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Biografia Mário Soares : Mimado, mulherengo e socialista

billshcot

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Nov 10, 2010
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A nova biografia de Mário Soares, escrita por Joaquim Vieira, revela o “menino a quem a vida satisfez todos os caprichos”

A biografia ‘Mário Soares – Uma Vida’, obra de Joaquim Vieira editada pela Esfera dos Livros, não é autorizada, mas uma página de entre as 762 (excluindo índices e anexos) será decerto mais desautorizada do que as outras.

"Isso lixa o livro." Foi com indignação que Mário Soares reagiu quando Vieira, a quem deu respostas cândidas sobre outros temas potencialmente embaraçosos, o confrontou com a informação, obtida junto de "uma fonte envolvida no processo, sob condição de anonimato", de que o então Presidente da República chantageou Jorge Sampaio, encarregando o sobrinho Alfredo Barroso de lhe comunicar que só seriam desbloqueadas verbas para os "depauperados cofres" do Largo do Rato se aceitasse ter João Soares como número dois na Câmara de Lisboa e "o substituto nas suas ausências".

Quando Vieira procurou confirmar o relato junto dos intervenientes, Barroso recusou comentar, João Soares rejeitou intervenções paternas na carreira política, e Sampaio não se lembrou de quaisquer negociações – garantindo que a campanha "foi financiada por angariações partidárias".

Mais sanguínea foi a reação do biografado: "Alguém pode imaginar, com uma mente sã, que eu, como Presidente da República, obrigado constitucionalmente a um dever de isenção, me empenhasse a angariar ou canalizar dinheiros para o PS?"

Sendo a relação de Soares com o dinheiro um dos temas desta biografia, não é o único foco de polémica no relato dos 88 anos de vida daquele a quem a própria Maria Barroso descreve como "um menino a quem a vida satisfez todos os caprichos". Além das lutas de quem combateu o Estado Novo, cortou com o PCP, foi preso e desterrado, enfrentou o antigo professor Álvaro Cunhal no PREC e descobriu novos inimigos, como Eanes ou Cavaco, ‘Mário Soares – Uma Vida’ não hesita em mostrar a faceta mimada típica de filho único (apesar de ter dois meios-irmãos), adepto do lusitano desenrascanço e obcecado pelo sexo feminino desde muito cedo, desferindo "facadas no matrimónio" que esfriaram a relação com a mãe dos seus dois filhos. Baseada em alguém que se considera "maior do que a vida", a biografia de Joaquim Vieira expõe os defeitos de um homem comum.

VIDA FAMILIAR

Nasceu a 7 de dezembro de 1924, filho do pedagogo João Soares e de Elsa Nobre, dona de uma pensão no Chiado.

"Ter um pai ex-padre, ao princípio, fez-me uma grande impressão." [...]

"Curei-me [da asma], passaram os anos, mas a minha mãe, por uma razão ou outra, não cumpria a promessa. Até que, um belo dia, resolveu cumpri--la. E lá fomos os dois a Fátima, eu já adolescente, com uma vela da minha altura. Achei-me ridículo."

TRATAMENTO ESPECIAL

Contou com a ajuda familiar e o seu engenho nas situações complicadas.

"Achava muito importante que um militante político fizesse o serviço militar. Mas o meu pai temia que eu fosse mandado para um batalhão disciplinar. Arranjou as coisas para que ficasse livre. Como o meu irmão, na época, era médico militar, não foi muito difícil." [...]

"Com o pretexto de que eu estava com asma e não podia tomar banho frio, o médico [da prisão de Caxias] aceitou que eu tomasse banho quente. (...) Eu punha-me completamente nu dentro do alguidar, com a malta toda a ver, e o guarda prisional regava-me com um regador."

ATRAÍDO E EXPULSO DO PCP

Influenciado por Cunhal, tornou-se o camarada ‘Fontes’, sem passar à clandestinidade.

