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Uma força da natureza

migel

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Set 24, 2006
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Uma força da natureza


Detesta a palavra impossível. Detesta ouvir nunca. E coitadinho. E que pena. Em vez disso, Paulo luta. E vence.

Primeiro, as ligaduras. Em seguida, as meias. Depois, o espectáculo. Paulo desliza entre as pernas dos outros jogadores, fita um, ludibria outro, domina a bola, domina o jogo. De repente, neste mágico serpentear, Paulo Azevedo dá um impulso ao tronco e faz um chapéu ao guarda-redes. Celebra o golo, correndo pelo campo a alta velocidade. Os outros companheiros de equipa não se apiedam. Saltam-lhe em cima, festejando também. O árbitro já não estranha aquele jogador que corre de gatas e chuta com os braços. Sim, leu bem. Com os braços.
Paulo Azevedo nasceu sem pernas. E sem mãos. E sem parte dos braços. Em campo, Paulo é do tamanho de um homem sentado. A natureza fê-lo assim, partido ao meio. Mas foi só o corpo que nasceu ceifado. O homem, aquilo de que é feito, é de uma intereza rara. A lento imenso. Paulo é uma força da natureza. Uma lição.
Nasceu em Leiria à 25 anos, aos oito meses de gestação e de cesariana urgente. Quando o retiraram de dentro da mãe, médicos e enfermeiras ficaram petrificados. Pouco depois, a equipa médica tinha aumentado. O hospital em peso veio ver o recém-nascido. Paulo terminava logo a baixo do rabo. Além de não ter pernas, um dos braços acabava depois do cotovelo o outro não chegava a ter cotovelo. Logo, Paulo também não tinha mãos. Como dizer aquela mãe? Como dar-lhe tamanho desgosto naquele que devia ser o dia mais feliz da sua vida? Clara dormia ainda. O efeito da anestesia geral separava a do sobressalto. A madrinha, atordoada, digeria o susto. E ensaiava a conversa: “Clara, sabes… O teu menino...nasceu com um problema.” Quando Clara acordou, a madrinha preparou-a. E depois estendeu-lhe o bebé, embrulhado num cobertor. Por fim, destapou-o. A mãe fechou os olhos respirou fundo, beijou o seu menino, primeiro filho, que havia de se tornar único. E então disso aquilo que só uma mulher especial poderia dizer: “Se não tivesse cabeça, era pior, não era madrinha?” Paulo cresceu igual às outras crianças. Percebeu que era diferente quando começou a olhar com olhos de ver. Devia ter uns três ou quatro anos. Por que é que não tenho pernas? Porque é que não tenho mãos? A mãe e o avô João Manuel explicaram tudo sem rodeios, sem paninhos quentes, sem ais nem uis. A mãe levava-o para todo o lado, sem embaraços, sem limitações. “Despia-me na praia, exibia-me com o orgulho de uma mãe. Foi sempre uma grande mãe. Nunca me escondeu.” Para o ajudar, arranjou-lhe umas próteses. Não era fácil andar em cima daquilo, de umas pernas que não eram suas. As dores na zona do encaixe eram agudas, por vezes insuportáveis. Mas não para o Paulo. Na sua cabeça, tudo era simples: tinha de aguentar, tinha de fazer, tinha de ultrapassaro obstáculo que a natureza lhe impusera. Dar-lhe a volta. Hoje, as marcas nas virilhas dizem muito - dizem tudo - sobre as dores que teve de suportar em criança. Paulo encolhe os ombros. “Tinha de ser. Já passou.”
Aos quatro anos foi para Alcoitão mas o avô trouxe-o, revoltado com o que um médico vaticinou: “Esta criança nunca vai conseguir andar.” Aos dezassete anos, Paulo fez questão de lá voltar. Procurou o médico e atirou, vencedor: “não ia conseguir andar? E esta, hem?”
Na escola, foi sempre estouvado. Imparável. Uma professora chegou mesmo a dizer-lhe: “Não vais levar a mal, Paulo, mas ainda bem que não tens pernas! Se assim já não há quem te pare…” Era bem verdade. Paulo nunca deixou de correr, de rir, de jogar à bola, de ir para a praia. E brincou sempre com a sua deficiência, como se a falta de membros com que foi brindado não fosse mais que uma anedota divina. “Os professores às vezes diziam: “Quem tiver dúvidas ponha o dedo no ar”. E eu respondia: “Isso é discriminação! Então e eu? Não posso tirar dúvidas, é isso?” Os professores ficavam à rasca. Eu e os meus colegas partíamos o coco a rir!”
