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A Cólica Providencial

helldanger1

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por: Carlos Castanha

Naquele tempo ainda se ia de véspera para as montarias no Alentejo, pois as estradas eram estreitas e cheias de curvas, mesmo as principais. As auto estradas de hoje, que permitem aos heróis ir de Lisboa a Barrancos, a voar baixinho, em menos de duas horas e meia, só existiam no papel de projectos futuristas. Assim, pernoitava-se em Moura no hotel das águas, e de manhã lá se faziam os cinquenta quilómetros finais até à Contenda.

O interveniente nesta história mais uma vez percorreu os passos deste calvário obrigatório para os viciados nas emoções da caça grossa deste país. Chegara ao hotel ao fim da tarde e, depois de arrumadas as armas e bagagens no quarto, fora até ao bar cumprimentar amigos e conhecidos, para se inteirar das perspectivas para a caçada, e do estado previsível da mancha. Ali se encontravam os habituais frequentadores destas lides, em amena cavaqueira ou numa mais acesa discussão cinegética, fazendo horas para o jantar.

Depois, e segundo as suas preferências particulares, lá se iam dispersando pelos restaurantes da terra, por sinal bem provida de bons locais de farta petisqueira. Tal como em outras ocasiões a escolha recaiu numa tasquinha do jardim próximo, junto às bombas de gasolina, célebre pela excelência dos seus pitéus. Nunca ali faltava, em tempo de caça, a perdiz e o coelho bravo fritos em pedaços lourinhos, os tordos estrugidos em azeite e alho, ou umas febras e entrecosto de javali, grelhados no lume de carvão. Se juntarmos a estes pratos uns túbaros de tomatada ou uns achigãs de escabeche, tudo regado por um generoso tinto regional, nada faltará para acompanhar uns queijinhos de meia cura ou as fasquilhinhas de presunto de porco preto com que se começava a função. Depois era só deixar o tempo correr vagaroso até o estômago se fartar com o banquete, e o espírito se encher de sonhos com as conversas que inevitavelmente se centravam nos javardos.

 

helldanger1

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De volta ao hotel, nem o passeio nocturno nem mais uns digestivos tomados para a sossega chegaram ao nosso amigo para facilitar uma digestão que se afigurava problemática. Toda a noite se revolveu pelos lençóis procurando alívio para os excessos da jantarada, e, de manhã, quando o despertador o chamou para as suas devoções, ainda se sentia enfartado e cheio como um odre. Mesmo assim, foi, como todos os outros, tomar o costumeiro pequeno-almoço ao balcão do mercado municipal, bebericando uma caneca de café de peúga, adoçado com açúcar amarelo e com cheirinho, para empurrar uma fartura, acabada de fritar.

Enfim, era um tratamento completo...

Chegava entretanto a hora e lá partiam, para a etapa final, via Safara e Santo Aleixo até à Contenda, pelas famigeradas curvas da estreita estrada de Barrancos. Finalmente chegou à concentração no largo da herdade, frente ao casão grande, onde mais tarde se expunha o quadro de caça, se iam abrir as rezes e fazer o leilão das carcaças.

Era altura de cumprir mais uma peregrinação obrigatória. Havia que ir mostrar as licenças de caça e conferir os documentos de inscrição para a montaria, ou mesmo efectuar um pagamento de última hora. Ali se iam encontrando amigos e conhecidos, alguns que já se não viam há tempos, quantas vezes desde o ano anterior.

Como nessa época não havia ainda os luxos de pequeno-almoço e almoço incluídos no preço da montaria, todos levavam os seus farnéis, primando pelo que de melhor tivessem em casa, cruzando-se as ofertas de prova, dos mimos de cada cesta. É com imensa saudade que se recorda essa convivência entre amigos e companheiros do mesmo ofício, que hoje se torna impossível de encontrar, dada a proliferação de atrasados e apressados, mais interessados em estar e ser vistos, do que em caçar.

Cumpriu ele também esta parte burocrática e depois de mais uma prova aqui e dum trago ali, aprestou-se para a última fase antes da saída para as portas.

- Senhores monteiros... sorteio ...!

 

helldanger1

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Com este anúncio sobressaindo em forte berro da vozearia dos presentes e do laticar rosnento da cachorrada, se juntaram os caçadores em semi círculo, frente à mesa onde estavam os envelopes com os números das portas. Por detrás dos organizadores, o director de montaria, aguardava um pouco de silêncio para começar o sorteio. Um dos responsáveis abriu a cerimónia com um bom dia de boas vindas e agradecimento pela presença de tantos e bons amigos. Em verdade era mais de notar a qualidade do que a quantidade, pois o número de portas era bem menor que a demanda de lugares. Passou então a palavra ao director de montaria para a habitual arenga em prole do bom senso e compostura durante a caçada, assim como a necessária atenção e cuidado com os tiros que se fizessem. Embora todos saibam que na mancha andam além das rezes em fuga, os cães e matilheiros, nunca é demais relembrar aos espíritos mais descuidados as regras elementares para que tudo corra sem acidentes. E mesmo assim... às vezes há um azar...

