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"Não saí antes da TVI porque o Moniz estava lá"

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RoterTeufel

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Entrevista: Miguel Sousa Tavares
"Não saí antes da TVI porque o Moniz estava lá"

Está de volta à SIC, de onde saiu há dez por discordar da linha editorial que estava a ser traçada. E faz a mesma crítica à estação de Queluz. Acredita na auto-regulação do jornalismo mas diz que a publicação de escutas "é terreno pantanoso".


‘Sinais de Fogo' estreou com boas audiências, 13,9%, mas comentou-se que entervistar o primeiro-ministro era uma forma de branqueamento...

São comentários de blogues? Isso é o lixo de Portugal. Não vou comentar uma única frase de blogues. Só li um comentário ou dois que vinham nos jornais, e que respeito porque as pessoas assinam o que escrevem, que diziam ter sido a mais contundente das entrevistas a José Sócrates. Mas não posso fazer uma entrevista e comentá-la. Isso não me cabe a mim.

Mas sobre o branqueamento de imagem, diz-se que Sócrates saíu fortalecido...

Vou tentar responder sem me irritar... Para não me acusarem de ser José Sócrates. Se não entrevistamos é porque estamos a ser cúmplices do silêncio dele. Se entrevistamos, quando toda a gente queria a entrevista, é porque pode ser um branqueamento... Nem comento. Ou comento. Bardamerda. Adiante.

Na sua estreia na SIC, no dia em que Rui Pedro Soares, ex - administrador da Portugal Telecom, interpôs uma providência cautelar ao semanário ‘Sol', fez questão de frisar que não estávamos a passar por momentos de censura, ao contrário de outros jornalistas.

Eu já escrevi isso. Que apareça a primeira pessoa e ponha o dedo no ar a dizer ‘eu quis escrever isto e não me deixaram'.

Os casos de Manuela Moura Guedes e Mário Crespo não foram censura?

Você acha? Há um director de jornal que recusa publicar uma crónica e, no dia seguinte, o texto está no site do Instituto Sá Carneiro e, uma semana depois, editado em livro. Eu já vivi num país com censura, já conheci países com censura, e não me lembro de censura assim. E quando vejo a Manuela Moura Guedes ter direito a 20 minutos em directo do telejornal para dizer que há censura... Sinceramente, tomara a líder da oposição birmanesa.

O que se passa então agora entre a classe política e a classe jornalística?

Penso que é preciso dar nas vistas, isso é que vende jornais. Há uma confusão de conceitos, que não sei se é voluntária ou se é negligente, mas que está a ser feita de forma leviana. Expressões como ausência de liberdade, ditadura, são demasiado graves para serem usadas porque um director de jornal recusou publicar uma crónica do Mário Crespo sem que este indicasse qual era a sua fonte. Eu não publicava. Já fui director, e não me considero um ditador nem um censor, e não publicava. Porque se publico um artigo desses, amanhã qualquer jornalista meu pode vir dizer ‘fulano, que não posso dizer quem é, ouviu isto num restaurante'. E o meu jornal é uma coisa baseada em fontes anónimas de restaurante. Não pode ser.

Isso está a minar o jornalismo neste momento?

É um terreno muito perigoso e pantanoso. E as pessoas têm de ter consciência de que vão deslizar por ele abaixo. É como a questão da publicação de escutas telefónicas, que foram colhidas para um processo judicial e depois aparecem num processo jornalístico. Se um dia os jornais substituirem o julgamento dos tribunais será muito grave. Se aceitarmos que o interesse público está sempre à frente da reserva do direito à vida privada, como diz a Constituição, e que invocando o interesse público pode publicar-se as conversas privadas de alguém, o caminho é perigosíssimo. Até porque interessa responder a uma questão? Quem é que define o interesse público? Qualquer director de jornal? Ele é juiz em causa própria? Não escondendo o conteúdo das escutas, e questionei o primeiro-ministro sobre isso, a verdade é que, tanto quanto sei, o Rui Pedro Soares, o centro das escutas, nem sequer é arguido, nem suspeito de crime nenhum. É como uma conversa sua com alguém que era arguido ir parar ao jornal. Não aceito isso. Não aceito como método jornalístico, não aceito em termos de cidadania, de direitos...

Mas a sua crítica é ao facto de virem a lume conversas que estavam em segredo de justiça?

