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O autocarro verde

nuno29

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Abr 16, 2007
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Os dias estavam a ficar mais pequenos e, embora a temperatura ao meio-dia naquele Setembro de 1944 chegasse por vezes aos 25ºC, as pessoas de Waldau já não iam ao ribeiro da aldeia tomar banho. Os adultos guardavam as colheitas, as crianças iam de manhã à escola e, à tarde, estavam ocupadas com os trabalhos de casa — ou com a compra das coisas que as mães lhes tinham escrito numa lista.

Karl levava o seu tempo a fazer o caminho do talho para casa. Apreciava a liberdade antes do recomeço da sua nova “prisão domiciliária”. Arrastava, teimoso, pela estrada empoeirada, o saco de rede onde chocalhava uma libra de fígado de porco, enxotava algumas galinhas que vinham ao seu encontro e dava pontapés com os sapatos cardados nas pedras brilhantes que estavam ao seu alcance.

De vez em quando parava e esperava um momento até ter juntado saliva suficiente. Depois tomava posição, de pernas abertas, e deixava cair no pó a enorme gota espumosa. O barulho que o embate produzia confirmava sempre, para sua alegria, a ilegalidade do acto. Não se cospe, tira imediatamente as mãos dos bolsos.

A fome por doces e a vontade de atrasar o regresso a casa levaram Karl à loja colonial da aldeia. Antes de poder atravessar a rua, teve de dar passagem a um autocarro que atravessava Waldau com estrondo, deixando a aldeia inteira envolta numa nuvem de pó amarela.

Na loja, quatro mulheres faziam fila para comprar alimentos. Karl esperou até chegar a sua vez, colocou a moeda de dez pfennings em cima do balcão e disse:

— Uma bolacha, por favor.

— Com certeza, jovem — disse a vendedora. — Uma bolacha para si. — Tirou da caixa por detrás dela uma bolacha recheada com um creme castanho e estendeu-lha. Karl pegou na bolacha sem dizer uma palavra e saiu da loja sem cumprimentar.

Estava ofendido. “Porque é que os adultos não falam connosco como deve ser, ou até que não falem?” A velha já o conhecia e podia tê-lo tratado pelo nome. Decidiu, da próxima vez que lá fosse, tratá-la por “jovem”, apesar do risco de levar uma bofetada.

Lá fora, deu uma dentada voraz na bolacha, que lhe sabia especialmente bem, porque a mãe dizia sempre que as bolachas recheadas com massa de açúcar faziam mal aos dentes.

Quando estava a chegar à casa, onde morava com a mãe e com a avó, viu um autocarro parado em frente. Estava rodeado por uma multidão, constituída principalmente por crianças e pelos habitantes mais idosos da aldeia.

Um furo no pneu tinha obrigado o autocarro a parar no meio da aldeia, ligeiramente inclinado para a esquerda. Estava pintado de verde-escuro, e ninguém conseguia olhar de dentro para fora nem de fora para dentro, pois as janelas estavam pintadas com uma tinta esbranquiçada.

Karl achou estranho que só tivessem saído cinco passageiros. Talvez estivessem mais alguns no interior do carro, que tinha lugar para quarenta ou cinquenta pessoas.

Os cinco indivíduos tinham a cabeça rapada, eram esqueléticos e usavam todos a mesma roupa às riscas largas. Karl furou por entre a multidão e viu que os cinco homens tentavam desmontar a roda traseira e trocá-la pela roda suplente.

Eram incitados por três guardas de uniforme preto armados de pistolas automáticas. Os gritos destes não serviram de muito. Os parafusos estavam colados por causa da ferrugem, e os prisioneiros, já de si sem forças, só com grande dificuldade puderam desatarraxá-los.

Aquilo exigiu muito tempo, tempo esse que parecia mais precioso aos homens de uniforme preto do que aos prisioneiros. Karl tinha a impressão de que eles trabalhavam propositadamente devagar para atrasarem o regresso. Os guardas deram-se conta da intenção e os gritos tornaram-se mais ameaçadores.

As pessoas que observavam tudo aquilo olhavam, admiradas, mas não com a simples curiosidade de quem espera algo de sensacional, e que é característico dos espectadores que acorrem apressados quando há algum um acidente. Os habitantes de Waldau olhavam antes com horror para as miseráveis figuras que se arrastavam no pó em frente dos guardas e manejavam desajeitadamente chave de fendas e martelo.

Os homens, as mulheres e as crianças estavam horrorizados porque nunca tinham visto homens quase transparentes. Os “habitantes” da prisão de Großwaldauer, que muitas vezes vinham ajudar nas colheitas, eram muito diferentes e, de forma geral, mais bem-nutridos. Nas quintas, os trabalhadores do campo polacos, embora também fossem prisioneiros, não tinham semelhança alguma com aqueles miseráveis na rua da aldeia de Waldau.

A multidão permaneceu muda enquanto o autocarro se encontrava à sua frente. Os homens estavam calados porque a visão destas criaturas lhes roubara a fala, e porque tinham medo dos homens armados, cujas ordens detonavam no ar. A cena de que eram involuntariamente testemunhas paralisava-as e a proximidade ameaçadora de três pistolas automáticas pregava-as ao chão, numa imobilidade de que alguém só em sonhos fora vítima.

Apenas por duas vezes a rigidez foi interrompida. Primeiro, por causa da avó de Karl, que atravessou o círculo de espectadores até chegar junto dos cinco homens. Deu a um deles um pão que fora rapidamente buscar a casa, um pão longo, escuro, brilhante, perfumado. Com setenta anos, a corajosa senhora já não tinha nada a perder.

O prisioneiro recebeu o pão, agradeceu em silêncio com a cabeça e apertou-o com as duas mãos, até um dos guardas ordenar, ameaçadoramente em voz baixa:

— Devolver… e depressa!

Fez pontaria com a pistola e os cinco homens não foram os únicos a suster a respiração.

O prisioneiro obedeceu imediatamente e pousou o pão nos braços cruzados de Karl, em pé diante dele.

— De onde é? — perguntou Karl ao prisioneiro.

Este olhou fixamente para ele e não respondeu.

E, pela segunda vez, houve um movimento na multidão. Antes que Karl voltasse a fazer perguntas e provocasse alguma desgraça, a mãe, que ele não vira entre os presentes, puxou-o para trás e arrastou-o para casa, apesar da sua veemente oposição.

Karl estava furioso. Via-se privado da resposta à sua pergunta, resposta essa dada pela mãe, depois de entrarem em casa. Só que o nome Großrosen não lhe dizia nada.

— É um KZ * aqui perto — disse.

— O que é um KZ? — perguntou Karl.

— Num KZ, os presos são como aqueles ali do autocarro — explicou a mãe.

— Quando é que se vai para um KZ?

— Quando se contam anedotas sobre Adolf Hitler ou sobre o gordo Göring, ou se diz que não vamos conseguir ganhar a guerra. Em todo o caso, os judeus vão para um KZ, mesmo que não digam nada.

— O que são judeus? — perguntou ele.

— Os judeus usam uma estrela amarela ao peito e chamam-se Levi, Kohn ou Solomon.
 
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