santos2206
GForum VIP
- Entrou
- Jul 12, 2014
- Mensagens
- 2,454
- Gostos Recebidos
- 19
Legalidade e justiça reparadora no Direito Penal Islâmico
Rui Marques
Inspetor Tributário
Mestre em Direito e Economia
JusJornal, N.º 23, Secção Penal / Opinião , Janeiro 2018, Editora Wolters Kluwer
JusNet 21/2018
Existe uma responsabilidade moral e religiosa do muçulmano na busca e promoção da justiça e paz em todos os momentos e em todas as circunstâncias.
No Alcorão (Qur`an, ou seja, «a recitação») (1) , do primeiro ao último verso, numa prosa escrita em árabe, repousa a palavra de Deus, revelada ao profeta Maomé (Muhammad ibn Abd Allah). Ao contrário do que sucede, a espaços, no Novo Testamento dos cristãos, é apenas Deus que fala, não havendo qualquer espaço para teologia, no sentido de que pudesse ser vertida no Livro alguma interpretação humana da mensagem transmitida por Deus. Trata-se pois de uma revelação da palavra de Deus e não de um seu registo (2) . Como já se referiu, não há uma «Igreja» como não há um magistério que se arrogue da infalibilidade, ao invés do que, por exemplo, sucede na religião católica. O Islão é a aceitação do Alcorão, ditado sobrenatural e forma perfeita da palavra de Deus, antes da imitação do Profeta.
Na definição de Voltaire, o Qur`an é «uma assembleia de sermões em que se encontram alguns factos, algumas visões, revelações, leis religiosas e civis» (3) . Julgamos assim compreender Hans Küng quando o mesmo, lucidamente, nos assevera que «[o] que para os cristãos é teologia, para os muçulmanos é lei religiosa, que o Estado deve ajudar a aplicar» (4) . E, sendo Alá, Deus pessoal e vivo, quem tudo domina, está encontrado o legislador.
Portanto, a legitimação do Direito Islâmico não reside na vontade humana, limitada e titubeante, mas antes na vontade de Deus (5) , verdadeira e imutável por perfeita, que terá dado as leis aos seus fiéis para que estes lhes (e Lhe) dediquem uma obediência sem quaisquer tergiversações. Daqui radicando a sua superioridade (6) , mas também a sua plenitude e universalidade que justificam a imposição.
Consequentemente, ante a lei escrita como medida, vale uma atitude ou perspetiva individual dualista: crer ou não crer (7) . As prescrições jurídicas dão o ensejo para fazer apologética do Islão, a partir do direito muçulmano defende-se a doutrina do Alcorão (8) . Tendo por característica primacial a sua proveniência divina, o Direito Islâmico dirige-se a cada muçulmano. Como todos os seres humanos são chamados a reconhecer a revelação e a submeterem-se à vontade de Deus, dirige-se a todo e qualquer um.
Estamos diante de uma ordem normativa universal, totalizadora. Este Direito não conhece limites territoriais na sua vigência e aplicação, uma vez que não é criação de um Estado ou de outro poder político. Antecedeu o Estado e sobreviver-lhe-á, dirigindo-se à comunidade dos fiéis, onde quer que estes se encontrem.
Não obstante, e diversamente do Antigo e Novo Testamento cristãos e da Tora (9) hebraica, encontramos no Livro de Alá muito mais uma religião da ética, com o seu conjunto integral de normas de vida (política, social, familiar, religiosa, etc.) dirigidas aos muçulmanos, e menos uma religião da lei. Somente numa pequena parte são tratadas, diretamente, matérias jurídicas (sobretudo questões jurídicas familiares, e algumas penais), mas sempre partindo de uma perspetiva ética. O Alcorão é assim como que um preâmbulo do corpus jurídico muçulmano que, com o avançar dos tempos, se foi transformando numa «religião da lei».
Como fonte de direito pontifica também a Sunnah («caminho trilhado»), conhecida como Tradições do Profeta. São os feitos, dizeres e aprovações de Maomé, tudo o que ele disse, fez ou aprovou durante o seu tempo como profeta e mensageiro de Deus, tendendo os muçulmanos a seguir e praticar os seus exemplos, a partir de muitos livros compilados.