Isso é o ponto número 1. Ponto número 2 é como se faz um jornalismo com base nisso. No outro perguntavam-me o que faria se me tivessem enviado as escutas. Era muito simples. Pedia ao jornalista que investigasse. Não publicava assim. Agora, ter um amigo no Ministério Público ou na Polícia Judiciária que, à socapa, lhe manda o processo das escutas, isso não tem nada de investigação. Nada. Não venham cá falar do rigor jornalístico. Isso são balelas, tretas.

E o que se pode fazer?

Sei lá eu. Devia haver um congresso de jornalistas para decidir exactamente o que é lícito fazer para recentrar as noções deontológicas. Há 20, 30 anos havia um consenso sobre o que se podia ou não podia. Depois do grande deboche jornalístico, que foi a seguir ao PREC, em que todos jornalistas acharam que deviam ser militantes políticos, houve uma espécie de toque a rebate e os jornalistas foram capazes de se juntarem nomeadamente no 1º congresso de jornalistas. Onde eu estive com uma dissertação intitulada ‘Mea Culpa, a dizer que grande parte dos males do jornalismo era culpa nossa. A partir daí chegou-se a um consenso, era claro o que podia ou não fazer. Agora é tudo confuso outra vez.

Acredita na auto-regulação dos jornalistas?

Acredito que o jornalismo deve auto-regular-se, mas não só. Acredito num sistema de equilíbrio de poderes em que a cada poder corresponde um contrapoder que o controla. O poder dos jornalistas deve ser primeiro controlado pelos tribunais, que o é. O que não impede que haja uma auto-regulação, que existam armas de conduta e deontológicas que são aceites por todos e não aceites conforme as circunstâncias e oportunidade.

Qual o papel da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) nisto tudo?

A ERC acaba por ser um mini-parlamento que reproduz um bocado aquilo que são as divisões políticas da sociedade. Era possível fazer uma ERC com pessoas prestigiadas que estão retiradas do jornalismo activo. Era fácil encontrar em Portugal cinco ou seis nomes consensuais de pessoas que são referência no jornalismo, na Informação.

As que estão lá não são referência?

O problema é esse. Não é que estes estejam de má vontade, ou sejam mal intencionados. Mas não têm uma base de trabalho jornalístico, não têm conceitos apurados, não gastaram muito tempo a pensar nisso. O que se passa hoje na ERC não é muito edificante. Em vez de tomarem um consenso, o que não impede que haja divergências na análise dos casos, vivem num ambiente onde só lhes falta andar à estalada. Se não se entendem entre eles, é difícil que regulem seja o que for.

Acha que deviam ter mais poderes?

Sendo como é o órgão é difícil dar-lhes mais poderes, senão poderia tornar-se mais perigoso. Francamente não sei. Para já não gosto do nome. Dantes havia um conselho de Imprensa, que funcionava melhor e era prestigiado. Agora ERC nem sei bem o que é. Parece mais uma sigla dessas europeias, o nome de uma vacina... Eu reformulava o órgão, tornava a eleição dos membros diferente mesmo.

-De que modo?

Retirando poder aos partidos políticos para nomear. Ou então nomeava só o presidente, que por sua vez escolhia dois, e esses dois escolhiam outros dois, num sistema de cooptação.

-Está sozinho a apresentar este formato ‘Sinais de Fogo', na SIC, foi por opção?

Foi o formato que ocorreu e realmente também me sinto muito solitário

-A primeira parte...

... parece o ‘Sozinho em casa'. Sozinho no estúdio. C'est la vie. (risos)

-Mas foi por falta de co-apresentadores? Ficaram célebres as suas quezílias com Paula Teixeira da Cruz, no programa de estreia na TVI. É verdade que ela deixou de lhe falar?

- Falso. Rigorosamente falso. Não nos vemos muito, somos amigos, mantemos o respeito um pelo outro.

- Mas houve trocas verbais violentas...

Isso é normal num programa de confronto de ideias.

- E no caso de Manuela Moura Guedes? É-lhe difícil não levantar a voz numa troca de ideias?

Por que é que o culpado sou eu e não a Manuela Moura Guedes?

- E no caso da Paula Teixeira da Cruz, que tem uma postura mais tranquila?

Digamos que são dois espíritos fortes em estúdio, que, de vez em quando, faziam faísca. E eu e a Manuela não temos as mesmas ideias sobre muitas coisas.



