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Jogar com a diferença

ze.gaspar

GF Prata
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Jun 7, 2009
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São nomes que podíamos desfiar pelas letras desta página, alinhados em qualquer disposição. Podíamos ordená-los e desordená-los, virar para um lado e para o outro, que teriam sempre algo em comum: momentos de lazer para pessoas com necessidades especiais.

A luz do Outono recorta as árvores folha a folha e define cada pormenor do Mosteiro dos Jerónimos. Junto aos autocarros de turismo, chega uma carrinha branca, logótipo verde e azul da Accessible Portugal. Pedro Brandão sai do lugar de motorista, dirige-se à traseira do veículo, acciona o elevador. Não é uma carrinha qualquer, esta, nem turistas vulgares que nela se deslocam. Tão- pouco Pedro é uma pessoa banal. Licenciado em História, trocou as voltas à vida ao abraçar o projecto que se lhe oferecia: guia turístico de pessoas com necessidades especiais. Um a um, faz descer acompanhantes e turistas em cadeiras de rodas.

Raymond conduz a cadeira de rodas da mulher, Angela. «Viajamos bastante, normalmente de avião», diz. Mas «muitos locais não estão preparados e há falta de acessibilidades». Estão a fazer um cruzeiro por vários portos europeus, integrados num grupo de ingleses em que cerca de metade tem necessidades especiais.

Ligeiramente afastados, Allan e Jane embalam-se em carícias. Jurista ele, ela com dificuldades de locomoção. Para ambos, «este é o terceiro cruzeiro e é a primeira vez que podemos fazer excursões num veículo especialmente adaptado para pessoas com deficiência». Afirma Allan: «Quando estivemos na Noruega havia excursões todos os dias a partir do barco, mas quem estivesse numa cadeira de rodas não podia ir a quase nenhuma.»

Foi com uma realidade semelhante que Joana Prates e Luís Varela, os sócios co-fundadores da Accessible Portugal, se depararam quando resolveram criar uma agência de viagens para um nicho de mercado especial, o das pessoas com mobilidade reduzida. Como faz notar Pedro Brandão, «em Portugal, raramente vemos pessoas em cadeira de rodas na rua».

Ana Garcia, também sócia da Accessible Portugal, explica que «há falta de acessibilidades e muitos dísticos mal colocados, o que leva a uma cultura em que as pessoas evitam sair porque as dificuldades com que se deparam são muitas».

Durante os três primeiros anos de existência, a Accessible Portugal «funcionou essencialmente como animação turística para estrangeiros», diz Ana Garcia. Os sócios da agência de viagens acreditam que «quem não tem o hábito de viajar deve experimentar fazê-lo primeiro em Portugal, para conhecer as dificuldades que há numa viagem». Estará então preparado para fazer um safari na África do Sul, visitar as pirâmides do Egipto ou viajar até à Terra Santa. «Coisas que pensamos serem impossíveis para pessoas em cadeiras de rodas e não, é perfeitamente possível», conclui Ana.

Sentados à proa
Também para Carlos Caetano a palavra «impossibilidade» é tida como expressão a riscar do léxico de pessoas com necessidades especiais. Para o responsável do Náutico Clube Boa Esperança, não há obstáculos que sejam inultrapassáveis. Veleja há largos anos e afirma que «este desporto é dirigido a todas as pessoas que queiram ter no rio a possibilidade de sentir o prazer da vela, sem excluir rigorosamente ninguém».
Abrem-se cais e passadiços, vêm cadeiras de rodas, cegos e bengalas, paralisias cerebrais, síndromes disto e daquilo, porque ninguém fica em terra. Coletes vermelhos contra o verde do rio e o azul do céu, em embarcações específicas para o assunto. Não viram e permitem que os tripulantes se sentem à proa. «Uma pessoa com necessidade de cadeira de rodas não pode sentar-se na borda de uma embarcação», explica Carlos.
Seguimos viagem com Filipe Patrício e Miguel Machado. Os rapazes acertam a idade pelas duas dezenas e são ambos cegos. Filipe é estudante. A cegueira foi consequência de um tumor cerebral aos 10 anos, faz agora outros tantos. Passou metade da vida às escuras, mas rasga a cara num sorriso. «Comecei a velejar por influência de um primo», diz. É a segunda vez que se faz ao rio, naquilo que afirma ser «uma experiência boa e muito agradável.» Característica dos invisuais, nas artes de marear, não tendo a percepção da linha do horizonte, não têm a noção do equilíbrio e, consequentemente, não enjoam.
Carlos faz que Miguel sinta a direcção do sopro de ar na própria mão. O estudante angolano percepcionou e em breve saberá o que fazer para pôr a vela a jeito. Esta é a primeira aventura em veleiro do rapaz a quem, aos nove anos, problemas de retina retiraram a visão. A penumbra acompanha-lhe os passos há mais ou menos 14 anos, mas não é por isso que deixa de ser amante do desporto e da acção. «Quero experimentar tudo o que puder», afirma.
Vantagens de um deficiente praticar vela? Carlos Caetano começa a desfiá-las: «Aumenta os reflexos e a relação de equilíbrio. A relação sensorial aumenta imenso, ganha autoconfiança e auto-estima que, por exemplo, para uma paralisia cerebral são essenciais.» E, afinal, o que parece impossível nem o é: «Eles podem andar sem instrutor.» Como? «Se um tem maior facilidade motora para regular a abertura de uma das velas, vamos usar isso. Se outro só tem capacidades para o uso do leme, fazemos todos os esforços para que exista uma equipa que consiga ser formada com autonomia, complementando-se.»

