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O Palácio da Cultura em Varsóvia

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O Palácio da cultura em varsóvia - o mal-amado

Durante muitos anos, destacou-se no centro de Varsóvia um dos edifícios mais altos do mundo. No entanto, essa singularidade, que o tornava um símbolo da cidade, não lhe garantiu a afeição dos habitantes da capital polaca.

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© Júlio Assis Ribeiro, Palácio da Cultura e da Ciência, 2012​

O Palácio da Cultura e da Ciência é a mais destacada construção de Varsóvia, a capital da Polónia.
Porém, ao contrário doutros marcos arquitectónicos, noutras capitais europeias (como a torre Eiffel, em Paris, ou a torre do relógio do parlamento britânico, o famoso "Big Ben", em Londres), o arranha-céus polaco está longe de ter o apreço generalizado dos habitantes do país.

Corre acerca dele todo um conjunto de piadas e trocadilhos, que vão desde o intitular de palhaço (pajac em polaco, foneticamente próximo de pałac, palácio) até se afirmar que do seu topo se tem a melhor vista sobre a capital, precisamente por ser aí o único local, em muitos quilómetros, onde não é possível avistar o próprio palácio.

Arquitectonicamente, o edíficio está longe de ser entusiasmante. Formalmente enquadra-se no que alguns críticos, com ácida ironia, designam por construções "tipo bolo de noiva". Desenvolve-se por patamares sucessivos, mais largos em baixo, estreitando-se até culminar, aos 231 metros de altura, numa espécie de espigão que funciona como torre de comunicações.

Para um leigo, não se distinguirá muito de alguns arranha-céus mais antigos de Nova Iorque, como o Empire State Building ou o Chrysler Building. Um olhar mais atento, ou mais informado, detectará diferenças importantes nas proporções, no uso e abuso de decoração aplicada nas fachadas, e num jogo de referências clássicas directas que está ausente nos edifícios americanos. Por outro lado, também contrariamente ao que acontece em Nova Iorque, a sua desmesura não era acompanhada, até recentemente, pela restante cidade, muito mais económica nas escalas.

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© Júlio Assis Ribeiro, Palácio da Cultura e da Ciência, 2012​

Mas não são as subtilezas de estilo e de urbanismo que verdadeiramente votam o Palácio ao desprezo dos polacos. As raízes desse sentimento ligam-se às circunstâncias históricas que envolvem a sua construção.

Iniciada em 1952, a edificação foi uma decisão soviética. Oficialmente uma oferta, na realidade era uma imposição feita aos polacos, inserida no culto a José Estaline, o homem que, com brutal firmeza, dominava o leste da Europa.

Para alojar e manter os operários soviéticos que construíam a "oferta", a depauperada Polónia do segundo pós-guerra teve de edificar, às sua custas, um complexo habitacional separado, onde existiam equipamentos como piscinas, cantinas, cinemas e um centro comunitário. Enfim, coisas dificilmente acessíveis aos outros habitantes duma capital que se reconstruía muito lentamente do quase zero a que fora reduzida pela acção dos invasores nazis.

Projectado pelo russo Lev Vladimirovich Rudnev, um dos homens que corporizavam a deriva dita "neoclássica" da arquitectura da Era Estalinista, o edifício nada tem das vanguardas que floresceram no início da revolução soviética.

Predomina nele um gosto conservador, um gosto à imagem do ditador. Às referências clássicas, como as colunas da sua base, elementos simbolicamente ligados à representação do poder, somam-se a escala exagerada tão cara à arquitectura totalitária, e ainda componentes que remetem para a arquitectura religiosa como os nichos com estatuária (onde, em vez de santos ou deuses pagãos, estão presentes as figuras de operários, dirigentes, intelectuais e, em tempos, a do próprio José Estaline).

Para contemporizar o sentimento nacional polaco, diferenciando o palácio de outras construções suas no restante império, Rudnev fez convergir para o projecto de Varsóvia detalhes arquitectónicos que recolheu da tradição polaca, em cidades como Cracóvia e Zamość.

Esforço inglório e vão. Adensando uma obra já saturada de referências, a "polonização" da estética de Rudnev em nada melhoraria a imagem que os polacos tinham da empresa. Concluído em 1955, o (então) Palácio da Cultura e Ciência José Estaline era um dos edifícios mais imponentes e altos do mundo. Mas para a esmagadora maioria dos cidadãos da Polónia, daí não adveio grande entusiasmo, não era um edifício seu. Era uma prenda de Estaline para si próprio. Ele, que não escondera a sua admiração pelos arranha-céus capitalistas americanos, encararia o edifício como uma dupla vitória: sobre o capitalismo e sobre a Polónia.

Embora não tenha assistido à conclusão das obras (a morte apanhou-o em 1953), o nome de Estaline figuraria na designação inicial e na própria arquitectura. Só quando o seu sucessor, Nikita Krutschov, denunciou em 1956 os crimes do Estalinismo é que o edifício adquiriu o actual nome e viu serem removidas das fachadas as letras que queriam perpetuar o nome do ditador. Mas as marcas ficaram como fantasmas na pedra, e o palácio continuaria a ser para a Polónia o símbolo daquilo que lá chamam "a ocupação".