"Foi com efeito o PCP que acabou por tomar a iniciativa do rompimento já em outubro de 1950, anunciando que (...) fora expulso por ter ‘sabotado’ reuniões do organismo, por ‘indisciplina’, por ‘derrotismo’ e, insolitamente, por apropriação de ‘bens do partido’. [...]

"Chegaram, por ordem do partido, a exercer pressões junto da minha mulher para que ela se separasse de mim."

ELOGIO DE MARCELO CAETANO

Depois do curso de Histórico-Filosóficas, entra para a Faculdade de Direito de Lisboa.

"Põe-me a mão no ombro e diz: ‘Se estudasse um bocadinho mais, podia chegar a professor desta casa, mas claro que tem de se deixar dessas veleidades políticas."

PRISÃO E EXÍLIO

A militância contra o Estado Novo valeu-lhe 12 detenções e vários períodos de exílio.

"Quando entrei no Aljube, não experimentava a sensação exultante do homem que cumpre o seu dever e que está sendo vítima de uma injustiça, em breve reparada. Tinha, antes, a impressão incómoda de que estava a fazer um sacrifício que pouca gente entendia." [...]

"O doutor Salazar está farto de que ande a brincar com ele. Acabou a brincadeira, injuriou-o na sua moral, isso é que ele não admite [palavras do subdiretor da PIDE José Sacchetti, na sequência do caso Ballet Rose]".

"Eu nem sabia ao certo onde estava São Tomé no mapa."

QUEIXAS DE ESPOSA E MÃE

As cartas de Maria Barroso mostram que toda a família sofreu com tantas ausências.

"Quando vieres, terás de falar mais vezes com o João: que tem realmente excelentes qualidades de caráter, mas que tem um feitio péssimo. (...) Tu és muito bom rapaz mas não intervéns suficientemente na vida dos teus filhos." [...]

"Nem uma linha recebo! Não tens tempo? Ou eu é que já estou trocada?" [cartas de Maria Barroso para Mário Soares].

REENCONTRO COM DELGADO

Participara sem entusiasmo na campanha presidencial de 1958. Voltou a ver Humberto Delgado em Praga.

"Quando entrei no quarto do hospital e o vi deitado na cama, pensei que estava diante de um moribundo! (...) Considerava que, dentro em breve, pelo menos foi o que ele me disse, voltaria a Portugal para matar Salazar!" [...]

MULHERES NA SUA VIDA

Ao longo da vida, deu provas de não ser crente na monogamia.

"Levanta-se o 28 de setembro e eu (...) abri uma gaveta dele, peguei nuns envelopes, meti neles tudo o que estava lá dentro e mandei-os para casa dele. (...) ‘O problema é que algumas dessas cartas eram de uma fotógrafa com quem Soares andou em Paris antes do 25 de Abril’, narrará quem lhe estava próximo. Ao receber o correio, Maria Barroso resolveu abri-lo." [depoimento de Bernardino Gomes e de um companheiro de exílio, sob condição de anonimato]. [...]

"Mário Soares sempre foi uma pessoa de dar facadas no matrimónio. E o Palma Inácio sempre serviu de desculpa. Quando Soares saía com ele, já se sabia – era o álibi. O Palma, que estava habituado a fazer esperas, esperava depois por ele no carro." [depoimento de um companheiro de exílio, sob condição de anonimato].

REGRESSO A PORTUGAL

A Revolução dos Cravos permite-lhe voltar de Paris. E exponencia o seu prestígio.

"Tinha, quando muito, a ambição de poder vir a ser um deputado do PS, mas na oposição. (...) Surpreendi-me muitíssimo quando cheguei a Lisboa e fiz o primeiro discurso às massas, na varanda de Santa Apolónia. (...) Jamais pensava ter aí o meu primeiro banho de multidão." [...]

"Percebi o cenário: Cunhal entre um soldado e um marinheiro, em cima de um tanque, era algo que lembrava Lenine."

CHEGADA AO PODER

Antes das vitórias do PS, é ministro dos Negócios Estrangeiros em governos provisórios.