Na senda de Molière
Paragens mais calmas, mas nem sempre menos oscilantes. Andamos de um ginásio para o outro sem saber bem por onde pára o Grupo de Teatro da Crinabel. É o que faz não ter acesso a um espaço próprio, usar locais cedidos por este ou por aquele, retirados de vez em quando. Rodrigo Duque, o terapeuta da fala, leva-nos ao sítio certo, onde estão os «miúdos». Pessoas de 20, 30 e 40 anos a quem Milou dirige, servindo de ponto para as deixas esquecidas.
«Dá-me a tua mão!», pede Joana Cruz quando contracena com Rui Fonseca. Rui estende-lhe a mão e responde com aquela força que vem de dentro só visível nos que gostam muito do que fazem. Sente-se o nervosismo de Joana quando faz de boneca tímida que, diz, «é o que eu sou, e tenho medo de falhar».
«Eles entregam-se a trabalhar com toda a alma e coração, com todas as suas potências, com tudo o que sabem e podem, com uma disponibilidade extraordinária», diz Francisco Brás, o responsável pelo grupo: «Portanto, só posso olhar para eles com respeito, como seres humanos. E foi isso que sempre pautou o nosso trabalho.»
Francisco é um pioneiro. Estávamos em 1986, quando foi convidado a dar aulas de expressão dramática na Crinabel. Os alunos eram jovens, portadores de trissomia 21. Palavra dada ao director da companhia: «No final de um ano comecei a perceber que havia material humano muito rico para evoluir.» Investiu neles. Em 2001, Marco Paiva juntou-se-lhe na organização do projecto que é provavelmente a face mais mediática da instituição. Representam Franz Kafka, Bertold Brecht, Almada Negreiros. Elementos do grupo participaram em séries de televisão, telenovelas, projectos musicais e Tomás Almeida foi distinguido, ex aequo, com o prémio de melhor actor no Festival de Montreal, para a interpretação no filme A Outra Margem. Como se conseguem estas participações? É Marco quem responde: «As pessoas escrevem para uma personagem com estas características, sabem que nós trabalhamos com esta população e contactam-nos directamente.»
«Nós não utilizamos o teatro como terapia, mas como um objectivo de vida para estas pessoas», afirma Francisco, a quem perguntam muitas vezes como é possível que alguns dos actores, que não lêem, decorem papéis. Para ambos os responsáveis, «o processo é natural, é o processo da criação». Inicialmente, é uma abordagem à temática seguida de um estudo da personagem, numa fase em que «já há um domínio da situação, e uma série de coisas que favorecem. Por exemplo, se eu vou abrir a janela, o próprio movimento já os leva a decorar o texto».

É tempo de usar a cor
A monitora Luísa Henriques abre a porta. Largueza, luz. Pincéis e frascos, tintas e água, cavaletes e telas. O som dos sapatos no soalho de madeira clara, sem mácula de pintor menos cuidadoso.
Junto à janela vive Maria Papoila, a galinha. No canto oposto, o trono sem rei. O imponente galináceo tem milho reciclado e água fresca, mudada todos os dias. O trono espera por quem nele se sente. «A intenção é criar a estas pessoas uma realidade paralela, em que saibam verificar aquilo que é faz-de-conta, mas que pode existir se eles quiserem», explica Luísa Henriques.
Luís esmera-se a explicar como fazem a esmaltagem. Saltam frascos dos armários, acenam mãos em explicações nem sempre simples. Chama a tesoura de corte, o alicate para revirar e procura algo: Um par de brincos que acaba por vender ali mesmo. Presta contas a quem de direito e vira-se para a tela onde um enorme peixe azul paira no ar, escamas bem torneadas, cuidadosamente coloridas, numa nova modalidade de peixe anfíbio.
Elsa passeia-se pela sala, pára a cabeça no ombro de Luísa, que a afaga, enquanto conta do livro para o qual fizeram capa, dos concursos participados, das obras vencedoras. Licínio Reino, o director, ciranda pelo espaço. Conversa aqui, palavra ali. Paula concentra-se, também ela, num escamudo peixe verde, enquanto Pedro solta pinceladas vermelhas, transformadas em pétalas de flores que crescem na tela. Mais afastado, João preenche a amarelo o desenho, traçado a encarnado, que cheira a África, nas ramagens verdes. «O João tem um traço muito interessante e característico. Mas temos ainda algumas dificuldades em que o passe do papel à tela», afirma Luísa. São todos utentes da Crinabel. Homens e mulheres que para ali entraram, há mais ou menos tempo, mas onde dão largas à imaginação em centros de actividades ocupacionais (CAO) como aquele que Luísa dirige. Pintura, reciclagem, costura, cozinha, um mundo que parece transportado de um livro de contos pela forma inventiva como é demonstrado. O intuito é proporcionar momentos lúdicos a gente com necessidades especiais. Pessoas que, em casa, estariam confinadas a um espaço reduzido, com menos contacto humano, mais longe do ideal.
Síndromes de Down misturadas com paralisias cerebrais e questões mentais várias. Comportamentos fracturantes numa unidade liberta de preconceitos a fazer obra visível.
São felizes na arte da criação. Vão expor em espaço cedido, no Fórum Picoas. Trabalham para isso, labutam com gosto. Criam ao seu ritmo, num equilíbrio entre o mundo dito normal e o deles próprios, tão rico e exequível como o de qualquer outro.


por Anabela Oliveira in Diário de Noticias
 
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