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Histórias : Só a mãe é que trabalha

billshcot

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Nov 10, 2010
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Pela primeira vez, o número de homens e mulheres no desemprego é praticamente igual. Famílias portuguesas contam a sua história

Na última década, a percentagem de famílias portuguesas em que a mulher assumiu sozinha o papel de ‘ganha-pão’ passou de dois por cento para 16,5, aproximando-se da percentagem de casais em que o homem é o único elemento com trabalho pago (17,9 por cento). Uma mudança "drástica e muito rápida" que, segundo Karin Wall – autora do estudo baseado na análise do último inquérito social europeu – "não é desejada e resulta sobretudo dos constrangimentos vários criados pelo desemprego".

A estatística reflete ainda uma realidade carregada de incertezas e angústias. Por isso, e apesar de saber que há "gente muito pior e casais em que ambos estão desempregados", Fátima Ferreira, 50 anos, tem dias de ânimo duvidoso.

Há dez anos foi ela que esteve no desemprego, agora é a vez do marido, arquiteto, não ter trabalho há mais de um ano. Profissional liberal, há muito que trabalhava por conta própria até que a conjuntura de crise e os pagamentos à Segurança Social em atraso ditaram o encerramento da atividade. Fátima, administrativa no Centro de Saúde do Cacém, já estava habituada a gerir um orçamento incerto, mas agora vê-se confrontada com a escassez: "Como o António Pedro não tinha um salário fixo ao fim do mês, eu já estava habituada a guardar para os tempos em que não havia projetos nem pagamentos."

Tempos em que eram "ricos mas não sabiam", descreve António Pedro, do outro lado da mesa do café onde conversam amenamente, depois de mais um dia de trabalho de Fátima. Ela sente, sobretudo, a falta "das férias, dos passeios para desanuviar, dos jantares fora ou até dentro de casa, para os quais se convidavam amigos à vontade" para encher a mesa e a sala. "Não são coisas essenciais, mas fazem falta."

Vale-lhe o facto de já não ter de preocupar-se com a filha, Marta Ferreira (21 anos), que tem um part-time como caixa de supermercado. Isso e ter a casa amortizada. "O teto ninguém nos tira. Só com o meu ordenado, pouco mais de 600 euros, era difícil fazer face a mais essa despesa." De sobra, só a mágoa de quem vê as expectativas de vida goradas. "Nunca pensei chegar aos 50 anos com uma vida tão limitadinha, com uma angústia que nos vai consumindo."

O mesmo sente Paula Bento, 46 anos, da Amadora, desde que o marido, José Borges, ficou desempregado há seis meses. "Sempre pensei que chegava aos quarenta com uma vida estável, sem este sentimento de incerteza." Uma frustração sobre o futuro que passa, e muito, pela dificuldade em garantir o melhor para os dois filhos do casal, de 8 e 10 anos, e do enteado, de 16. "É inevitável questionarmo-nos sobre como vamos conseguir fazer face a despesas como a universidade, sobretudo se tiverem de estudar noutra cidade do País. Custa muito não lhes poder dar isso", confessa.

Quanto ao casal, tenta unir-se mais do que nunca. "Rir e pensar num dia de cada vez, com esperança", afiança José, que era escriturário num armazém farmacêutico, e tenta tirar o melhor partido da situação: "Reforçar a relação com os meus filhos, agora que tenho mais tempo para estar com eles." Já Paula, responsável de compras numa empresa de publicidade, acusa a pressão de ser o único sustento da família: "Pensa-se logo: ‘e se eu também fico desempregada?’". Como o avesso, por vezes, dá certo, alegra-se ao serão: "Agora, quando chego à noite a casa já tenho o jantar feito!".

Carlos Azevedo tem 50 anos e quatro filhos, dois deles menores. Viu-se desempregado pela primeira vez aos 45, depois de quase 30 anos de serviço como diretor comercial na área financeira. O posto de trabalho foi extinto em 2007, o que não apagou nele a vontade de trabalhar. Pôs-se a caminho da Suíça, onde trabalhou dois anos na hotelaria. As saudades trouxeram-no de volta a casa e ao desemprego. "Houve uma regressão no estilo de vida. Os filhos saíram do colégio privado, cortei na pensão que dava à filha de outro casamento, saímos menos, deixámos de viajar para o estrangeiro", reconhece. O seu ordenado representava dois terços do rendimento mensal em casa, mas congratula-se por a mulher ainda ter duas lojas de pronto-a-vestir, no centro da Amadora, apesar do "negócio estar pior do que nunca".