"Cavalguei a questão africana e comecei a correr à desfilada para ser eu a resolvê-la, na convicção de que poderia solucioná-la melhor do que os outros ou, pelo menos, com menos estragos para o país. Não foi o caso, infelizmente. Reconheço-o." [...]

ÓDIO POR RAMALHO EANES

Nem Cavaco Silva conseguiu causar-lhe tão má impressão.

"Quando não gosto, não gosto. E portanto eu disse de repente [virado para o espelho enquanto fazia a barba]: ‘O que é que eu estou a fazer? Como é que vou apoiar este ******?’ Vomitei o Eanes?" [...]

LIGAÇÕES PERIGOSAS

Arranjar financiamento para o partido era prioritário, porém não gostava de falar de dinheiro.

"O Carlucci auxiliou-nos por via dos sindicatos americanos (...), que os comunistas odiavam, não sei porquê." [...]

"Se me vier um gajo qualquer, por aquela porta ou por outra porta qualquer, falar-me de coisas de dinheiro, eu mando-o logo à *****. É a minha maneira de ser." [...]

NEGÓCIOS DE MACAU

A vontade de criar um grupo de comunicação social ‘soarista’.

"Não tinha de se meter nisso, e essa é uma das críticas que lhe podem fazer. Beneficiou do seu prestígio pessoal e presidencial para pôr aquela gente [Emaudio] em contacto com os manda-chuvas do capital financeiro ligados à comunicação social" [palavras de Alfredo Barroso].

"Mário Soares teve conhecimento prévio do fax de Macau [em que a Weidleplan exigia a devolução de 50 mil contos]. Era uma situação complicada, punha problemas ao PS – ele tinha de ter conhecimento. Mas não tem culpas nisso" [palavras de Almeida Santos].

CORTE COM ZENHA E ALEGRE

Duas candidaturas presidenciais custaram-lhe o afastamento dos dois maiores amigos que fez na política.

"Pensei que tinha ganho todos os debates [das presidenciais de 1986] menos o que tive com o Zenha, porque ele deu-me um murro no estômago, que nunca esperava de um tipo que era meu irmão." [...]

"Não me sinto bem a dizer mal de um gajo de quem fui amigo durante 40 anos. Nunca mais vou ter uma relação específica com o Alegre."

JOAQUIM VIEIRA: "MACAU - HAVIA MATÉRIA PARA INVESTIGAR MUITO MAIS"

- Mário Soares será porventura o político português mais retratado. Porquê fazer esta biografia?

- Não existia uma biografia em livro de Mário Soares. O que havia eram autorretratos. Se fomos ver o que existe publicado sobre Mário Soares, verificamos que é uma narrativa construída pelo próprio. Achei que podia ser interessante ter uma narrativa independente, com a história contada por alguém que o ouviu a ele e aqueles que com ele trabalharam, conviveram, ou que foram seus adversários.

- Classificaria esta biografia como não autorizada?

- Não é uma biografia autorizada, mas também não a classifico como não autorizada. Eu falei com ele. Teve a generosidade de falar comigo sem limitações e acabou por nem sequer querer ver os excertos que eu tinha preparado com as declarações que me tinha feito, como estava combinado. Tive toda a margem de manobra para escrever o que quis..

- Este trabalho mudou a imagem que tinha de Mário Soares?

- Não. Eu conheço Mário Soares há muitos anos e ao longo do tempo, como jornalista, fui-me apercebendo das várias facetas da sua personalidade. Não sendo propriamente surpresa, apreciei a tolerância com que ele encarou o facto de eu estar a fazer este trabalho, sabendo ele do facto de anteriormente terem existido atritos entre nós de eu não estar a preparar um texto hagiográfico. Notei que ao longo do tempo Soares mudou muitas vezes de opinião sobre muita coisa, mas isso é público. Achei curiosas as histórias sobre o que se passou nos bastidores do poder e da política, por exemplo a história de como Arnaut cria o Sistema Nacional de Saúde.

