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Histórias de Portugal no «Diário do Tenente Pires»

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Histórias de Portugal no «Diário do Tenente Pires»

A «violência» da colonização de Timor, a «brutalidade» da I República e o «cinismo» da política de Salazar face à invasão japonesa são as linhas que se cruzam na vida do tenente português Manuel de Jesus Pires.

«Timor na 2ª Guerra Mundial, O Diário do Tenente Pires», de António Monteiro Cardoso, é, por isso, «um livro iconoclasta», resumiu o historiador português em entrevista à agência Lusa.

António Monteiro Cardoso apresentou a obra (lançada em Outubro de 2007) em Díli, na Feira do Livro em Português, que terminou a 23 de Abril.

O historiador, que nunca tinha estado em Timor-Leste, visitou nos últimos dias alguns dos cenários onde se desenrolou a história heróica, com fim trágico, do tenente Pires, no distrito de Baucau (leste do país), à vista das montanhas do Matebian e do Mundo Perdido.

O tenente Pires foi administrador da vila de Baucau, que entre 1936 e 1975 se chamou Vila Salazar, capital da circunscrição de São Domingos, e morreu em data e local desconhecidos, talvez no final de 1944, assassinado no cativeiro japonês.

O pano de fundo do «Diário do Tenente Pires» é a resistência à ocupação japonesa de Timor, a guerra de guerrilhas movida por forças australianas ajudadas por timorenses e portugueses, a saída de Pires para a Austrália e o seu regresso à ilha, numa missão suicida, para salvar os portugueses que tinham ficado e corriam perigo.

António Monteiro Cardoso, recorrendo a abundantes fontes documentais, analisa e refuta neste livro dois mitos persistentes: a bondade da colonização de Timor e o sucesso da política de Salazar na colónia mais distante da metrópole.

«O livro pode não ser bom mas é o único livro que não vai ser fascista, como (são) os clássicos livros sobre a História de Timor, que são livros de exaltação do culto da bandeira e outras fantasias», ironizou o historiador na entrevista à Lusa em Baucau.

«Claro que há uma excepção, que é o livro de José Mattoso (»A Dignidade«)», ressalvou António Monteiro Cardoso.

«Comete-se erros de interpretação em que se toma a parte pelo todo», acrescentou, recordando que uma versão realista, menos simpática a Portugal, já aparecia nas obras do historiador francês René Pélissier sobre o avanço das fronteiras coloniais.

«A verdade é o que Pélissier contou: a colonização foi violenta e usou os métodos de guerra, guerra de timorenses contra timorenses, como na Guiné pelo Teixeira Pinto», afirmou António Monteiro Cardoso à Lusa.

«Mantém-se a ilusão mitológica de que o colonialismo português não fazia mal a ninguém. Todos são maus a colonizar menos os portugueses», declarou à Lusa.

«O caso de Timor é o que melhor ajuda a criar este mito, devido à invasão indonésia. Há o mito da cristianização, da conquista das almas e não pela espada», explicou o historiador.

«O timorense por definição era católico, falava português e adorava Portugal», recorda.

ntónio Monteiro Cardoso salienta que na sua obra sobre o tenente Pires e a 2ª Guerra Mundial teve presente as lições retiradas de «Weapons of the Weak» e «Hidden Transcripts», de James C. Scott, em que são analisadas as formas de resistência dos «fracos».

«As pessoas que estão sob uma situação de dominação não se podem exprimir livremente. Dão ideia de pacificação ou adesão, mas, criando-se certas oportunidades, passa-se rapidamente a situação de revolta de populações que pareciam amigas», diz António Monteiro Cardoso.

«É a história de todos os colonialismos».

«Os indígenas são tão simpáticos, tão portugueses, dóceis, um pouco mandriões é certo. Conhecem as crianças? Assim são os indígenas», ironiza o historiador sobre a visão colonial do timorense.

Outra das novidades do «Diário do Tenente Pires» é recuperar parte da história dos deportados portugueses em Timor, origem de vários «clãs» importantes, como a família Carrascalão ou a família do Presidente José Ramos-Horta.

«A novidade é que os principais deportados não foram enviados pelo regime de Salazar. Os primeiros, o núcleo-duro, eram anarco-sindicalistas, enviados pela I República para a Guiné e Cabo Verde e que depois a ditadura militar aproveitou para mandar para mais longe», conta António Monteiro Cardoso.

O historiador sublinha que o regime «democrático» e «benevolente» anterior ao Estado Novo tinha «uma forte componente anti-operária e de polícias políticas que agiam com uma brutalidade espantosa e que deportavam sem julgamento».

«Um regime sinistro», resume António Monteiro Cardoso.

Na obra sobre o tenente Pires, fala-se, por exemplo, da Legião Vermelha, «uma organização terrorista de contornos ocultos, de acção directa, destinada a atacar patrões, polícias e outros serventuários menores do capital».

A Legião fez um atentado contra o comandante da polícia de Lisboa, Ferreira do Amaral, origem de uma repressão que atingiu o auge em 1925.

Em 1931, o número de deportados «sociais» e «políticos» portugueses em Timor ultrapassava os 500, superior ao número de funcionários da administração.

Sobre a política de Salazar em Timor, António Monteiro Cardoso defende que o ditador português «demonstrou um desprezo absoluto pela vida humana e um cinismo completo».

Salazar pediu aos portugueses, perseguidos pelos japoneses, um «massacre inútil», uma decisão que antecipa o que aconteceu em 1961 com a invasão de Goa.

Na análise do historiador, Salazar descurou a protecção da colónia, até antes do início da guerra no Pacífico, não dando garantias de efectiva neutralidade nem ao Japão nem à Austrália e às potências Aliadas.

O tenente Pires e outros portugueses em Timor foram usados e sacrificados por Salazar para «garantir» a soberania sobre a colónia.

«Os mortos foram esquecidos e os sobreviventes perseguidos», conta o historiador.

Do tenente Pires, fica a história de um oficial que conseguiu salvar centenas de vidas «e que depois fica para a morte, acossado por todos os lados».

«É um exemplo de dignidade, coragem e abnegação até à morte, para cumprir um compromisso», conclui António Monteiro Cardoso.


Diário Digital / Lusa
 
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