Quando terminou o ‘Jornal Nacional de 6.ª', disse que era o fim do ‘jornal nacional de manipulação'...

E disse que era um atentado à liberdade. Nunca vi, em nenhuma televisão do Mundo, um jornal como aquele.

Considera que esteve demasiado tempo no ar?

Acho que nunca deveria ter estado no ar. Pense-se o que se pensar do actual primeiro-ministro, aquilo era um jornal para atacar uma pessoa concretamente. E às vezes perguntava por que não se fazia uma emissão contra o Paulo Portas ou a Manuela Ferreira Leite, outra contra o Jerónimo de Sousa ou o Louçã. Não há nada? Porque não investigam os submarinos ou os dinheiros da Festa do ‘Avante!'. Lembro-me de ter dito à [jornalista] Ana Leal: o que acontece ao vosso jornal no dia em que Sócrates for absolvido? Se a justiça chega ao fim e não apura nada. O jornal morre por falta de objecto. O caso Freeport dura há seis anos por uma única razão: porque ainda não conseguiram entalar o Sócrates. Se fosse o Zé dos anzóis já tinha sido arquivado. Acho inconcebível que um primeiro-ministro viva sob suspeita de corrupção durante seis anos e que os contribuintes estejam a pagar esta investigação. Nós não podemos ser governados por alguém que não sabemos se é corrupto ou não. O Ministério Público tem obrigação de, rapidamente, apurar aquilo. Ou tem indícios, ou não tem indícios. Agora, permitir que o primeiro-ministro seja queimado em lume brando na Imprensa enquanto eles arrastam o processo à pesca à linha, a ver se alguém morde o anzol, é inconcebível. Eu não quero ser julgado assim. Não quero ter um primeiro-ministro julgado assim.

Mas acabou por sair da TVI após a saída de José Eduardo Moniz e do fim do ‘Jornal de 6.ª'. Não teme ficar ligado a essa linha editorial?

Ao ‘Jornal de 6.ª' não fico ligado de certeza, ao José Eduardo Moniz sim. E eu não saí da TVI antes porque ele estava lá.

- Antes de ir para a TVI teve um diferendo com José Eduardo Moniz, na RTP...

Claro, mas se entrei na TVI foi porque ultrapassámos esse diferendo. Mas eu tinha definido para mim que não saíria da TVI enquanto ele lá estivesse. Nunca lhe disse isso, directamente, mas estava definido na minha cabeça. E já tinha o convite da SIC há muito tempo.

Há quanto tempo?

Há mais de um ano, insistente e renovado. No dia em que José Eduardo Moniz saiu, recebi logo um telefonema do Luís Marques [director--geral da SIC] a dizer que eu já não tinha argumentos.

Como era a sua relação com a actual Direcção de Informação da TVI?

Era óptima, sou amigo do Júlio Magalhães.

Pensa que a TVI perdeu o pé sem Moniz. Ele era mesmo o timoneiro da TVI?

Não mudou nada de essencial. O problema da TVI é mesmo a matriz editorial da estação. É impossível ter um programa como o que tenho na SIC na TVI, porque esta exibe o ‘Jornal Nacional' e a seguir três horas de novela. E não faz mais nada.

Nunca teria um espaço próprio na TVI?

Saí da SIC há dez anos, quando a SIC vivia um fenómeno semelhante. Era líder de audiências, tinha 50% de share e começou a cortar na informação para fazer programas de entretenimento, ‘Acorrentados' e tudo isso. E disse ao Emídio Rangel [ex director da SIC] que ali não me interessava estar. Fui-me embora, fazer coisa nenhuma. A TVI vive a mesma situação. Cansei-me de fazer os comentários no ‘Jornal Nacional' e não havia outra coisa para mim. A verdade é essa. Não havia mesmo. Portanto, ou ficava ali e não fazia nada, ou aceitava o convite de alguém que me desse esse espaço para fazer jornalismo. E, se quer que lhe diga, na TVI acho que fui muito mal aproveitado.

Eles não tinham mesmo espaço para mais?

Pois. Pelos vistos não tinham. Mas acho que deveriam ter. Eles são líderes de audiência, aquilo é uma estação comercial, o objectivo é o lucro. Eu aceito isso. Agora não se pode ter sol na eira e chuva no nabal. O meu espaço na TVI limitava-se ao ‘Jornal Nacional' e às noites de eleições.

