainda fiquei em Angola mais alguns dias para enviar toda a bagagem da companhia. Nesse ano tive a melhor prenda de aniversário de sempre. Embarquei dia 8 de Fevereiro à 01h30 no Boeing 747, baptizado com o nome ‘Luís de Camões’. Voltava a Portugal no dia dos meus anos. Em Agosto casei com a mulher que deixara para trás, Maria Generosa.

PERFIL

Nome: Alfredo Marques Rodrigues

Comissão: Angola, 1973/75

Força: Forças Especiais

Actualidade:
59 anos e vive em Esmoriz. Tem dois filhos e dois netos. Foi mecânico de aviões e neste momento é industrial
Por: Alfredo Marques Rodrigues, Angola (1973-1975)​
 

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A bagagem tinha dois caixotes com 100 kg

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Recepção aos ‘piriquitos’ pelo comandante-chefe, general Spínola

Conheci a Guiné carregado com o sonho. Era furriel miliciano foto-cine e projectava filmes até para quem nunca tinha visto nada assim.

Estive no o C.T.I. Guiné como furriel miliciano Foto-Cine (Fotografia e Cinema), integrado no Destacamento de Fotografia e Cinema nº 3101, talvez o único naquele teatro de guerra composto, exclusivamente, por milicianos.

A viagem que me levou até à África Equatorial iniciou-se no aeroporto de Figo Maduro, em Lisboa, num dia chuvoso de Janeiro do já longínquo ano de 1972. Depois de oito horas de voo chegámos a Bissalanca, onde nos esperava muita ‘tropa macaca’.

SESSÕES DE CINEMA

Conheci todo o território da Guiné, terra tão castanha. Conheci muitos aquartelamentos e em cada um deles muitos mais camaradas. Ficava em média quatro dias num sítio. Tinha por missão projectar filmes para a tropa e para a população convidada pelo comando militar local. O dia era maior quando eu chegava; quando chegava o cinema. Lembro-me de gente embasbacada com a máquina de projecção. E eu, mestre daquele gingarelho, era uma espécie de feiticeiro, mágico, eu sei lá.

A minha guerra começou oito dias depois de ter chegado a África. Tinha então sido destacado para projectar filmes no sector de Bafatá, cidade no interior, a norte de Bissau. Apanhei a LDG [barco de carga] até ao Xime. Lá estava organizada uma coluna onde seguiam militares e passageiros para Bafatá. A minha bagagem era composta por dois caixotes com cerca de 100 quilos, que continham máquina de projectar, transformador de corrente, coluna de som, gambiarra com muitos metros, bobinas, etc.

Em Bafatá, o comandante do batalhão fez um croqui dos locais onde deveria ir. Foram muitos os aquartelamentos que visitei. Tive oportunidade de sentir o quão difícil era para as NT (Nossas Tropas) permanecerem naqueles locais meses a fio, perseguidos pelo espectro do perigo.

De regresso a Bissau, também de LDG – onde tive direito a 20 dias de descanso – resolvi gravar para os meus pais e irmão uma grande fita magnética, com música, conversa, sessões de teatro, poesia com rima duvidosa e textos publicados na revista ‘Vida Mundial’ sobre diálogos na assembleia nacional. Na empreitada valeram-me os meus colegas de quarto.

Lembro-me também de ir a Bolama de helicóptero, para fazer a reportagem da recepção de ‘piriquitos’ [soldados recém-chegados] e do ‘velho’ – alcunha que era dispensada ao general Spínola.

EXPLOSÃO AO JANTAR

Fui para Farim em coluna, numa viatura. À chegada esperava-me uma belíssima recepção – o batalhão comemorava um ano de comissão e toda a tropa tinha direito a uma bazuca [nome dado a uma cerveja maior do que o habitual]. Mas aos microfones da rádio clandestina, a ‘Maria Turra’ tinha prometido que havia de se associar à festa portuguesa. E cumpriu. Quando a tropa jantava houve uma enorme explosão. Só no dia seguinte soubemos o que tinha contecido. Três mísseis, lançados em simultâneo de diferentes locais, tinham sobrevoado o quartel e a sede do batalhão. E caído a 3 km do alvo.