O nosso amigo a tudo isto assistiu com impaciência pois que as sucessivas cargas de comida que ingerira desde a véspera mais as provas da manhã lhe haviam provocado um começo de indisposição estomacal. Tirou, do saco do sorteio, a sua porta, verificou qual a armada e o postor que lhe cabiam, e ala para a caixa do reboque que o levaria, e aos companheiros, para a mancha.

Ainda não estavam em moda os jipes e viaturas todo o terreno como agora é uso, e o transporte dos caçadores era feito em reboques de carga e trabalhos agrícolas, puxados por um tractor, só até à cabeça da armada. Toda a comodidade destes transportes se resumia a uns quantos fardos de palha a servir de assentos, quando os havia... Depois, era corda nos sapatinhos e trepa aqui, escorrega ali pelos trilhos e veredas do mato seguindo o passo lesto do postor que, um a um, ia deixando os caçadores nas suas portas.

Todas estas andanças pouco ou nada contribuíram para melhorar a má disposição do nosso enfartado monteiro. Foi já com alguma dificuldade e um princípio de dor no ventre que chegou ao seu posto. Não era de fácil acesso, quase ao fundo de um barranco, com mato forte e silvados espessos, mas na encosta em frente havia algumas veredas de caça bem seguidas e de forte crença. Preparou o local como melhor lhe pareceu e cogitou com os seus botões a boa escolha que fizera em relação à arma a usar em tal posto. Elegera para esse dia uma carabina Winchester, de alavanca, em calibre 30-30, arma curta e de fácil manejo numa porta tão apertada. Era uma das mais indicadas para tiros rápidos e de certeza bem perto, como a localização do posto requeria. Estas Winchester, assim como as Marlin neste mesmo calibre, eram armas muito usadas e procuradas por quem se iniciava na caça ao javali, pelo seu uso e manutenção fáceis, bem assim como pelo custo, que estava ao alcance de qualquer bolsa. Quem não se lembra da arma usada pelo grande John Wayne, sherif dos filmes de cow-boys. Com ela até fazia voar as latas vazias do feijão do almoço, com tiros sucessivos.
 

helldanger1

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Pois o protagonista desta aventura, já com tudo pronto para a montaria e com boas esperanças no seu posto, começou a sentir então não apenas o tal incómodo doloroso, mas agora já uma pressão nas tripas, que nada de bom lhe augurava. Qual de nós não passou já por um transe destes e, tal como ele, sem socorro à vista...?

Olhou em volta procurando um lugar mais recôndito e apropriado para resolver o seu problema, e afastou-se da sua porta apenas o espaço suficiente para que o seu alívio não prejudicasse o posto nem a caçada. Com tanto desespero nem reparou que tinha levado nas mãos a carabina, que encostou ao chaparro a que se arrimara enquanto se aliviava. Quase no fim de tão penoso transe os seus olhos errando pelas estevas deram com um outro par de olhos que o miravam de soslaio. Do outro lado do barranco mas apenas a uns escassos quinze metros, um javardo duns trinta e tal quilos assistia interessado ao espectáculo.

Tal como o outro, não teve tempo para pensar duas vezes nem achar melhor solução. Deitou mão à carabina e lá vai chumbo, mas a posição de tiro, pouco ortodoxa, não lhe permitiu o resultado pretendido. O tiro ecoou pela encosta despertando do silencioso sono matinal uma vara porcos que por ali se acoitara. Agora já com a arma bem segura e apontada, quando um dos porcos atravessou o barranco, o disparo foi certeiro.

O ff.sh.tt...PUM ..!!! do morteiro indicando que a montaria ia começar foi apanhá-lo naquela posição caricata, com carabina nas mãos apontada ao resmalhar das estevas na encosta fronteira, e as calças enrodilhadas nos tornozelos, caídas sobre os canos das botas. Uma escassa dezena de metros à sua frente, o barrasco esperneava os últimos alentos de vida, meio oculto pelas estevas na borda dum silvado.

Abençoada seja a sorte dos inocentes, que os deixa matar porcos até de calças na mão....

DEO GRACIAS

Montaria na Contenda, Gancho do Tio Caleiro, Porta nº 7 Fev. 1987 ( adaptado)
 
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