"As pessoas não têm dinheiro para comprar. Sente-se o desaparecimento da classe média." O ‘plano b’ passa por receber de uma assentada o subsídio de desemprego e assim incrementar o negócio, mas está emperrado pela burocracia. "Até parece que não é um direito nosso", alvitra Elsa, a mulher. Ela, licenciada em Economia, 40 anos, também trabalhou na área financeira até 2003, altura em que a empresa foi reestruturada e instalada no Porto. Desde então, passou a dedicar-se às lojas que eram dos pais. Quando Carlos ficou em casa, "foi um grande abanão", mais difícil ainda de suportar quando este foi para a Suíça: "Fiquei sozinha e cansada. Ainda estive na Suíça três meses, mas percebi que não queria ficar. Ainda se tivesse 20 anos..." , reconhece Elsa.

ACONTECE AOS DOIS

"Está a acontecer-nos aos dois e não apenas contigo", foi a frase que Marina Vieira, professora de português de 45 anos, de Lisboa, teve de repetir vezes sem conta ao marido, engenheiro civil desempregado há um ano. Mãe de dois filhos, de 10 e 16 anos, houve momentos em que Marina se sentiu "sobrecarregada", não só de gastos mas também de preocupações e tarefas.

"Eu pensei que, como seria lógico, o Rui iria assumir mais as tarefas domésticas, sobretudo porque ele sempre ajudou. Mas como não foi isso que inicialmente aconteceu, confesso que me senti defraudada e irritada. Tivemos de conversar bastante até eu perceber que se antes, quando ele estava empregado, ir lá fora estender roupa era um gesto completamente banal, agora tinha um peso enorme e diferente. Ele não queria sentir--se domesticado ou que, agora, tudo o que lhe restava fazer era aquilo", relembra.

Mas este era apenas um sintoma da nova realidade que Rui Silva e Marina Vieira estavam a conhecer, desde que ele, com 49 anos, perdeu um ordenado na ordem dos dois mil euros: "Há alturas em que nos sentimos mais tensos, mais ansiosos, e noutros mais unidos. E há sempre o constrangimento social, até perante os próprios filhos." Marina tem um ordenado que ronda os 1300 euros.

"Nunca vivemos acima das nossas possibilidades, sempre poupámos, mas agora não há folga. Acaba por ser claustrofóbico", desabafa.

O que mais a assusta é "a falta de esperança no futuro", que pode ser vivido fora de Portugal. "Temos um prazo. Se até ao fim do ano o Rui não encontrar nada, talvez seja hora de partir. De certa forma, também sinto que este país nos traiu um bocadinho. Os sacrifícios que os portugueses fazem não servem para nada. O défice continua a crescer. Mas a culpa não é do povo. Basta olhar para o Luxemburgo que está cheio de portugueses, mas que trabalham num país bem gerido e organizado", garante.

"CHOREI, CHOREI"

Um "baque enorme" sentiu há cerca de um ano Fátima Almeida, 51 anos, quando o marido, inspetor de crédito ao serviço da banca portuguesa ficou, aos 55 anos, sem trabalho. "Naquele dia chorei, chorei, chorei, mas depois aceitei bem e apoiei-o. Ele ficou muito abalado, sobretudo porque já tinha passado a barreira dos 50. Mas os homens são mais calados, sofrem para dentro."

Fátima ganha mil euros por mês, mas chega a trabalhar "12 e 14 horas por dia", como responsável de uma loja de restauração de um centro comercial. Os filhos já estão criados e independentes e por isso não há grandes exaltações. "Saímos menos. Eu deixei de fumar, o que só me faz bem. Acabaram-se os pequenos-almoços no café, as férias de um mês." Aos 51 anos, Fátima preocupa-se com a chegada inevitável do dia em que o subsídio acabar. Prefere "não pensar nisso", mas vai garantindo que "tudo se há de arranjar". Nem há outra solução.