Regressei no dia 10 de Outubro de 1973. De dois em dois meses, um grupo de camaradas do Destacamento de Fotografia e Cinema nº 3101 do Comando Territorial Independente da Guiné reúne-se numa almoçarada. Não sei explicar a força deste ‘cimento’ que nos mantém ligados tantos anos depois. Mas dou-lhe um nome: amizade.

PERFIL

Nome: José Manuel Rodrigues

Comissão: Guiné, 1972/1973

Força: Destacamento de Fotografia e Cinema nº 3101

Actualidade: Aposentado da função pública, colabora numa instituição sem fins lucrativos. É coralista no Coro Lopes-Graça da Academia de Amadores de Música
Por: José Manuel Rodrigues, Guiné (1972-1973)​
 

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Só a mão de Deus para acabar tudo bem

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Fui, provavelmente, o primeiro oficial do Exército Português a receber, num aquartelamento no Norte de Angola, altas patentes da FNLA

Estou orgulhoso por ter servido a pátria nos melhores anos da minha juventude. Feliz por ter lutado ao lado de portugueses corajosos

A 24 de Abril de 72, passei dos bancos calmos do liceu, em Torres Vedras, para as carreiras de tiro da Escola Prática de Infantaria, em Mafra. Recordo que 16 meses depois, a 28 de Agosto, às 23h, a Companhia de Cavalaria 8453, Os Felinos, partia para Angola a bordo dum 707 da FAP. Eu ia a bordo. Chegámos no dia seguinte, às 9h. Luanda era uma cidade excitante, que fervilhava de progresso e de bem-estar.

Não fossem os helicópteros a sobrevoar aquela pérola africana num vaivém frenético, para transportar os feridos e os mortos vindos das matas no norte ou das savanas a leste, poderíamos pensar que estávamos numa das melhores e maiores cidades europeias.

Fomos colocados na fronteira Norte, em S. Salvador, mais propriamente na fazenda Mamarrosa. O meu capitão Castro pôs-me no posto fronteiriço do Luvo, a 10 km da sede da companhia. Se já estava em sobressalto, ainda mais fiquei pois ia ficar sozinho a comandar um aquartelamento. Logo na segunda noite viam-se luzes ao longe e pensámos que íamos ser atacados. O resto da noite foi passada nas valas.

Foi assim na noite a seguir, até que, à terceira, parecia que daquela é que não escapávamos. Depois das habituais luzes ao longe, um sentinela vem de olhos esbugalhados a correr até mim: "meu alferes" – gritou. "Hoje é que é. As luzes estão mais perto e ouvi o campim a mexer". Nova ida para as valas.

Ouve-se um rebentamento de uma armadilha que eu havia montado. Mandei disparar o canhão sem recuo e umas morteiradas para os alvos. As luzes apagaram-se momentaneamente e alguns minutos depois voltaram.

Então pensei que se eu fosse atacar, nunca iria de luz na mão. No outro dia fomos aos locais das luzes e da explosão e constatámos o que eu previa: as luzes eram apenas troncos de árvores incandescentes, das inúmeras queimadas que os turras faziam. E tinha sido uma bela pacaça [búfalo] que accionou uma das armadilhas e quis dar-nos o prazer de saborear durante alguns dias a sua bela carne.

GUERRA URBANA

No final de Outubro fomos transferidos para Luanda. Das frias e quase impenetráveis matas do Norte fomos para a guerrilha urbana – 24 horas de serviço e 24 horas de boa vida. Fazíamos protecção ao aeroporto, às antenas da Marconi e junto aos bairros populares.

Às vezes, os momentos eram tão tensos e perigosos que só a mão de Deus fazia com que acabassem bem.