Desejava mesmo ter um espaço maior?

Sinceramente, e sem querer considerar-me o melhor do mundo,até pelo dinheiro que me pagavam, que não era pouco. Eu sou bem pago.

-Posso saber quanto?

Não. A única coisa que pode saber é que pago 42% de IRS. Portanto, quando souberem o que eu ganho tirem-lhe 42%. Mas eu se fosse director de Informação da TVI pegava no Miguel Sousa Tavares e usava-o mais e melhor

A sua saída deve-se à entrada da Ongoing na Media Capital/TVI?

Contou, mas não foi um factor determinante.

Disse que tinha 'medo de grupos que aparecem do nada'...

Sim, isso contou em parte, mas não foi um factor determinante.

Mas a Ongoing tem 23% da Impresa, dona da SIC. Não é um contra-senso?

Mas vai vender.

Será que vai?

É obrigada.

Se quiser comprar a Media Capital...

Sim. A menos que volte atrás no negócio.

Já sentiu pressões na sua vida profissional?

Claro que sim, todos os jornalistas sentem.

E são mais pressões políticas ou económicas?

Há mais pressões económicas. As verdadeiras pressões são essas. O director do ‘Sol', o arquitecto Saraiva, apresenta como exemplo das pressões que sofre a falta de apoio do seu accionista BCP, que fechou a torneira do dinheiro a partir do momento em que eles passaram a publicar notícias sobre o caso Freeport. Até acredito que seja verdade, mas eles já nasceram debaixo de uma pressão, que era o BCP. Quando um jornal aceita como principal accionista o maior banco comercial português, está debaixo uma pressão enorme. Está a contar com publicidade do BCP, está a contar com dinheiro do BCP quando for preciso. Tinha administradores do BCP na administração do jornal. Já nasceram condicionados. Um jornal que tem o BCP como accionista não pode publicar notícias contra o BCP. É óbvio. Portanto, acho completamente hipócrita que ele depois se venha a queixar que o BCP deixou de apoiar. E que isso era uma manobra política a mando do Governo. Talvez ele tenha razão, mas pôs-se a jeito.

O grupo Ongoing também parece estar a favorecer o governo de José Sócrates? Nomeadamente quando se fala na entrevista do Luís Figo ao ‘Diário Económico'?

Não está provado que tenha sido um frete feito pelo ‘Diário Económico' a José Sócrates. Nem sequer está provado que tenha sido um frete do Luís Figo a José Sócrates. Vamos admitir que o Figo, de facto, quis fazer um favor político a José Sócrates, remunerado ou não. Ninguém pode dizer que os directores do ‘Diário Económico' sabiam disso quando o foram entrevistar. Nem sei que interesse tem para os leitores que o Luís Figo goste de José Sócrates? A gente sabe é que Luís Figo sabe jogar à bola, agora o que percebe de governação do País não interessa nada. Não vou votar num candidato que os jogadores do Futebol Clube do Porto indicarem. Não voto no candidato que o Falcão indicar.

-Mas pode ser considerado propaganda...

Isso é porque os partidos e as agências de publicidade têm uma concepção da cabeça dos consumidores que é absurda. Ver a direcção do Benfica levada pela mão do Pedro Santana Lopes, que até é do Sporting, a um jantar da campanha eleitoral do Durão Barroso era degradante, para o Benfica, para o PSD, degradante para a concepção de como se ganha uma eleição. Agora, todos os benficas votam em nós... As pessoas não são assim tão estúpidas.

- A promoção de ‘Sinais de Fogo' fala em ‘tempos conturbados'. Sente obrigação de comentar estes tempos?

Sou pago para comentar. É a minha profissão.

- No Verão disse que estava a pensar sair do País e ir para o Brasil. O que o fez mudar de ideias?

Mudei de ideias... Quer dizer, nunca disse que ia para o Brasil. Perguntaram-me, a certa altura, porque é que gostava tanto do Brasil. E eu disse que gostava muito do Brasil, do Rio de Janeiro, e talvez um dia me apetecesse viver no Rio de Janeiro. Puseram-me logo a bordo do avião, mandaram-me comprar um bilhete só de ida e havia quem gostasse.

- Mas mudou de ideias?

Nunca tive a ideia de sair. Era uma possibilidade. Como dizer que um dia podia ir viver para o Alentejo. Mas houve quem ficasse tão excitado com a ideia que quase me deu ordens de exílio.