Em casa de Ana Neves, 35 anos – nome fictício – tudo é mais complicado. Ela, professora do ensino básico, aufere um salário de 1100 euros. Bruno está desempregado há mais de dois anos, depois de uma série de rescisões na emprega de construção de material aeronáutico onde trabalhava. O casal, com dois filhos, de dois e sete anos, está a renegociar a prestação da casa com o banco e já desistiu de pagar o condomínio: "Mas como há vários casos de desemprego no prédio, as pessoas até são condescendentes", constata. O que mais custa é "estar constantemente a pedir dinheiro à família". Por via das dificuldades, a relação mudou e não foi para melhor. "É difícil estar sempre a pedir e a admitir que estamos nesta situação", justifica.

Rogério Rebelo acabou de ficar sem emprego. O motorista de pesados internacional levava para casa entre 1800 e 1900 euros por mês, consoante os quilómetros percorridos. A esposa, Nélia Sofia, trabalha na lavandaria da Confraria de Nossa Senhora da Nazaré e ganha 560 euros. O casal tem dois filhos menores. "Vamos cortar na comida e em certas despesas, mas as contas são muitas e não vai ser fácil", desabafa Nélia Sofia, de 39 anos. Rogério, 44 anos, "nunca" pensou ficar sem trabalho. "Mas agora temos de pensar em como pagar as dívidas", adverte Nélia.

Em 1994, Rogério esteve emigrado na Alemanha, onde era carpinteiro de cofragem. "Lá fora ele podia ganhar mais, mas também prefiro que fique cá. Temos de viver com aquilo que temos", diz, resignada e à espera de melhores dias.

Adriano e Leonor Amoreira já tinham de fazer muitas contas para gerir o rendimento conjunto de 1500 euros mas, no ano passado, quando Adriano perdeu o emprego numa vidraria, a gestão complicou-se. Com menos poder de compra, Leonor teve de encontrar soluções, como deixar de ir de carro para o trabalho. "Mas há gastos que não dá para reduzir", como os 70 euros para o infantário da pequena Adriana.

UMA QUESTÃO DA ECONOMIA

Diamantina André, de 55 anos, é uma chefe de família perdida. Sempre que lhe treme o lábio, lança uma gargalhada para evitar que os olhos se humedeçam. "Tenho de me mostrar forte, senão o barco vai abaixo", diz esta empregada de balcão numa loja de artesanato em Albufeira. Por "barco", Diamantina quer dizer o marido, eletricista que não encontra trabalho há dois anos, o pai e a mãe, a última com Alzheimer.

O vencimento de Diamantina não vai além do ordenado mínimo. O marido não ganha um cêntimo. Vivem ambos na casa dos pais de Diamantina, "o que é uma sorte", confessa. E é precisamente com o pai que divide "a meias" as contas da água, luz e gás. A pensão da mãe vai toda para os tratamentos. "Agora sou mãe de um homem grande; tenho de lhe dar dinheiro para abastecer a carrinha ou para carregar o telemóvel", explica.

Segundo Karin Wall, socióloga do ICS e autora do estudo baseado na análise do último inquérito social europeu, o modelo de ganha-pão exclusivamente feminino está a crescer na Europa. "Isto não é uma preferência e muito menos de igualdade do género. É o resultado da pressão dos mecanismos económicos. A mulher está mais sobrecarregada, até porque continua a acumular o emprego com mais horas de trabalho doméstico." A boa notícia é que os resultados mostram também que as mulheres bem inseridas no mercado de trabalho usufruem de um ordenado que lhes dá "uma certa ‘almofada’, autonomia, poder até".

"PARA ELES É DIFÍCIL DE ENGOLIR O DESEMPREGO"

Aposentada há três anos, Almerinda Bento (61 anos) lida há nove com o desemprego do marido, ex-funcionário dos escritórios da Rodoviária Nacional. Já está habituada a ser o único sustento da casa, pois Vítor nunca mais conseguiu arranjar trabalho, desde os 49 anos.

"Naquela altura foi complicado, mas também tive em consideração que a situação laboral do meu marido não era a melhor: por ser dirigente sindical nunca progrediu na carreira. Houve um corte em termos económicos, mas temos gerido bem", adverte Almerinda, ex-professora do 10.º escalão, com um filho independente a viver em Londres.

A professora reconhece que não é fácil para um homem, a quem a sociedade atribui a função de provir o sustento do agregado familiar, ficar em casa. "Nós estamo-nos marimbando para aquilo que as pessoas pensam. Mas para eles é difícil de ‘engolir’. Ficam profundamente fragilizados, mesmo que não o verbalizem. Houve momentos de profundo silêncio cá em casa."

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