Hoje recordo aqueles homens que tive o privilégio de ter tido comigo, não como subordinados mas sim como verdadeiros irmãos e amigos. Sinto-me orgulhoso por nos melhores anos da minha juventude ter combatido pela pátria. Não fugi nem fui cobarde como alguns, que hoje são os "heróis" com chorudas reformas. Sinto que tentei evitar o desmembramento daquela que poderia ser hoje uma das maiores nações mundiais. E, acima de tudo, porque aqueles rios de sangue de crianças, mulheres, jovens e velhos que, no início da guerra pereceram às mãos criminosas daqueles sanguinários, eram portugueses.

PERFIL

Nome: António Ribeiro Mucharreira

Comissão: Angola (1972/75)

Força: Batalhão – Companhia de Cavalaria 8453

Actualidade: 57 anos, vendedor, agente comercial, casado e com dois filhos
Por: António Ribeiro Mucharreira, Angola (1972-1975)​
 

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“Entrámos num inferno de fogo cruzado”

A Minha Guerra

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Viagem de Cabinda para Teixeira de Sousa com destino a Massabi, onde estivemos três meses

Queima a minha memória a luta que travámos nos Dembos contra a mata cerrada e o inimigo. Salvámos uma menina barbaramente atacada

Cumpri dois anos de serviço em Angola, entre 1965 e 1967, no Destacamento nº 2 de fuzileiros especiais. Fiz dezenas de operações apeadas e helitransportado no norte e no leste, patrulhei os canais do rio Zaire até Nóqui e as lagoas de Cabinda/Massabi até ao Congo. Vou contar apenas um dos episódios que ainda queima a minha memória.

Foi no norte, em pleno coração dos Dembos, a umas dezenas de quilómetros da fazenda Maria Fernanda, região de mata cerrada onde o sol não espreita. Nesta escuridão, progredindo em passo de caracol, 70 fuzileiros e um pára-quedista tinham como objectivo um santuário do MPLA. Era manhã cedo e descíamos com os corpos encharcados uma pequena encosta, quando o nº 1 da coluna viu ramos de palmeira cortados de fresco.

De seguida avistámos um fumo claro entre as árvores. Em passo curto e com distância maior entre homens entrámos numa lavra de mandioca. O primeiro homem a sair da lavra deparou-se com uma cubata. Os últimos, que ainda não tinham atravessado, abriram fogo de rajadas curtas para alvos que fugiam na mata.

Continuámos. Encontrámos uma menina com uns cinco, sete anos, nua, com uma perna cortada pelo joelho. Não chorava, não gritava. O enfermeiro fez os primeiros-socorros; um dos fuzileiros tirou as cuecas para tapar o corpo da menina que repetia: "MPLA, MPLA, MPLA". Continuámos até uma clareira onde um helicóptero resgatou a menina.

Eram 15h30 quando o destacamento trocou de posições de equipas. Prosseguimos pela mata cerrada, mãos cravadas nos fustes das armas, o dedo no gatilho. Eu ia à frente. Ante dois trilhos, virámos no da esquerda e, cinco metros mais adiante, entrámos num inferno de fogo cruzado. Respondemos para conseguirmos evacuar os nossos feridos. O destacamento recuou para pernoitar mas o inimigo não desistiu - montou-nos emboscada. Valeram-nos os aviões da Força Aérea que metralharam a área. Tive sorte e escapei ileso mas três da minha equipa ficaram marcados para o resto da vida.

AINDA FUI MOBILIZADO PARA A GUINÉ

Das imagens que a película fotográfica documentou ressalvo aquelas em que a camaradagem era vínculo mais forte do que a guerra. A fotografia ao lado, de 22 de Setembro de 1965, foi tirada depois de uma caçada. Já na Metrópole, lembro a vontade de passar à vida civil. Em 1969 tirei o curso de mergulhador sapador da Marinha mas em 1970 fui mobilizado para a Guiné. Saudades de tudo isto? Nenhumas.

PERFIL

Nome: Afonso M. S. Brandão

Comissão: Angola, 1965/67

Actualidade: 63 anos, casado, um filho e dois netos. Residente em Corroios, Seixal. Reformado da Marinha
Por:Afonso M. S. Brandão, Angola (1965-1967)​
 

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“Fuzileiro uma vez, fuzileiro para sempre!”