Quando o Alcorão ou a Sunnah não se pronunciaram sobre uma determinada matéria, é utilizado o ijma («consenso» ou «acordo»), que serve como precedente, e a qiyas («interpretação legal das diretivas do Alcorão e da Sunnah, através do raciocínio por analogia»). Como fontes indiretas do direito muçulmano, a fatwa (édito ou decreto interpretativo ou orientativo, irrevogável), de má fama no Ocidente desde que, em 1988, Salman Rushdie foi condenado à morte por apostasia, a fiqh (ciência jurídica) e o ijtihad («esforço» de investigação pessoal que conduz a uma interpretação da lei islâmica).
A Sharia («caminho para o bebedouro», ou seja, o caminho para ser feita a vontade de Alá) é a lei sagrada, a vontade imutável e eterna de Deus para a Humanidade, o direito comum dos muçulmanos, que até hoje não foi codificado (10) . Como o Ius Canonicum para os católicos (11) ou a Halakhah para os judeus, a Sharia é a lei ou conjunto das normas que regulam a vida na comunidade dos crentes.
Presume-se que tudo é permitido (halal) a não ser que esteja, especificamente, proibido (haram) pela lei islâmica. Por exemplo, em Meca ou Medina está vedada a entrada de não muçulmanos e ninguém pode ser assassinado (Haramayan).
As normas da Sharia, como sucede com as leis civis, são jurídicas, estabelecendo uma obrigação de conduta individual e social por reflexo e em ordem a uma determinada visão do homem e do mundo. Segundo a jurisprudência islâmica, todos os países onde prevalece a Sharia constituem a Dar al-Islam («Casa do Islão»). Na aceção ocidental, ubi homo, ibi ius. Trata-se de um dos sistemas legais mais difundidos no Mundo, a par dos sistemas anglo-saxónico (common law) e romano-germânico (civil law), mas que não conhece o mesmo grau de aplicabilidade em todos os Estados muçulmanos nem em todos os Estados em que se encontrem muçulmanos.
Tradicionalmente, o Direito Islâmico é a fonte do sistema jurídico nacional nos Estados teocráticos quando corresponde a todo o direito que é válido e diretamente aplicável nesses Estados. Porém, em outros Estados pode ser aplicável não diretamente mas pela mão do direito estatal, se o legislador cria normas cujo teor coincide com os preceitos da Sharia (12) .
Na seara do Direito Internacional Privado, têm-se colocado questões da negação de reciprocidade e da recusa do viver coletivo. Que vimos despoletadas em vários países europeus, contra o uso do véu integral (niqab ou burqa) (13) nos espaços públicos. Mas também na Suíça (14) , sobre a construção de minaretes, e no Reino Unido, na Dinamarca e na Alemanha, a propósito dos bairros citadinos em que a comunidade muçulmana pretende ver ali aplicada a Sharia (15) .
Pelo antedito, podemos verificar que o teocentrismo muçulmano, sendo muito prático, também se torna patente no Direito Islâmico, ainda que brotando de uma pluralidade de fontes. Este direito, sendo privativo, tem um sentido universalista, por comum aos fiéis e aonde qualquer um deles se encontrar, dimanando da natureza do credo monoteísta em Alá. Sendo que «Todos os seres humanos são iguais no princípio da dignidade humana, assim como nas obrigações para com Alá e nas responsabilidades», sem distinção de credo (16) .
Por assim dizer, estamos ante a autoexpressão normativa e imperativa do Islão enquanto realidade do indivíduo e da comunidade, e que, em particular no caso da Sharia, tem feito germinar a ideia de uma ordem normativa universal e totalizadora, quanto impositiva, que se vê a si própria como tal, numa relação difícil com o pluralismo, a diferença e, afinal, a tolerância (17) .
Mas, antecipamos, o desafio não é menor para qualquer ordenamento jurídico de um Estado ocidental (por exemplo, o direito português, encimado pela Constituição de 1976), que também se vê a si como uma totalidade, sobre a possibilidade de outro absoluto lhe servir como fonte.
Os muçulmanos acreditam numa «obrigação em estabelecer uma ordem islâmica» (18) , ou seja, numa unidade de vida do indivíduo e da sociedade, em que todas as dimensões (pessoal, familiar, cultural, social e política) confluem no acatamento do plano do seu Deus único (19) . «O Islão quer ser uma mundividência que tudo abarca, uma forma ou caminho de vida que tudo determina» (Hans Küng) (20) .
Assinale-se, esta ideia de unidade de vida, no que respeita à vida no plano individual, é também cultivada no Cristianismo e nas religiões em geral, como sinal de integridade e devoção, por oposição a uma vida dupla (a vida interior – a vida de relação com Deus –, por um lado, e por outro, diferente e separada, a vida familiar, profissional e social, cheia de pequenas realidades terrenas). No que respeita ao Islão, as dificuldades poderão surgir quanto à vida em grupo, face a quem é diferente. O mesmo é dizer, qual a sua possibilidade de inserção no espaço liberal da comunidade pluralista que temos como uma das marcas da civilização europeia.