- Que foi feito à revelia de praticamente todos os membro do governo em que era ministro…

- Sim, e depois quando o Vítor Constâncio lhe pergunta se ele fez as contas ao que aquilo custava, a resposta de António Arnaut foi “tu é que és o ministro das Finanças, quem faz as contas és tu”. Gostei muito também de saber da discussão sobre a lei do aborto que ocorreu em Conselho de Ministros na época do Bloco Central.

- Faz um retrato muito cru. Cita frases muito brejeiras, cheias de palavrões. É uma forma de dessacralizar a figura?

- Mário Soares sempre teve muito cuidado em controlar o seu discurso público. As entrevistas que ele dava partiam sempre da condição de ele ver o texto antes de ser publicado. Mas quando dava entrevistas para a imprensa escrita, revelava muito o que era em privado. E ele usa esse tipo de linguagem, baseada no vernáculo e no calão. Achei que não me competia estar a adocicar o discurso. Mas tive o cuidado de não usar algumas palavras que Soares usa para qualificar os seus adversários.

- Mas conta o episódio em que Soares diz sobre Eanes “como é que vou apoiar este ******?”…

- Foi a única coisa que decidi manter, porque há um valor político, que corresponde ao ódio visceral que se instalou entre um e outro. Soares perdoou a muita gente ao longo da vida, mas nunca vai perdoar a Eanes. Acha que foi atraiçoado.

- As versões de Eanes e Soares dos mesmos acontecimentos raramente coincidem. Quem fala a verdade?

- Para mim o importante é transmitir as visões de cada um. Compete ao leitor apurar a sua própria verdade. Não acho que exista uma verdade absoluta. Há diferentes leituras dos factos e isso acontece com toda a gente, faz parte da natureza humana.

- Mas Soares é muito convicto das suas verdades…

- Sem dúvida, como um político triunfador como foi, não se consegue vencer se não se tiver confiança absoluta nas suas verdades.

- Quando Soares adere ao Partido Comunista, Cunhal é uma personalidade muito importante. Será a maior influência que teve ao longo da vida?

- Só nessa fase inicial. Depois há um afastamento, quando Soares deixa o PCP. Quando ele volta a encontrar-se com Cunhal, anos mais tarde, em Praga no ano de 1965, Soares diz que já não identificava o Cunhal que tinha conhecido antes. O comunista tratava-o por você enquanto Soares o tratava por tu. Mas nessa fase inicial, Cunhal marcou muito a personalidade de Soares, mais até do que ele quer admitir. Se recuarmos ao contexto do que era a época, e a forma como a juventude formava as suas ideias, ao contexto das lutas políticas, Cunhal já tinha construído uma certa aura à sua volta. A certa altura da sua vida, Soares confessa ao seu amigo José Fernandes Fafe que podia ter feito outra coisa, mas que estava na política por culpa do Cunhal.

- Apesar de Soares ser um opositor do regime, retrata-o como um filho de uma família privilegiada, que nunca soube o que era passar dificuldades…

- Isso ele próprio reconhece. Soares diz que sempre teve dinheiro, tinha motorista na juventude, pagava os cafés a toda a gente, numa altura em que havia muitas necessidades. Nunca conheceu as agruras da vida.

- A sua biografia relata muito da vida pessoal de Soares, contando as suas infidelidades e a relação difícil que teve com os filhos a dada altura. O que o levou a revelar estes factos?

