• Olá Visitante, se gosta do forum e pretende contribuir com um donativo para auxiliar nos encargos financeiros inerentes ao alojamento desta plataforma, pode encontrar mais informações sobre os várias formas disponíveis para o fazer no seguinte tópico: leia mais... O seu contributo é importante! Obrigado.

A Guerra InvisÍvel: A Estupidez Humana E A Liberdade

peixe

GF Bronze
Membro Inactivo
Entrou
Nov 9, 2006
Mensagens
88
Gostos Recebidos
0
O tema deste artigo é a guerra, a guerra em sua invisível constituição, a guerra dos opostos complementares: o mundo como Pólemos. O ponto de partida é o sentido arcaico do conceito em questão: a guerra. Ressoando com Heráclito, ensaiamos uma aproximação polêmica com o tema da guerra. Nossa intenção é radicalmente pensante.

No relampejar desta escrita, distinguimos duas formas de guerra: a guerra como modo de ser dos fenômenos — portanto, a guerra compreendida em seu sentido primevo e inaugural, e aquela outra guerra configurada como realização da estupidez humana encarnada. Estas duas formas de guerra são mesmo antagônicas, e não há meio possível de conciliação. No máximo se pode tentar chegar a um acordo, o que é muito diferente de reduzir uma coisa a outra. Um acordo é sempre um acorde: harmoniza as diferenças na conjugação das vozes reunidas. E o acorde, neste caso, é dissonante, pois coliga o conceito de guerra como Pólemos ao conceito de guerra como realização da estupidez humana, o que é por si dissonante e profundamente desagradável. Vejamos brevemente porque.

Em traduções pertinentes dos fragmentos de Heráclito, encontramos duas passagens que apresentam o sentido originário da palavra guerra: 1. “É necessário saber que a guerra é comum e a justiça, discórdia, e que todas as coisas vêm a ser segundo discórdia e necessidade”. 2. “De todos a guerra é pai, de todos é rei; uns indica deuses, outros homens; de uns faz escravos, de outros, livres”.

Sem dúvida, essas duas passagens de Heráclito são polissêmicas e obscuras, o que significa dizer que cada um ao lê-las nelas encontrará a sua própria medida conceitual. O que, portanto, cada leitor entende /compreende das sentenças apresentadas?

Como não podemos falar pelos outros, o que podemos dizer acerca do dito de Heráclito é aquilo que nos vem ao encontro como definição do mundo. Ouvimos em Heráclito a guerra como princípio incriado, portanto, como a lei imperante de tudo o que é ou pode vir a ser. A guerra, assim, não se confunde com o que se pratica entre os homens como guerra, mas governa o mundo desde sempre. E para evitarmos a confusão, de hora avante chamaremos de pólemos o princípio que move o mundo-aí, e de guerra a realização da estupidez humana encarnada.

Há, sem dúvida, entre uma coisa e outra, entre o pólemos e a guerra, uma similitude significativa. Entretanto, olhando bem, uma coisa não tem nada a ver com a outra, e apenas se encontram nas analogias do sentido. Dizer que o mundo é Pólemos, aparentemente, permitiria identificar isso com a trivialidade da guerra em nossa vida planetária instituída. Isto seria o mesmo que reduzir a grandeza de pólemos aos limites psicológicos do ser humano realizador da estupidez encarnada. Pólemos, entretanto, não quer dizer “guerra” no sentido estúpido, mas afirma o mundo como “guerrativo”, ou melhor, “germinante”, “gerante”, “contrastante”, “tensivo”, “oposicional”, “dialético”, “gerativo”, “causador”, “engendrante”, “guerreiro”, “belo”, “com-sentido”, tudo isso e mais alguma coisa.