Não se trata somente de uma teologia, mas de uma conceção de vida a partir de una exigência radical (de raíz): a união entre o culto e a atividade quotidiana. Por esta mesma razão, o credo assume, como facetas, a própria fé (al-iman), a consciência de Deus (al-taqwa), o culto (al-ibadad) e uma forma de vida e moralidade em coerência com as três anteriores (al-juluq). Os meios de aperfeiçoamento do individuo no caminho que o aproxima de Deus, são internos (jihād al-Akbar ou grande jihād, do combate interior) ou externos (jihād al-Asghar ou pequena jihād, do combate armado contra os inimigos do Islão).
Por aqui se infere que a relação do muçulmano com Deus não é a de uma ovelha guiada pelo pastor, como figuradamente sucede com o cristão, mas mais a de um guerreiro em nome e ao serviço do seu Senhor. Uma religião da paz, mas também da força.
Dito de outro modo, se o tema central do Cristianismo é o amor, no Islão esse tema é a justiça. Numa amplitude que não coincide com a perspetiva ocidental ou cristã, ou não viesse a legalidade em primeiro (religião de lei). No Alcorão, a justiça é mesmo apresentada como uma das razões pelas quais Deus criou a Terra. Um dos 99 nomes de Alá é Al 'Adl (o Justo). Donde que, para agradar a Deus, sobre os crentes impende uma grande exigência para defender a justiça e os juramentos, transcendendo todos os laços com a família e a sociedade.
Por uma ordem justa sem a qual a paz não poderá existir. Mas a paz (as-salaam), segundo revelado no Alcorão, não equivale a uma mera ausência de guerra, assumindo uma índole dinâmica ou mesmo combativa e tendo por condição prévia a justiça. Isto é, somente é atingida com a eliminação das situações de desigualdade e de injustiça numa dada sociedade. A esta luz, conclui V. S. Naipaul, laureado com o Prémio Nobel da Literatura em 2001: «Foi o século XX que fez do Islão revolucionário, dando novo significado às velhas ideias islâmicas de igualdade e de união, abaladas por sociedades estáticas ou atrasadas» (21) .
Não alinhando em utopias racionais e sendo caracterizado pelo pragmatismo (a «vontade» de Deus), o Islão não pretende uma renúncia ao mundo nem, diversamente do Cristianismo, aceita com resignação o sofrimento e os males deste mundo e a condição humana como pecaminosa ou frágil. Existe uma responsabilidade moral e religiosa do muçulmano na busca e promoção da justiça e paz em todos os momentos e em todas as circunstâncias. Ante a opressão e injustiça, deve envolver-se na jihād, esforçando-se com todos os seus meios, internos e externos, no «combate» por uma ordem justa.
Está pois muito presente uma ideia de justiça «reparadora» ou «restauradora» da justiça (22) , ao serviço de Deus, que, aliás, muito inspira o sistema criminal islâmico no que respeita à punição dos crimes qisas (crimes contra a integridade física e homicídios, em qualquer dos casos, voluntários) (23) .
Em algumas situações, para que a realidade corresponda aos ideais projetados pelo Alcorão, impõe-se uma «retificação», por atos externos, dos ultrajes feitos a Alá. A guerra santa (jihād al-Asghar ou pequena jihād, do combate armado contra os inimigos do Islão) torna-se necessária como um meio para o fim do (r)estabelecimento da justiça. Parecendo dar razão a Walter Benjamin, judeu e marxista, para quem toda a finalidade divina tem como princípio a justiça (24) .
Acresce ainda a existência da enraizada crença numa predestinação. Já no século XVIII, João José Pereira o observava na sua digressão: «Os Turcos creem a Predestinação sem restrição alguma. Dizem que o destino de cada um está escrito no Céu, que ninguém pode evitar a sua boa, ou má fortuna, nem por prudência nem pelo maior esforço, que fazer possa. Esta opinião é consequência, ou persuasão do que Mafoma contou, que vira no terceiro Céu, e está de tal modo impressa no espírito do povo, que os soldados não têm dificuldade em exporem temerariamente a sua vida nas ocasiões mais arriscadas» (25) . A mesma predestinação que, no século XX, levou Bertrand Russel a dizer que o maometanismo é prático, social e não espiritual, mais preocupado em conquistar o império deste mundo (26) .