- Esta decisão parte de estarmos a falar de um ex-primeiro ministro e de um ex-Presidente da República. As figuras que têm posições proeminentes na sociedade, às tantas perdem pelo menos alguns aspetos da sua privacidade. Faz parte. Hoje em dias vemos livros publicados sobre os amores de reis e rainhas. Com um Presidente da República não sei porque há de ser diferente. A única diferença que vejo é que Soares está vivo. Remeto para aquilo que aconteceu com François Mitterrand, no fim da sua vida mas quando ainda era presidente. Na altura foi publicado um livro, que revelava o facto de ele ter tido uma filha fora do casamento. Não é o caso de Mário Soares, naturalmente, mas esta porta foi entreaberta pela própria família. No ano passado, a sua mulher, Maria de Jesus Barroso, publicou as cartas que tinha escrito ao marido entre 1961 e 1974, no tempo da ditadura. Essas cartas revelavam muito do que era a relação de Soares com os filhos e com o próprio matrimónio, falando da privacidade do casal. O que eu fiz foi abrir um pouco mais essa porta. Os testemunhos eram múltiplos, há colaboradores de Mário Soares que assistiram a uma série de situações e eu confrontei a Maria de Jesus Barroso com o facto de o marido ser um galanteador, perguntei-lhe como é que ela lidava com isso.

- Como é que Maria de Jesus Barroso respondeu a essas perguntas?

- Ela admitiu que em Paris o marido fez a vida que quis. O Francisco Salgado Zenha, que na altura era muito amigo da família, aconselhou-a a vender o Colégio Moderno e a mudar-se para França, para tentar alterar a situação. As cartas dela para ele mostram que o casamento estava numa situação de pré-ruptura e se calhar foi o 25 de Abril que evitou o fim do casamento. Isto interpreto eu daquilo que se pode ler nas entrelinhas das cartas.

- Soares é surpreendido pela notícia do 25 de Abril de 1974?

- Ele sabia que alguma coisa estaria para acontecer, mas as pessoas da oposição tinham assistido a muitas conspirações de militares. Soares achava que seria mais um golpe, os outros tinham falhado e este poderia ter o mesmo destino. Mas ele era um otimista, dizia sempre lá fora que a situação estava “por um fio”. Mas dizia isto desde o fim dos anos 50. De todos era sempre o mais otimista. Na véspera do 25 de abril ele está em Bona a falar com os sociais-democratas alemães e tem uma discussão em que estes lhe dizem que o regime de Caetano está para durar, e que haverá primeiro uma revolução em Espanha antes de Portugal. Soares responde que eles estão completamente enganados, que Portugal vai primeiro. No dia seguinte, é acordado cedo por uma secretária do SPD que lhe diz “parece que você tinha razão, está uma revolução na rua em Portugal”. Mas ele não sabia que estava marcada para esse dia.

- A seguir ao 25 de Novembro de 1975, Soares diz que foi “o primeiro menchevique a derrotar um bolchevique”. Podemos considera-lo como o grande herói desse período?

- Essa frase julgo que é de um autor francês. Mas se olharmos para o período do PREC (Processo Revolucionário em Curso) houve muitas figuras em destaque, mas numa perspetiva história, é ele que emerge como o grande herói. Soares, ao contrário de, por exemplo, Sá Carneiro (que tinha limitações físicas relacionadas com doenças), tem um grande poder de iniciativa. O Partido Socialista foi o mais votado em 1975, o que deu uma grande projeção internacional a Soares. É ele que lidera o processo contra a deriva revolucionária extremista. Congrega atrás de si todas as forças que combatem o extremismo militar – o CDS, a Igreja, os militantes de esquerda que não se reviam nas posições mais extremas. Soares é o grande chapéu-de-chuva debaixo do qual se acolhem todas essas forças. No estrangeiro, também é ele que fala com toda a gente, mesmo fora da sua família política, com governo, até com a própria CIA.

- Esse apoio da CIA não é coisa acerca da qual Soares goste muito de falar…

- Como diria o seu amigo Jonas Savimbi, anos mais tarde, “quando uma pessoa está no poço e alguém lhe estende a mão, não se pergunta se é de direita ou de esquerda”. Há aqui um lado pragmático que é muito importante. Na história a versão dominante é a versão do vencedor. Soares é um vencedor e é a sua narrativa que vence.