A minha guerra

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A passar revista às tropas na festa do Rei dos Mares, enquanto passaram a linha do Equador, a bordo do navio ‘Vera Cruz’, a caminho de Moçambique

Estive 94 meses em campanha, em Angola, Guiné e Moçambique. Fui ferido por estilhaços de morteiro. Vinte dias depois voltei ao activo

Entrei para a Armada em 26 de Março de 1960. Depois de ter frequentado o curso de Manobra a bordo do navio-escola ‘Sagres’, fui como voluntário para o 2º Curso de Fuzileiros Especiais, que terminei em Setembro de 1961. Em Novembro desse ano iniciei a minha primeira comissão – Angola. Integrei o 1º Destacamento de Fuzileiros Especiais. Ficámos acantonados em Santo António do Zaire, no Norte do país.

Num fim de tarde, no enclave de Cabinda, enquanto patrulhávamos o rio Chiluango, na fronteira com o Congo, tivemos uma avaria no motor da lancha. Ficamos à deriva. Aquela era uma zona de contenção, o simples exibir de armas era o suficiente para o ataque do inimigo. Com sete homens apenas, não tivemos outra hipótese – ficámos na lancha sem desembarcar. Nove horas depois fomos resgatados por um pelotão do Exército Português de nativos.

FERIDO

Em Julho de 1963 regressei à Metrópole. Em Fevereiro do ano seguinte fui mobilizado para a Guiné integrando o Destacamento Nº 9 de Fuzileiros Especiais. Foi então que senti o peso da guerra. Das 43 operações em que participei, só em duas estive longe do inimigo. Numa delas fui ferido por estilhaços de morteiro e sujeito a intervenção cirúrgica para extracção de esti-lhaços no pescoço, no Hospital Militar de Bissau. Vinte dias depois voltei ao activo.

Em 1966 regressei a bordo da fragata ‘NRP Diogo Gome’s, depois de 24 meses de Comissão de Serviço. No mesmo ano frequentei o curso de Sargentos e em 1968 fui mobilizado para Moçambique, desta feita para a 4ª Companhia de Fuzileiros. Estive em Lourenço Marques 12 meses e outros doze no lago do Niassa. Em Lourenço Marques fazíamos a segurança das instalações da Marinha. No lago do Niassa chefiava uma patrulha de 26 homens. Fazíamos a segurança de toda a Base Naval de Metangula. Numa dessas tivemos de madrugada um frente-a-frente para o qual não tínhamos sido preparados – em vez do inimigo, dois leões.

Regressei em 1970, depois de mais 24 meses de comissão, a bordo do navio ‘Vera Cruz’. Em 1972 voltei a Moçambique. Em Nampula fiz uma comissão de oito meses, como chefe de secção dos Fuzileiros. Fazíamos segurança às instalações do Estado Maior da Armada. Em Setembro de 1972 regressei à Base Naval de Metangula, no lago do Niassa, para mais uma comissão de 16 meses. Fazíamos a segurança da base até ao posto avançado de Cobue, onde se mantinha um destacamento de Fuzileiros Especiais e um pelotão da Companhia de Fuzileiros. Era desse posto que partiam operações e patrulhamentos de toda a zona Norte do lago até à fronteira com a Tanzânia e Malawi.

Em Janeiro de 1974 regressei definitivamente à Metrópole. Ao todo estive 94 meses em campanha, pelos quais recebi entre outras, a Cruz de Guer-ra, a Medalha de Mérito Militar e dois louvores individuais pelo desempenho em duas missões no lago do Niassa.

Depois de 32 anos de serviço efectivo, terminei a minha carreira militar. Passei à reserva em 1992 no posto de Sargento Mor Fuzileiro. Termino com um dos gritos dos Fuzileiros: "Fuzileiro uma vez, fuzileiro para sempre".

PERFIL

Nome: José Coelho Coisinhas

Comissão: Novembro de 1961 a Janeiro de 1974

Força: Fuzileiros

Actualidade: Mora em Moura. Tem 70 anos, é casado. Tem dois filhos e três netos
Por:José Coelho Coisinhas, Angola, Guiné e Moçambique (1961-1974)​
 
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