Rui Marques
Inspetor Tributário
Mestre em Direito e Economia
JusJornal, N.º 23, Secção Penal / Opinião , Janeiro 2018, Editora Wolters Kluwer
JusNet 21/2018
Existe uma responsabilidade moral e religiosa do muçulmano na busca e promoção da justiça e paz em todos os momentos e em todas as circunstâncias.
No Alcorão (Qur`an, ou seja, «a recitação») (1) , do primeiro ao último verso, numa prosa escrita em árabe, repousa a palavra de Deus, revelada ao profeta Maomé (Muhammad ibn Abd Allah). Ao contrário do que sucede, a espaços, no Novo Testamento dos cristãos, é apenas Deus que fala, não havendo qualquer espaço para teologia, no sentido de que pudesse ser vertida no Livro alguma interpretação humana da mensagem transmitida por Deus. Trata-se pois de uma revelação da palavra de Deus e não de um seu registo (2) . Como já se referiu, não há uma «Igreja» como não há um magistério que se arrogue da infalibilidade, ao invés do que, por exemplo, sucede na religião católica. O Islão é a aceitação do Alcorão, ditado sobrenatural e forma perfeita da palavra de Deus, antes da imitação do Profeta.
Na definição de Voltaire, o Qur`an é «uma assembleia de sermões em que se encontram alguns factos, algumas visões, revelações, leis religiosas e civis» (3) . Julgamos assim compreender Hans Küng quando o mesmo, lucidamente, nos assevera que «[o] que para os cristãos é teologia, para os muçulmanos é lei religiosa, que o Estado deve ajudar a aplicar» (4) . E, sendo Alá, Deus pessoal e vivo, quem tudo domina, está encontrado o legislador.
Portanto, a legitimação do Direito Islâmico não reside na vontade humana, limitada e titubeante, mas antes na vontade de Deus (5) , verdadeira e imutável por perfeita, que terá dado as leis aos seus fiéis para que estes lhes (e Lhe) dediquem uma obediência sem quaisquer tergiversações. Daqui radicando a sua superioridade (6) , mas também a sua plenitude e universalidade que justificam a imposição.
Consequentemente, ante a lei escrita como medida, vale uma atitude ou perspetiva individual dualista: crer ou não crer (7) . As prescrições jurídicas dão o ensejo para fazer apologética do Islão, a partir do direito muçulmano defende-se a doutrina do Alcorão (8) . Tendo por característica primacial a sua proveniência divina, o Direito Islâmico dirige-se a cada muçulmano. Como todos os seres humanos são chamados a reconhecer a revelação e a submeterem-se à vontade de Deus, dirige-se a todo e qualquer um.
Estamos diante de uma ordem normativa universal, totalizadora. Este Direito não conhece limites territoriais na sua vigência e aplicação, uma vez que não é criação de um Estado ou de outro poder político. Antecedeu o Estado e sobreviver-lhe-á, dirigindo-se à comunidade dos fiéis, onde quer que estes se encontrem.
Não obstante, e diversamente do Antigo e Novo Testamento cristãos e da Tora (9) hebraica, encontramos no Livro de Alá muito mais uma religião da ética, com o seu conjunto integral de normas de vida (política, social, familiar, religiosa, etc.) dirigidas aos muçulmanos, e menos uma religião da lei. Somente numa pequena parte são tratadas, diretamente, matérias jurídicas (sobretudo questões jurídicas familiares, e algumas penais), mas sempre partindo de uma perspetiva ética. O Alcorão é assim como que um preâmbulo do corpus jurídico muçulmano que, com o avançar dos tempos, se foi transformando numa «religião da lei».
Como fonte de direito pontifica também a Sunnah («caminho trilhado»), conhecida como Tradições do Profeta. São os feitos, dizeres e aprovações de Maomé, tudo o que ele disse, fez ou aprovou durante o seu tempo como profeta e mensageiro de Deus, tendendo os muçulmanos a seguir e praticar os seus exemplos, a partir de muitos livros compilados.
Quando o Alcorão ou a Sunnah não se pronunciaram sobre uma determinada matéria, é utilizado o ijma («consenso» ou «acordo»), que serve como precedente, e a qiyas («interpretação legal das diretivas do Alcorão e da Sunnah, através do raciocínio por analogia»). Como fontes indiretas do direito muçulmano, a fatwa (édito ou decreto interpretativo ou orientativo, irrevogável), de má fama no Ocidente desde que, em 1988, Salman Rushdie foi condenado à morte por apostasia, a fiqh (ciência jurídica) e o ijtihad («esforço» de investigação pessoal que conduz a uma interpretação da lei islâmica).