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© Palácio da Cultura e da ciência, Estátua de operário com livro contendo o nome de Estaline tapado por argamassa, (Wikicommons).​

Hoje, uns bons anos após a derrocada da "Cortina de Ferro" e a reconquista de uma real independência nacional, o Palácio sobrevive.

Sugestões mais radicais de demolição e substituição não tiveram sucesso. Por um lado, os custos envolvidos em tal opção, num país com outras prioridades para os seus recursos limitados, impedem os decisores de o fazer. Por outro lado, muitos defendem que por muito desagradáveis que tenham sido as circunstâncias que envolveram a sua construção, estas fazem parte da história do país e não se devem apagar os seus rastos. Por último, apesar der ser um objecto de propaganda, o facto é que o edifício foi concebido para ser um palácio do povo, com um conjunto de estruturas de que os polacos, mesmo que a contragosto, ainda hoje usufruem. Alberga, além de muitos escritórios e do miradouro (inicialmente um tremendo problema de relações públicas, por ser o local preferido dos suicidas da capital), cinemas e teatros, restaurantes, uma universidade, uma gigantesca sala de congressos e espectáculos, e dois museus.

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© Júlio Assis Ribeiro, Palácio da Cultura e da Ciência, 2012

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© Júlio Assis Ribeiro, Palácio da Cultura e da Ciência, 2012

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© Júlio Assis Ribeiro, Palácio da Cultura e da Ciência, 2012​

Os museus, por serem visitáveis, dão-nos uma excelente oportunidade de vislumbrar as entranhas do colosso. No caso do Museu da Tecnologia, entra-se por uma enorme porta, atrás duma das grandes colunatas que pontuam o edifício. E, logo aí, sente-se uma característica que será uma constante no percurso dos espaços expositivos. À largueza exterior não correspondem os interiores com igual amplitude. O museu consiste numa sucessão algo labiríntica de salas-corredor (acanhadas apesar do pé-direito frequentemente generoso), átrios e escadarias.

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© Júlio Assis Ribeiro, Museu da Tecnologia, 2012

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© Júlio Assis Ribeiro, Museu da Tecnologia, 2012​

Depois, uma outra evidência se torna clara. Ao contrário de outras instalações museográficas da capital, como o fantástico Museu da Revolta de Varsóvia, este é um museu algo parado no tempo, quase um museu dos museus.

Sem uniformidade interna, salas de concepção mais antiga atiram-nos com objectos sem contextualização, com pouca legendagem e apenas em polaco, ao passo que outras mais recentes (mas não muito recentes) se esforçam por encenar os seus objectos, recriando situações de produção e utilização, com ocasionais painéis explicativos, por vezes mesmo com tradução inglesa.

Mas, no cômputo global, predominam as primeiras. As colecções, óptimas, são expostas muitas vezes de forma amontoada. Sente-se um claro desinvestimento, com exposições periódicas pobremente montadas e soluções técnicas improvisadas. Perpassa pelas suas salas uma sensação de tédio burocrático, com funcionários sentados junto a pesadas secretárias. Este é um museu fechado em si, perdido nas suas rotinas, que ignora os seus visitantes.

0 Museu da Tecnologia ilustra bem a relação dos polacos com o edifício e com o período histórico da sua criação. Fundado no período de imobilismo soviético, contaminado pelo desagrado geral em relação ao Palácio, parece faltar a quem decide a vontade de valorizar o seu rico e didáctico conteúdo, de o resgatar de um passado desconfortável.

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© Júlio Assis Ribeiro, Museu da Tecnologia, 2012​

Saídos do museu, afastando-nos um pouco, podemo-nos aperceber da mutação acelerada da área que envolve o Palácio. Nesta zona, central na capital polaca, há um novo horizonte urbano em construção. Muito próximas, gruas e obras parecem competir com a altura do prédio encomendado por Estaline. Hotéis, centros comerciais e edifícios de escritórios, todos enormes, novos arranha-céus, cercam o que outrora era o grande marco arquitectónico de Varsóvia. Esta aparente falta de consideração pelo monumento, que noutras cidades seria um escândalo, uma imprudência urbanística, não parece chocar os locais. Pelo contrário. Questionado, um amigo polaco respondeu-me sorrindo: "Se não podemos demoli-lo, ao menos podemos tapá-lo!".

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© Júlio Assis Ribeiro, Palácio da Cultura e da Ciência, 2012​

Perante a singularidade histórica e o simbolismo do palácio, a opção, mesmo que não publicamente afirmada pelas autoridades, parece passar por torná-lo insignificante. E em breve uma das piadas usadas contra ele deixará de fazer sentido. Poderá continuar a ter melhor vista de Varsóvia, mas já não será por ser o único lugar donde não é avistado.


publicado em obviousmag por Júlio Assis Ribeiro​
 
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