-Estamos a viver uma fase particularmente difícil em Portugal. Falar para as pessoas ajuda alguma coisa?

Seguramente ajuda. A mim ajuda-me a pensar ler o que outras pessoas escrevem ou dizem. Nenhum de nós tem o conhecimento da verdade ficando fechado em sua casa, não lendo, não ouvindo, não discutindo. Agora, isso não chega para fazer ultrapassar o momento dificílimo que o País atravessa. E não é de agora. O nosso momento difícil tem décadas, tem quase um século. As razões do mal português vêm muito de trás, são muito fundas. E vão-se agravando com os tempos. Vivemos sempre a enganar o nosso destino com os dinheiros europeus, com os dinheiros das colónias de África, com o ouro do Brasil. Vivemos sempre de coisas externas que nos viriam salvar porque nunca conseguimos ser verdadeiramente autosuficientes. Não entra na cabeça de nenhum português que a dívida do Estado chegou a 100% do PIB. Que toda a riqueza que se produz em Portugal durante uma ano inteiro é igual à dívida do Estado. E nós vamos ter de pagar. Porque se não pagarmos, os nossos filhos e os nossos netos vão herdar as dívidas. Os portugueses não aceitam isso. Eu ganho o mesmo que ganhava há seis anos, num sítio onde trabalho até reduzi o que ganho. Mas as pessoas pensam que é sempre o Estado que lhes acorre. O grande mal português é esse. O Estado é uma mina de ouro sem fim, que vai acorrer aos problemas de cada um, e as pessoas podem viver com direitos de tudo, sem deveres de nada, sem correr riscos. Vivendo o que eu digo ser uma vida a feijões. Quando tudo corre bem está ali a feijoada e quando tudo corre mal não há feijões, era a brincar.

Portugal é o terceiro país com mais assimetria entre muito ricos e pobres. Como se corrige isso?

Mudando a mentalidade dos nossos empresários, que ainda não perceberam que um trabalhador mal pago é um mau trabalhador. Que amanhã, se lhe fizerem uma proposta cinco por cento acima ele vai-se embora e não tem fidelidade à empresa. E essa, infelizmente, é a mentalidade dos nossos empresários.

- Pertencer a uma família militante é uma herança pesada?

Não, de todo. Foi uma coisa formativa, não foi nada pesado, pelo contrário. A melhor herança familiar que recebi foi o gosto pela liberdade e isso é uma coisa que carrego com muito gosto. Muitas vezes não é fácil. Portugal não é um País nada fácil para se ser livre, por todas as razões, para se fazer jornalismo também. Agora, continuo a achar que é a forma mais bonita de se viver, a que nos deixa melhor connosco próprios. E é a que eu devo aos meus pais.

-Essa postura já lhe trouxe dissabores?

Muitos mesmo.

- Em 1998 foi convidado para a direcção-geral da RTP e recusou. Hoje aceitava?

Não.

-Porquê?

- As razões hoje são ainda mais prementes. Não queria um lugar de mando, burocrático. Na altura, queria criar, escrever livros. E hoje continuo a querer fazer coisas. Não quero mandar fazer, quero fazer eu.

-Mas a RTP, como serviço público, deveria ter um papel pedagógico, até.

Devia e precisa de um bom director. E tem pessoas boas para isso. Mas não é a minha ambição pessoal, de todo.

-Vai voltar à ficção com um novo grande romance?

Não. Tomara eu. Escrevi um quase romance, como lhe chamei, que é ‘No teu Deserto', e escrevi agora um livro infantil, grande. Quase um romance infantil, ‘Ismael e Chopim'. O resto só consigo quando tenho ideias. Não consigo ter o método que outros têm. Sentam-se e vem a ideia. Não. Eu tenho de ter uma ideia e depois sento-me para a escrever.

-Porquê um livro infantil? Não é mais dificil escrever para crianças?

É muito mais. E por isso mesmo é um bom desafio para um autor. Por outro lado, para além de bom é uma coisa útil que um autor faz, tentar escrever bem para crianças para depois ter leitores, para que elas gostem de livros. Porque elas têm jogos electrónicos fantásticos, programas de televisão fantásticos, têm iPods, têm todos os gadgets possíveis e imaginários que as distraim da leitura. Portanto, também têm de ter bons livros. Agora fala-se muito que com o Kinder vão desaparecer todos os livros tal como os conhecemos, que vai ser tudo e-books e assim. Eu não acredito.