A Sharia («caminho para o bebedouro», ou seja, o caminho para ser feita a vontade de Alá) é a lei sagrada, a vontade imutável e eterna de Deus para a Humanidade, o direito comum dos muçulmanos, que até hoje não foi codificado (10) . Como o Ius Canonicum para os católicos (11) ou a Halakhah para os judeus, a Sharia é a lei ou conjunto das normas que regulam a vida na comunidade dos crentes.
Presume-se que tudo é permitido (halal) a não ser que esteja, especificamente, proibido (haram) pela lei islâmica. Por exemplo, em Meca ou Medina está vedada a entrada de não muçulmanos e ninguém pode ser assassinado (Haramayan).
As normas da Sharia, como sucede com as leis civis, são jurídicas, estabelecendo uma obrigação de conduta individual e social por reflexo e em ordem a uma determinada visão do homem e do mundo. Segundo a jurisprudência islâmica, todos os países onde prevalece a Sharia constituem a Dar al-Islam («Casa do Islão»). Na aceção ocidental, ubi homo, ibi ius. Trata-se de um dos sistemas legais mais difundidos no Mundo, a par dos sistemas anglo-saxónico (common law) e romano-germânico (civil law), mas que não conhece o mesmo grau de aplicabilidade em todos os Estados muçulmanos nem em todos os Estados em que se encontrem muçulmanos.
Tradicionalmente, o Direito Islâmico é a fonte do sistema jurídico nacional nos Estados teocráticos quando corresponde a todo o direito que é válido e diretamente aplicável nesses Estados. Porém, em outros Estados pode ser aplicável não diretamente mas pela mão do direito estatal, se o legislador cria normas cujo teor coincide com os preceitos da Sharia (12) .
Na seara do Direito Internacional Privado, têm-se colocado questões da negação de reciprocidade e da recusa do viver coletivo. Que vimos despoletadas em vários países europeus, contra o uso do véu integral (niqab ou burqa) (13) nos espaços públicos. Mas também na Suíça (14) , sobre a construção de minaretes, e no Reino Unido, na Dinamarca e na Alemanha, a propósito dos bairros citadinos em que a comunidade muçulmana pretende ver ali aplicada a Sharia (15) .
Pelo antedito, podemos verificar que o teocentrismo muçulmano, sendo muito prático, também se torna patente no Direito Islâmico, ainda que brotando de uma pluralidade de fontes. Este direito, sendo privativo, tem um sentido universalista, por comum aos fiéis e aonde qualquer um deles se encontrar, dimanando da natureza do credo monoteísta em Alá. Sendo que «Todos os seres humanos são iguais no princípio da dignidade humana, assim como nas obrigações para com Alá e nas responsabilidades», sem distinção de credo (16) .
Por assim dizer, estamos ante a autoexpressão normativa e imperativa do Islão enquanto realidade do indivíduo e da comunidade, e que, em particular no caso da Sharia, tem feito germinar a ideia de uma ordem normativa universal e totalizadora, quanto impositiva, que se vê a si própria como tal, numa relação difícil com o pluralismo, a diferença e, afinal, a tolerância (17) .
Mas, antecipamos, o desafio não é menor para qualquer ordenamento jurídico de um Estado ocidental (por exemplo, o direito português, encimado pela Constituição de 1976), que também se vê a si como uma totalidade, sobre a possibilidade de outro absoluto lhe servir como fonte.
Os muçulmanos acreditam numa «obrigação em estabelecer uma ordem islâmica» (18) , ou seja, numa unidade de vida do indivíduo e da sociedade, em que todas as dimensões (pessoal, familiar, cultural, social e política) confluem no acatamento do plano do seu Deus único (19) . «O Islão quer ser uma mundividência que tudo abarca, uma forma ou caminho de vida que tudo determina» (Hans Küng) (20) .
Assinale-se, esta ideia de unidade de vida, no que respeita à vida no plano individual, é também cultivada no Cristianismo e nas religiões em geral, como sinal de integridade e devoção, por oposição a uma vida dupla (a vida interior – a vida de relação com Deus –, por um lado, e por outro, diferente e separada, a vida familiar, profissional e social, cheia de pequenas realidades terrenas). No que respeita ao Islão, as dificuldades poderão surgir quanto à vida em grupo, face a quem é diferente. O mesmo é dizer, qual a sua possibilidade de inserção no espaço liberal da comunidade pluralista que temos como uma das marcas da civilização europeia.