Assim, seria injusto de nossa parte categorizar a guerra como manifestação exclusiva da estupidez humana, pois deixaríamos de ver a genuinidade de pólemos em sua constituição invisível, como genitor e senhor de todos. O pólemos, neste sentido, é o modo como tudo acontece em seu aparecer e desaparecer, em seu ser-fenômeno: a luta imperante dos opostos na perpetuação do movimento-vida-geradora de tudo o que é e de tudo o que não é. Pólemos é o mesmo que causação. Ora, tudo o que é causado é fruto da “discórdia” e da “necessidade”. A discórdia, assim, é um vetor da justiça, pois só pela causação surge a necessidade, e esta reclama para si uma medida justa, um ajustamento, um ajuntamento, uma reunião de opostos inseparáveis e complementares. Deste modo, o pólemos é sempre uma condição de origem, uma ruptura, uma causação, um acontecimento imperante.

Bem diferente de tudo isso é o modo como ouvimos e nos dias de hoje usamos o vocábulo “guerra”. Os últimos acontecimentos mundiais impõem um sentido que a todos preocupa e a muitos assusta. A guerra é o império da força prepotente e estúpida. Na história da humanidade, as guerras sempre marcaram o tamanho da imbecilidade humana. Desde a origem das civilizações, a guerra é a marca mais sórdida da espécie dos humanos. Neste sentido, a história registrada é a marca viva da barbárie imperante na espécie humana desde sua origem. O que foram os impérios nascidos da diáspora humana no planeta? O que foram os assírios, os babilônicos, os egípcios, os persas, os gregos, os romanos, os germânicos, os anglo-saxões etc.? O que são os franceses, os italianos, os alemães, os ingleses, os norte-americanos, os japoneses? Por que fizeram e continuam a fazer guerras?

A resposta é muito simples: se fez e se continua a fazer guerra por pura e simples estupidez humana. A guerra como aí está posta é a marca insana de deuses mortais adormecidos em seus próprios sonhos de domínio. A guerra, como aí se encontra engendrada, só atesta o tamanho da brutalidade humana, da crassa ignorância e da doentia superioridade de uns contra outros, a ineconômica vontade de domínio.

Muito diferente disso é o Pólemos de Heráclito. Pólemos, aqui designa a força vital e a vontade de vida com-sentido. Para Heráclito a guerra humana é um jogo de crianças diante do que não conhece ocaso. Para ele, a ordem invisível do cosmo é um eterno fluir de tudo em si mesmo, uma jorrância em que o movimento de subida e o movimento de descida são o mesmo. “Caminho: em cima, embaixo, um e o mesmo”. Em sua originariedade, Pólemos é a tensão sem a qual nada poderia tornar-se. O mais surpreendente é que para Heráclito na luta de contrários, a mais bela harmonia: “O contrário é convergente e dos divergentes, a mais bela harmonia”.

Ora, o dizer de Heráclito vem de um lógos em que é sábio concordar ser tudo-um. Diante disso, afirmar alguma identidade entre o descortinamento de um princípio invisível de todas as coisas e o estado de guerra em que se vê atada a humanidade histórica errante, é no mínimo considerar a bestialidade como único modo de ser possível ao ente-espécie que convencionamos chamar de humanidade.

Assim, antes de imaginarmos que a condição de guerra, como está posta na história documental do mundo, é uma necessidade humana indiscutível, bem mais altaneiro é compreender que a guerra na dimensão humana é a prova cabal de que não se ouviu ainda o lógos em sua sonância de fonte sempre-viva, uma prova de que a espécie humana precisa aprender a compreender Pólemos como o que constitui o surgir de tudo em sua tensividade vigorante. Deste modo, a guerra, como ainda hoje é vivida pela humanidade, não passa da materialização da imbecilidade absoluta, o desvio humano em relação ao que, independente de tudo, continua a jorrar desde sempre como Pólemos. E o mais interessante de tudo isto é a inspiração que nos vem de Heráclito quando, diante da luta de opostos, afirmava: “Erguer-se sobre o que é presente e tornar-se vigilantemente guardiões dos vivos e dos mortos”.

Ora, quem se torna amante da vida em sua sapiência jorrante, abomina o estado de guerra gerado pela estupidez dos que se encontram mortos, e por isso consideram normal continuar matando em nome de ideais que só aos néscios alcança como verdade e lei. Contra estes, é preciso nutrir o sentimento de pólemos no vigor da sua potência, pois haveremos ainda de muito lutar para que os humanos aprendam a guerrear pela justiça e pela liberdade livre.
 
Topo