-A Agustina Bessa-Luís dizia que sim, que oito séculos de literatura foram suficientes, e que a literatura estava destinada a acabar...

Não acredito. Não acredito numa civilização em que as pessoas não sejam ensinadas a ler desde pequenas. Não quer dizer que tenham de ler toda a vida, mas pelo menos conhecer a existência da literatura, dos livros. Até a nível concreto, do livro objecto. Infelizmente, quase perdi o olfacto numa operação ao nariz que tive de fazer, mas ainda guardo comigo o cheiro dos livros de infância que mais gostava. Lembro-me perfeitamente do cheiro da edição do ‘Moby Dick', dos livros de Júlio Verne, do Sandokan, do ‘Huckleberry Finn', e lembro-me da capa, da textura de páginas, de tudo isso que faz de um livro um objecto particular. A única coisa que não empresto na vida são livros. Empresto tudo, empresto a casa, o carro, as roupas, tudo... menos os livros. Porque gosto de livros, sou agarrado aos livros.

-Hoje, como se cativam as crianças para a leitura?

A criança tem um mundo imaginário fantástico que a literatura tem, a meu ver, mais capacidade de explorar do que têm, por exemplo, os jogos de realidade virtual dos computadores. Acredito que sim. Que o ‘Moby Dick' é muito mais mobilizador para uma criança do que o jogo electrónico do ‘Sin City', em que eles andam a atropelar pessoas no computador. A criança tem um potencial de imaginação, de magia, de inocência, de descoberta e de mistério que um bom livro serve e ajuda a desenvolver. Aliás, vejo com a experiência dos meus dois livros, a quantidade de escolas do País que, à conta daquilo e por iniciativa dos professores, transformaram os livros em peças de teatro que as crianças adoram. É muito importante. E já estou a escrever com a noção de que esse livro tem de ser teatralizado.

-Além da militância jornalística, porque não vai mais além? Investe-se nas crianças e nos adolescentes não...

Exacto. Há um grande défice de livros para adolescentes, por acaso. Eu escrevo para adultos e para crianças, e nunca me ocorreu escrever para o meio termo. Para quem tem 16, 17 anos, 13, 14, por aí. Mas esse ponto é bem notado. Eles param de ler também por défice de oferta.

- Será bem mais complicado...

Deve ser tanto como escrever para crianças. Ou talvez menos. Porque uma pessoa, aos 50 e tal anos de idade meter-se na cabeça de uma criança de 5 ou 6 anos não é fácil. Eu tento escrever livros infantis enquanto tenho memória da minha própria infância... A adolescência é importantíssima para puxar leitores e levá-los para outras coisas. É a idade onde se podem ter romances históricos, que não sejam tão exigentes como os de adultos, que se podem ter os grandes livros de aventura, tudo isso. É muito importante, mas realmente há um grande défice... Eu passei directamente do Júlio Verne para o Jorge Amado. E é um salto muito grande.

-E porque razão as televisões não apostam nesse público?

Apostam nos ‘Morangos com Açucar', que é uma coisa perniciosa para a formação das criancinhas e dos adolescentes, na minha opinião. É um total vazio. Às vezes, quando me estava a maquilhar na TVI, olhava para os ‘Morangos' e tinha uma dúvida: Será que este mundo existe ou é inventado?. Aquilo é um mundo de total vazio e estupidez que mete medo, terror mesmo. Se aquilo é um retrato dos nossos adolescentes assusta muito. E então aí, voltamos atrás. Portugal não tem saída, está perdido. Se a geração que está na forja pensa como os tipos dos ‘Morangos com Açúcar' estamos perdidos, não há salvação nenhuma... Generalizar é sempre perigoso, mas se for assim...

- A televisão, falando para grandes massas, tem a missão de evitar isso.

A TV tem essa missão, as escolas têm essa missão, mas não há nada que substitua a missão dos pais. Temos pais que, com muita facilidade, se demitem. Faz-me a maior impressão que o comum dos pais em Portugal, não sei se lá fora será igual, ao fim-de-semana ligue a TV para as crianças não incomodarem e ficam assim o dia todo. Nunca um filho meu teve tv no quarto e nunca teve um horário de ver televisão o tempo todo. A grande obra da minha vida, não teve nada a ver com o jornalismo, com os livros que escrevi, mas sim com a maneira como eu tentei educar os meus filhos, sempre. E perder tempo com eles. Sempre fiz coisas com eles, toda a vida. Falamos de História, vamos à pesca... mas nunca me sentei com os meus filhos em frente à televisão, nunca.