Não se trata somente de uma teologia, mas de uma conceção de vida a partir de una exigência radical (de raíz): a união entre o culto e a atividade quotidiana. Por esta mesma razão, o credo assume, como facetas, a própria fé (al-iman), a consciência de Deus (al-taqwa), o culto (al-ibadad) e uma forma de vida e moralidade em coerência com as três anteriores (al-juluq). Os meios de aperfeiçoamento do individuo no caminho que o aproxima de Deus, são internos (jihād al-Akbar ou grande jihād, do combate interior) ou externos (jihād al-Asghar ou pequena jihād, do combate armado contra os inimigos do Islão).
Por aqui se infere que a relação do muçulmano com Deus não é a de uma ovelha guiada pelo pastor, como figuradamente sucede com o cristão, mas mais a de um guerreiro em nome e ao serviço do seu Senhor. Uma religião da paz, mas também da força.
Dito de outro modo, se o tema central do Cristianismo é o amor, no Islão esse tema é a justiça. Numa amplitude que não coincide com a perspetiva ocidental ou cristã, ou não viesse a legalidade em primeiro (religião de lei). No Alcorão, a justiça é mesmo apresentada como uma das razões pelas quais Deus criou a Terra. Um dos 99 nomes de Alá é Al 'Adl (o Justo). Donde que, para agradar a Deus, sobre os crentes impende uma grande exigência para defender a justiça e os juramentos, transcendendo todos os laços com a família e a sociedade.
Por uma ordem justa sem a qual a paz não poderá existir. Mas a paz (as-salaam), segundo revelado no Alcorão, não equivale a uma mera ausência de guerra, assumindo uma índole dinâmica ou mesmo combativa e tendo por condição prévia a justiça. Isto é, somente é atingida com a eliminação das situações de desigualdade e de injustiça numa dada sociedade. A esta luz, conclui V. S. Naipaul, laureado com o Prémio Nobel da Literatura em 2001: «Foi o século XX que fez do Islão revolucionário, dando novo significado às velhas ideias islâmicas de igualdade e de união, abaladas por sociedades estáticas ou atrasadas» (21) .
Não alinhando em utopias racionais e sendo caracterizado pelo pragmatismo (a «vontade» de Deus), o Islão não pretende uma renúncia ao mundo nem, diversamente do Cristianismo, aceita com resignação o sofrimento e os males deste mundo e a condição humana como pecaminosa ou frágil. Existe uma responsabilidade moral e religiosa do muçulmano na busca e promoção da justiça e paz em todos os momentos e em todas as circunstâncias. Ante a opressão e injustiça, deve envolver-se na jihād, esforçando-se com todos os seus meios, internos e externos, no «combate» por uma ordem justa.
Está pois muito presente uma ideia de justiça «reparadora» ou «restauradora» da justiça (22) , ao serviço de Deus, que, aliás, muito inspira o sistema criminal islâmico no que respeita à punição dos crimes qisas (crimes contra a integridade física e homicídios, em qualquer dos casos, voluntários) (23) .
Em algumas situações, para que a realidade corresponda aos ideais projetados pelo Alcorão, impõe-se uma «retificação», por atos externos, dos ultrajes feitos a Alá. A guerra santa (jihād al-Asghar ou pequena jihād, do combate armado contra os inimigos do Islão) torna-se necessária como um meio para o fim do (r)estabelecimento da justiça. Parecendo dar razão a Walter Benjamin, judeu e marxista, para quem toda a finalidade divina tem como princípio a justiça (24) .
Acresce ainda a existência da enraizada crença numa predestinação. Já no século XVIII, João José Pereira o observava na sua digressão: «Os Turcos creem a Predestinação sem restrição alguma. Dizem que o destino de cada um está escrito no Céu, que ninguém pode evitar a sua boa, ou má fortuna, nem por prudência nem pelo maior esforço, que fazer possa. Esta opinião é consequência, ou persuasão do que Mafoma contou, que vira no terceiro Céu, e está de tal modo impressa no espírito do povo, que os soldados não têm dificuldade em exporem temerariamente a sua vida nas ocasiões mais arriscadas» (25) . A mesma predestinação que, no século XX, levou Bertrand Russel a dizer que o maometanismo é prático, social e não espiritual, mais preocupado em conquistar o império deste mundo (26) .