- O livro recupera Rui Mateus, que foi o responsável pelas relações internacionais do PS. É a pessoa de quem Soares guarda mais rancor?

- É uma pessoa banida da sua autobiografia. Soares teve muitas ruturas, com o Zenha, de quem era amigo do peito, ou com o Alegre, mas com o Mateus a coisa vai mais fundo porque ele conta segredos que nunca deveriam ser tornados públicos. [No livro ‘Contos Proibidos - Memórias de um PS Desconhecido’, lançado em 1996].

- Falando desses segredos, há a história das três fundações criadas para financiar o PS…

- Isso era uma coisa normal para a época. Não havia leis para controlar o financiamento partidário.

- Conta o episódio em que Mateus vai a Itália ter com Bettino Craxi, que o envia à Suíça, onde recebe uma mala com meio milhão de dólares…

- Era assim que se fazia, com malas de dinheiro. Os doadores não sabiam da existência de várias fundações. O que era preciso era que o dinheiro chegasse, quanto menos se soubesse melhor.

- Acredita que Soares nunca tenha tirado proveito pessoal dessa circulação de dinheiro?

- Não tenho nenhum elemento que me leve a admitir essa hipótese, nem ninguém me disse que isso tenha acontecido. A preocupação de Mário Soares era sobretudo garantir o funcionamento do partido. Ele tinha, do ponto de vista da sua vida pessoal, o seu bem-estar garantido através do Colégio Moderno, que era o rendimento da família. Direi que havia uma grande liberalidade na gestão do dinheiro. Ninguém controlava nada. Mário Soares fica muito chocado quando se fala destas questões. Acha que são assuntos mesquinhos. A última conversa que tivemos para este livro foi muito complicada. Quis abordar estes assuntos com ele e houve berros, gritaria, o tal vernáculo que ele usa. Ficou chocadíssimo com as perguntas. Ele não controla, não quer saber, não sabe quanto dinheiro tem no bolso, gasta á tripa forra se for preciso, não controla orçamentos nem coisa nenhuma. Se calhar porque desde criança sempre se habituou a ter dinheiro.

- Apesar desse aparente desprendimento, cita uma frase de Soares em que ele revela ter plena noção do peso do dinheiro, falando da guerra que travou com o secretariado do PS: “Naquela altura, quem arranjava dinheiro para o partido era uma pessoa importante”…

- Isso é um facto. E uma das razões para o insucesso de Constâncio, que lhe sucede na liderança, é que continua a ser Soares a ter mão no financiamento do PS, mesmo depois como Presidente.

- Refere a formação da empresa Emaudio. Soares recusar-se a admitir que, por sua iniciativa, o PS queria um grupo de comunicação social…

- Não admite, mas os factos levam a concluir que ele sabia. Estão envolvidos amigos dele, como o Almeida Santos, o Bernardino Gomes, o Carlos Melancia e o próprio João Soares. Não se pode admitir que ele se limitou a abrir portas para que os outros negociassem. Pessoas como o Berlusconi, o Murdoch ou o Maxwell nunca viriam a Portugal se não fosse o Presidente da República a convidá-los e a recebê-los.

- A Emaudio está na origem do escândalo de Macau, que poderia ter tido consequências bem mais graves…

- E não teve porque as autoridades judiciárias se encolheram. Há uns tempos, o elemento da PJ que investigou o caso, o António Coutinho, disse que podiam ter ido mais fundo, mas o Procurador-Geral da República, Cunha Rodrigues, entendeu limitar o âmbito da investigação ao caso do fax para Carlos Melancia [em que a empresa alemã Weidleplan exigia ao Governador de Macau a devolução de os 50 mil contos, pagos facilitar negócios]. Só se quis investigar a corrupção do Governador de Macau.

- Esse dinheiro de Macau era para financiar o PS?

- As histórias de Macau e da Emaudio relacionam-se com o soarismo, com os que lhe são próximos. Soares servia-se deles para continuar a controlar o PS, mesmo depois de ter saído.