- Com saída da TVI acaba a adaptação das suas obras? Havia um projecto para ‘Rio das Flores'?

Não faço ideia. Mas eram coisas totalmente independentes. Disseram-me que iam fazer o ‘Equador', quando eu, por um dever de lealdade, disse ao José Eduardo Moniz que tinha uma proposta da RTP para adaptar o ‘Equador'.

Sei que não ficou muito satisfeito com a série...

Fiquei muito satisfeito com a realização, fiquei muito satisfeito com o trabalho de actores, com o investimento. Não fiquei muito satisfeito com a adaptação. Com o texto.

Na RTP teria sido mais cuidada?

Há um problema difícil de ultrapassar. O ‘Equador' bem feito daria 12, 14 episódios. 14 episódios não são comercialmente sustentáveis. Pelo menos para uma televisão que não vive das dotações do Estado. E, por isso, em vez de 12 ou 14 foram 26. Há 14 episódios a mais, há palha ali dentro. Foi isso que não gostei. Compreendo que tinha de ser assim, assinei o contrato assim mesmo, mas não gostei do resultado. De certeza que a RTP, que não tem os mesmos constrangimentos orçamentais, talvez pudesse fazer melhor nesse aspecto, agora não sei se a produção e a realização seriam melhores. Porque investiram tudo e tinham uma super-equipa à frente

- Gostava de voltar a representar?

Toda a vida estive tentado a representar. No liceu representava teatro, Gil Vicente. Eu andei no Gil Vicente. Tive um convite da Mariana Rey Monteiro para ir para actor, ao mesmo tempo que tive um convite para jogar futebol nos juvenis do Belenenses e o meu pai recusou os dois em meu nome. Eu era muito mau aluno.

- Também estudou no Colégio S. João de Brito. E li algures que foi uma má experiência.

Muito má. Tudo aquilo que eu desejo que um colégio seja para os miúdos, não era aquilo. Dizem que hoje em dia mudou muito, Eu acredito. Só podia. Mas estava tudo errado, tudo, tudo errado, do ponto de vista pedagógico. A única que não estava errada era a importância que se dava ao desporto. Era campeão crónico de voleibol. Cada turma tinha a sua equipa. Nós jogávamos futebol, basquete e tinhamos um super ginásio. Mas, tirando essa parte, tirando o ‘corpus sane', não era nada saudável.

Passou para o Gil Vicente que era o oposto, em termos de escola...

Era. Só havia um campo de futebol em cimento. Passava a vida esfolado, magoava-me a sério para jogar ali. Do ponto de vista pedagógico, não era melhor que o S. João de Brito. Do ponto de vista educacional era fantástico. Ninguém nos ligava bóia, portanto aprendi a ser autónomo, independente e a responder por mim.

Isso foi fundamental?

Claro. Passei logo a ser bom aluno, muito melhor do que era. Senti que aquilo era de mim para mim. Eu é que era responsável. Porque se quisesse faltar às aulas ninguém me ia buscar. Não estava fechado dentro de muros, como estava no S. João de Brito. Não se podia sair do colégio, só com uma autorização dos pais. Aquilo era uma prisão e de repente passei para um regime de liberdade.

Quantas pessoas trabalham neste programa da SIC?

Eu e outro jornalista, em exclusivo. Depois há uma produtora e um realizador e mais pessoas para o programa. Mas é pouco...

PERFIL

Nasceu no Porto, filho da poeta Sophia de Mello Breyner Andresen e do jornalista e advogado Francisco Sousa Tavares. Licenciado em Direito, optou pelo jornalismo e aos 57 anos soma também uma carreira literária de sucesso. ‘Equador’, ‘Sul’, ‘Rio das Flores’ e ‘No Teu Deserto’ são alguns dos seus títulos. Vai lançar mais um livro infantil, ‘Ismael e Chopin’. “A grande obra da minha vida nada teve a ver com jornalismo, com os livros que escrevi, mas sim com a maneira como tentei educar os meus filhos. E perder tempo com eles”.


Fonte Correio da Manhã
 
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