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A propósito da Forma de Estar na Caça e das novas (antigas?)

helldanger1

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A propósito da Forma de Estar na Caça e das novas (antigas?) polémicas sobre o que é e sobre o que não é correcto na prática cinegética, um colega meu escreveu para o Fórum do portal Alvorada um texto que me pareceu soberbo não só pelo seu conteúdo em si, mas acima de tudo pela saudade que transmite às novas gerações. Apesar de não se tratar de uma História de Caça propriamente dita, aqui a publicamos com o objectivo de possibilitar outro (mais um) entendimento para este nossa paixão.

Bem haja amigo António Reis.


Na caça, como no sexo, há a antecipação, a concretização e a evocação. Quando as coisas são como devem ser, desfrutamos destas três fases, embora em graus não necessariamente idênticos. À primeira vista e numa situação normal, deveria ser a fase da concretização a proporcionar a parte mais significativa ao nível das sensações mas nem sempre isso se passa e pelo menos no que à caça diz respeito, ainda bem que assim é.
Quando comecei a caçar legalmente, no início dos anos 70, a intensidade da antecipação era arrasadora. Invariavelmente, não conseguia “pregar olho” na véspera das caçadas o que, depois, pagava na longa viagem de regresso, caindo como um morto no banco do carro para só voltar a dar sinais de vida em frente à porta de casa, ignorando completamente as tropelias a que, entretanto, me sujeitavam os companheiros.
Fruíamos o então presente com a naturalidade própria da juventude, sem grandes dúvidas, interrogações ou angústias, não tínhamos de todo a noção de que estávamos a viver os derradeiros anos de uma época de ouro no que à caça diz respeito.
Não havia IPs nem auto-estradas, telemóveis ou Internet mas também ninguém suspirava por eles e as coisas organizavam-se dentro de uma normalidade que agora parece irreal. Caçava-se todos os dias que a vida de cada um permitia, sempre com os mesmos companheiros na linha e, muitas vezes, já a viagem ia a meio e ainda havia discussão sobre o local exacto onde a caçada se iria desenrolar. No meu círculo de relações, a caça era uma actividade viril de contacto íntimo com a natureza mas também uma afirmação de liberdade e responsabilidade, escola de cidadania com a sua praxis exclusiva, conhecimentos e normas de conduta partilhados, assimilados e praticados num processo que envolvia camaradagem e respeito ao estilo das guildas medievais e para o qual não vislumbro hoje qualquer sucedâneo.
Os protagonistas, galeria interminável de figuras pitorescas de uma banda desenhada em que as personagens eram os próprios intérpretes, oferecendo-se a qualquer aprendiz de escritor já baptizados a preceito, o Zé Bate-chapas, o Carlos Histérico, o Pansóla, o Vítor Careca, com as suas caçadeiras de canos laterais nove em cada dez, Colibri, Sarrasqueta, Robust mais uma ou outra FN de cinco tiros que, curiosamente eram a escolha de alguns dos mais finos atiradores e dos maiores marteleiros, que as descarregavam numa cadência de metralhadora - permitindo-nos saber sempre, à distância, onde é que andavam - e os cães, geralmente de tipo se não indefinido pelo menos bastante vago, mas lendários alguns, de bons que eram…Caçam agora quase todos noutras paragens, onde talvez sintam de novo a animação do antigamente. Dos que restam contam-se pelos dedos das mãos os que ainda tiram a licença.
Com o passar dos anos, a maravilhosa caça banal de salto, praticada por muitos nós, agora já a entrar no Outono da vida, como a tinham praticado os nossos pais e avós, foi sendo desfigurada de forma radical e irreversível. O declínio do terreno livre, sentenciado por diversos factores, foi o réquiem dessa época de ouro.
 

helldanger1

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Dizer-se que da caça ficou apenas uma caricatura de má qualidade, que pouco mais lhe recuperou do que o nome e os tiros é talvez um exagero mas muitas vezes penso que os caçadores da nova geração, os meus filhos, por exemplo, não fazem sequer uma ideia daquilo de que estou a falar e ainda bem, porque são assim poupados ao profundo desencanto e sentimento de perda que não consigo nem quero ignorar.
Hoje em dia tudo é complicado e artificial, muitas vezes num grau que roça o ridículo. Resignados lá nos vamos sujeitando ao delírio dos que tutelam a actividade, comprando cadeados e cofres, coleccionando o dossier de documentos que precisamos para, com sorte, podermos legalmente ir com uma espingarda ao campo, tentando simultaneamente cumprir as múltiplas condicionantes da lei geral e do regulamento da ZC, levantar credencial à hora x, já o sol vai alto, ir recambiado para a zona z, limite de tantas nos dias pares, nos dias impares não esquecer só se pode… etc., etc., e ao meio-dia pára tudo!
No entanto, continuamos, alguns, teimosos, sem querer admitir que já somos deste “filme”. Resta o calor da amizade que parece resistir melhor do que as lebres, as perdizes bravas e os até os próprios sobreiros, que de há um tempo a esta parte deram em morrer também.
Com o insensível mas inexorável deslizar dos anos, e já lá vão tantos, se o prazer da antecipação não se desvaneceu por completo, perdeu, pelo menos, o saudoso carácter excessivo dos primeiros anos, o que me deixa triste e interrogativo.
Por outro lado e não é com certeza por acaso, antes vejo nisso a mão sábia de uma qualquer providência, como que para equilibrar as coisas, o que vai faltando na antecipação acresce nas evocações que se vão avolumando ao ponto da gestão dos pormenores escapar ao rigor da memória. Episódios, personagens, peripécias, uma frase ou uma palavra apenas, momentos especiais por qualquer motivo, voltam à memória, acondicionados numa não desagradável névoa diáfana que lhes adoça as marcas de tempo e espaço, tendendo a ficar apenas o registo essencial. Aquele magnífico perdigão, de asa, que tanto trabalho deu a cobrar mas salvou a grade foi onde? E outra vez em que o …"

É assim que eu vejo a caça, e afinal está cá tudo, os lances, as memórias, a amizade...
 
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