- De onde vem o dinheiro da Emaudio, que começa com um capital social de 5 mil contos, depois aumenta para 100 mil, e no final já se falava em dois milhões de contos?

- Vem da perspetiva de negócios em Macau. Primeiro a criação de um canal de televisão que chegasse a Hong Kong. É Robert Maxwell [magnata dos media] que injeta capital e depois também o empresário Ilídio Pinho, financiador das campanhas eleitorais de Mário Soares. Numa segunda fase, quando se pretende tirar o controlo da Emaudio a Rui Mateus e se dá a rutura total, pretende-se investir em negócios imobiliários.

- Que aconteceu ao dinheiro?

- Aí há terreno para investigar. O Rui Mateus diz que Soares estava a arranjar dinheiro para a sua Fundação. Sabemos que a Fundação Mário Soares arrancou com o dinheiro que sobrou da segunda campanha presidencial. Parece que Stanley Ho é um dos principais financiadores. Não poderei ir mais fundo porque não investiguei.

- Voltando à política, como nasce esta aversão de Soares a Cavaco Silva?

- Nasce do facto de Soares se julgar um príncipe da política e ter visto aparecer alguém a morder-lhe os calcanhares a quem ele não reconhece estatuto. Há aqui uma rivalidade quase pessoal. Ele diz que não inveja ninguém, que respeita toda a gente e que apoiou Cavaco quando este era primeiro-ministro e ele Presidente . Mas a verdade é que Cavaco apareceu numa postura de rutura com o PS, quando o PSD estava com os socialistas no Bloco Central. Havia uma combinação com outros dirigentes sociais-democratas. Supunha-se que eles iam tomar conta do partido e continuariam aliados a Soares. Cavaco aparece de surpresa na Figueira da Foz , vindo não se sabe de onde. Ele não era ninguém. Soares ficou perplexo com a chegada de um homem que ele dizia que não tinha biografia política. Ele considerava Cavaco um júnior. Mas isto é contraditório porque Soares é muito responsável pelo triunfo de Cavaco ao dissolver a Assembleia da República em 1987, quando o PSD estava em minoria.

- Para sermos rigorosos, quem precipitou a dissolução foi o PRD de Ramalho Eanes, que apresentou a moção de censura que fez cair o Governo…

- Aí Soares ficou preso entre dois ódios, e lá apostou no Cavaco. Mas ele ficou muito ressentido com a atitude de Cavaco em 1985, quando provoca a queda do Bloco Central. Acho que ele tem a inveja secreta de Cavaco Silva ter sido o primeiro a ter uma maioria absoluta, mas nunca o vai admitir. Soares sempre lutou por um lugar na história e esse feito de Cavaco incomoda-o.

- Em relação a esta última candidatura de Soares a Belém, o seu livro deixa entender que praticamente só José Sócrates achava que era uma boa ideia…

- Havia quatro ou cinco amigos mais próximos que acreditam que aquilo ia funcionar. A ideia não é de José Sócrates. Ele aproveitou o avanço de Soares para tapar o Alegre. Mas parece-me que o Sócrates não tem convicção, nem sequer interesse na vitória do Soares. Era uma coisa para despachar. Não sei há quanto tempo o Soares pensava na candidatura. Se calhar, no seu íntimo, nunca deixou de o pensar desde que deixou o Palácio de Belém, em 1996, pelo menos como hipótese teórica.

- Terá percebido que seria a sua última oportunidade de concorrer diretamente contra Cavaco, o que nunca tinha acontecido antes?

- Não acho tenha sido a questão de Cavaco que o motivou. Ele diz que sim, que achava que Cavaco Silva não devia ser presidente, mas acho que é mais a tal luta por um lugar na história. Soares acha que tinha de fechar com chave de ouro a sua carreira, e faltava essa eleição para compor o ramalhete. Quem o pressiona muito e lhe mete essa ideia na cabeça, são aqueles com quem ele fazia os jantares semanais para discutir a política. Nesse grupo está Medeiros Ferreira, o próprio Manuel Alegre – que depois se distancia.

