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Abstenção O aviso de que o sistema democrático está doente

florindo

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Out 11, 2006
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Os portugueses tendem a votar cada vez menos e foi numas eleições presidenciais que se atingiu o recorde de abstenção. A culpa é dividida entre cidadãos, políticos e Estado. O voto obrigatório é a solução?

Freitas do Amaral diz que boa parte da abstenção se deve à manutenção nos cadernos eleitorais de pessoas que já morreram - uma pecha no funcionamento do sistema numa altura em que a informática e a tecnologia são tão desenvolvidas. Jorge Miguéis, director-geral da Administração Eleitoral, olha para os chamados "eleitores-fantasma" - denominação de que, aliás, não gosta - como portugueses que mudaram de residência, parte deles para o estrangeiro, e não actualizaram a morada nos cadernos. Os politólogos ouvidos pelo PÚBLICO falam sobretudo de um distanciamento dos cidadãos em relação à política.

Mas quem são os portugueses que entram nas contas da abstenção cada vez mais elevada? Estão mortos? Ou simplesmente não querem votar?

A imagem pode parecer estranha, mas tentemos: a abstenção é como uma dor persistente numa perna, um aviso de que algo não está bem. A analogia é feita pelo politólogo Manuel Meirinho, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. "A abstenção elevada, como se prevê que seja também nestas eleições, é um sintoma de que o sistema democrático não está bem, de que começa a ficar doente."

Os níveis de abstenção mostram que os portugueses hierarquizam as eleições consoante as que mais directamente interferem com o seu quotidiano, defendem todos os politólogos. Daí que nas europeias a ausência das urnas ande sempre acima dos 60 por cento desde a década de 1990 e nas autárquicas ronde os 40 por cento.

Nas presidenciais e nas legislativas a tendência é mais variável, embora tenha sido nas primeiras que se ultrapassou a barreira dos 50 por cento, na altura da reeleição de Jorge Sampaio. "Quando há recandidatos é sempre certo que a abstenção aumenta", constata Carlos Jalali, da Universidade de Aveiro, que acrescenta o facto de o Presidente, "ainda que não seja mera figura decorativa, não é quem governa", pelo que estas eleições se tornam "menos atractivas" para o eleitor. As legislativas têm mais adesão por estar em causa a governação, com impacto directo na vida dos cidadãos.

Além desta hierarquização, entre as razões para a abstenção está a pouca competitividade entre candidatos, a descredibilização da política e dos políticos e também algum laxismo por parte dos cidadãos, dizem os mesmos investigadores. A que se soma a diluição da ideologia dos partidos - em vez de serem de nicho, são cada vez mais abrangentes, para ganhar votos. "Quantos partidos promovem debates e tertúlias, quantos militantes vão colar cartazes?", interroga-se Jalali.

Há também que não esquecer o factor protesto, que justifica uma boa fatia da abstenção. Que deve ser somado ao que emana dos votos em branco e nulos - em presidenciais recentes chegaram a somar dois e três por cento, mais do que alguns candidatos. Meirinho defende que a indiferença e apatia são também duras formas de criticar.

Eleitores a mais?

Há ainda a questão técnica do sobre-recenseamento: a limpeza das listas não é sistemática - o financiamento das autarquias, número de mandatos e salários dos eleitos dependem do número de eleitores, pelo que o esforço de actualização é pequeno, lembram Jalali e o investigador de Ciência Política José Bourdain - e agora o registo é automático quando se atinge os 18 anos.

Os estudos de Bourdain sobre os "eleitores-fantasma" mostram que estes serão na ordem dos dez por cento, cruzando dados do INE da população residente em Portugal com os números da Administração Eleitoral: dos 9,5 milhões de inscritos, quase um milhão não existe.

É difícil traçar um perfil do abstencionista. Falta em Portugal um instituto de estatística de opinião, uma entidade estatal que faça inquérito sistemáticos aprofundados - as empresas de sondagens são privadas e funcionam à velocidade que os media e os partidos precisam delas.

Perfil do abstencionista

Mas será, em princípio, alguém com menor nível de educação, com sentimento de distância em relação ao Estado (pensa que a sua participação não conta), desconfia do funcionamento das instituições e tem menos identificação partidária (não se situa à direita nem à esquerda), descreve o politólogo António Costa Pinto. Dizer que os jovens votam "é um estereótipo", mas na verdade não se sabe. Os eleitores com 34 anos ou menos (2,4 milhões) são quase um quarto do total.

"A abstenção deve servir como aviso aos partidos e ao Estado de que o sistema está doente. Um dia será o próprio regime", defende Meirinho. Os primeiros devem procurar uma maior credibilização e transparência e reforçar o relacionamento entre eleitores e eleitos.

Quem nunca ouviu as queixas recorrentes nas campanhas de que os políticos só se lembram dos problemas a cada quatro anos? E o Estado deve investir a sério na sensibilização. "Para as subvenções serão 3,8 milhões de euros, um pouco menos em tempos de antena e a campanha de apelo ao voto recebe algumas dezenas de milhares de euros. É uma disparidade gritante", critica o politólogo do ISCSP.

Carlos Jalali soma a aposta na educação e socialização, lembrando o estudo de uma comparação de duas turmas do 12.º ano de uma escola aveirense: os alunos que estudaram Ciência Política abstiveram-se menos nas eleições de 2009 do que os que não tiveram a disciplina.

Voto obrigatório?

O modo mais fácil de baixar a abstenção seria tornar o voto obrigatório e punir a falta à urna com uma sanção efectiva - multa ou restrição de um direito social ou cívico. Na Europa, o voto é obrigatório na Bélgica, Grécia, Itália e Luxemburgo.

"Resolvia-se o problema, mas matava-se o mensageiro", critica Carlos Jalali; "criava-se um cenário artificial", contesta Manuel Meirinho; "nem sempre melhora a qualidade da democracia", avisa António Costa Pinto. A solução, defendem, é lidar de frente com as causas em vez de "resolver por decreto".

A implementação do voto obrigatório em Portugal levanta dúvidas. Para António Costa Pinto bastará mudar a lei eleitoral, mas os três constitucionalistas que o PÚBLICO consultou têm visões diferentes. Jorge Reis Novais diz que seria preciso incluí-lo no texto fundamental, no capítulo dos princípios eleitorais. Tiago Duarte tem dúvidas: "À partida não seria necessário [alterar] porque a Constituição também não diz que o voto é facultativo. Só se se entender que pode ir contra um princípio de liberdade."

Liberdade de escolha

E é precisamente por essa questão que Isabel Mayer Moreira defende que será necessário "perceber primeiro o entendimento sobre se tal obrigatoriedade não colide com a liberdade de consciência".

A constitucionalista entende que essa obrigação é contraditória com os direitos de liberdade: "A Constituição permite-me, em democracia, ter a liberdade de consciência de não votar porque nenhuma opção satisfaz as minhas convicções políticas ou mesmo por não querer, de todo, participar num acto eleitoral."

Tiago Duarte considera que as dúvidas constitucionais podem levantar-se quanto às sanções escolhidas para punir a falta ao voto que, essas sim, "poderiam ir contra algum princípio constitucional". Mas o constitucionalista diz não achar necessário introduzir o voto obrigatório.

"Não votar é também um exercício de liberdade. Não me parece que a democracia melhorasse. Tudo o que é obrigatório cria sentimentos de rejeição e causa reacções epidérmicas." O que também é considerado um sintoma de doença. Por isso, hoje mais vale ir votar.

Público
 
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