- Outro belo exemplo de vernáculo no seu livro é a reação que Soares diz ter ouvido de Sócrates à derrota de Manuel Alegre na segunda eleição presidencial de Cavaco Silva. Sócrates festejava por ter deixado Alegre “na merda”, o que deixou Soares incomodado…

- O que Sócrates terá dito do Alegre é de tal maneira inqualificável que nem deu para escrever no livro (risos): “Finalmente arrumámos aquele… “ e segue-se um insulto irreproduzível. O Soares ficou chocado com a linguagem, por ser um camarada do PS, apesar dos ressentimentos que tinha com Alegre.

- Soares diz que Sócrates tinha um gosto especial por andar à pancada…

- Ele achava que o Sócrates tinha de fazer pontes, que não podia andar à pancada com toda a gente. Dizia-lhe para fazer alianças, fazer com este e com aquele, era muito belicoso, mas Sócrates não o ouviu.

- Acha que Soares olha para o PS de hoje e vê ali um primeiro-ministro?

- Não discuti isso com ele. Depois de sair do PS eu acho que Soares sempre achou que os líderes que lhe sucederam não estavam ao nível dele. Não estavam ao nível do que o PS merecia. O Soares sempre achou que tinha de dar lições aos líderes do PS.

- Ficou surpreendido com a anunciada reconciliação de Soares com Alegre?

- Fiquei, estava convencido que não se iam reconciliar por terem feito campanha um contra o outro.

- Apesar dos 88 anos, Soares parece não viver bem com essa ideia maçadora que é a de ter de morrer um dia…

- Faz-me contar aquela história que se contava do Roberto Marinho, da TV Globo, que nunca dizia ‘quando eu morrer façam isto’; ele dizia ‘se eu morrer façam isto’. Com o Soares é um bocado a mesma coisa. Ele acredita que ainda tem um papel a desempenhar, uma missão cívica. Aos 88 anos já não estará a pensar candidatar-se a nada, mas será fazer coisas como a que fez o ano passado, em que encabeçou aquele abaixo-assinado que pedia a demissão do Governo.

- Também se nota que nos últimos anos, pela posições que tem defendido, Soares quase voltou a ser um comunista…

- Ele diz que não está mais radical: defende que é a realidade que muda à sua volta e ele se mantém com as mesmas ideias de sempre. Não me parece que assim seja. Ele mostra um radicalismo enorme em relação a todos o que foram os seus aliados: os americanos, o Ocidente, a União Europeia. Eu acho que ele tem alguma razão quando diz, por exemplo, que não existe União Europeia nem líderes como os do passado. Isso é uma constatação, hoje não há pessoas como Miterrand, Helmult Khol ou Jaques Delors. Mas depois há outras questões que não se percebem, como a defesa que ele faz do diálogo com o terrorismo, em que ele diz que é preciso compreender o terrorismo antes de o combater. A aliança com organizações pouco democráticas que ele no passado combateu…

- O Soares dos anos 80 não faria amizades com Hugo Chavéz…

- Não, acho que não. era justamente o tipo de coisas que ele combatia. Era contra essas ideias do terceiro-mundismo. Achava que deveria existir um certo formalismo democrático, com os seus órgãos representativos, os governos, o parlamentarismo. Dá ideia que ele agora considera esgotada esse tipo de democracia e que é preciso haver outra coisa para fazer mover o mundo.

- Percebe-se que Soares sempre se quis projetar com uma personagem ‘maior que a vida’. Acha que o conseguiu?

- A imagem que os portugueses têm do Soares é essa. ‘Bigger than life’. O Soares fica um bocado dessacralizado para as pessoas que privam com ele, mas a maioria das pessoas não conhecem essa faceta. O século XX é dominado por duas figuras: Salazar e Mário Soares. Aconteça o que acontecer, não há nada que vá alterar isso.

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