Paulo fez o percurso normal de um jovem normal. “Nunca me mentalizei de que não podia fazer as coisas.
Tinha de experimentar tudo. Se via os outros a fazer, também queria. E nunca desisti até conseguir!”
Foi assim que foi para a natação e chegou aos paralímpicos, foi assim que se meteu a fazer escalada, foi assim que aprendeu a fazer body-board. “Já salvei um inglês aí com uns 120 kg! Ele estava no mar, metido mesmo numa zona de remoinhos. Estava aflito. Eu, em cima da minha prancha, percebi que ele não conseguia sair e aproximei-me. Dei-lhe a prancha para ele segurar e empurreio para a areia. Até me quis dar dinheiro, o homem!”
Na praia, diverte-se a ver as caras de espanto dos que o vêem chegar, tirar as próteses, ficar do tamanho de um homem sentado, vestir o fato e gatinhar até à água. “Quando era mais pequeno, adorava fingir que me estava a afogar. Afinal, era isso que todos esperavam. Que eu me afogasse. Hoje, prefiro dar show na minha prancha.”
Foi também assim, com esta guerra, que Paulo Azevedo começou a jogar futebol de salão, foi assim que, aos 13 anos, começou a conduzir a moto-quatro que o avô lhe ofereceu, aos 18 meteu-se nas corridas de todo o terreno e aos 19 tirou a carta de ligeiros. “Cheguei a tentar motas com duas rodas. Era difícil por causa do equilíbrio. Mas não era impossível!”
“Impossível” é palavra desconhecida de Paulo Azevedo. Não consta do seu vocabulário. Há apenas uma coisa que lhe está vedada ser jogador de futebol profissional, federado, quem sabe se pertencer à Selecção Nacional, entrar nos grandes campeonatos. Poder chegar a ser estrela. Era o seu maior sonho. Percebendo o tamanho da contrariedade, Paulo voltou a fintar o destino. Continuou a jogar e apostou no outro lado do futebol. Já que não podia ser um novo Cristiano Ronaldo, talvez pudesse vir a ser o novo José Mourinho. Meteu-se a estudar Para treinador. E já vai no segundo nível do curso de treinadores de futebol da 1 Liga.
Com este nível, já tem direito a ser adjunto da Superliga. Quem o conhece não se surpreenderia ser um dia o visse a treinar uma grande equipa algures no Mundo. E ser estrela. E, desse modo, tornar a rir da partida que a Natureza ou Deus, ou ambos lhe pregaram.
Até lá, Paulo vai apostando noutros sonhos. Tem a licenciatura em Jornalismo praticamente completa. Faltam-lhe duas cadeiras. Até ao segundo ano do curso, viveu em Coimbra, perto da Faculdade de Letras. Depois, passou a ir e vir de carro. Um carro adaptado para si, com acelerador e travão junto do volante, um carro desportivo, um carro que muitos diriam que Paulo nunca poderia conduzir. “Nunca” é outra palavra de que Paulo não gosta. E “pena”. E “coitadinho”. “Às vezes, vejo as pessoas a olharem para mim e a cochicharem. Eu percebo. Sou diferente. Mas prefiro quando vêm ter comigo e perguntam: “O que é que se passou consigo? Foi acidente? Nasceu assim?” E eu explico. Sem problema. Não sou nenhum coitadinho. Foi assim que eu vim ao Mundo, é assim que têm de me aceitar: Quem não gostar… paciência!”
Paulo vive na freguesia da Redinha e trabalha há quase dois anos numa empresa de obras públicas. Trata da facturação, faz o controle da produção, e da qualidade. Apesar de não ter mãos, junta os dois braços para segurar a caneta, escreve no computador, atende o telefone, envia mensagens por telemóvel, folheia livros de facturas. Aprendeu a fazer tudo sem a ajuda dos dedos.
Além do sonho de ser jogador, de “ter uma bola nos pés”, Paulo tem outros. O maior de todos é ser actor. E para isso Tozé Martinho já lhe deu um empurrão, convidando-o a inscrever-se no curso de Formação de Actores que dirige na Universidade Lusíada, em Lisboa. As matrículas são em Julho, as aulas começam em Setembro. Paulo não pensa noutra coisa. Serão dois anos de aprendizagem e depois o desejo de poder representar. Em teatro, claro. Mas também em cinema e televisão. Impossível para alguém sem pernas e sem mãos? Não. Paulo não sabe o que significa a palavra “impossível”. E quer acreditar que, com esforço, vencerei mais esta batalha: “Todos os dias venço pequenas lutas, grandes batalhas. A minha vida tem sido sempre assim. Esta é mais uma que tenho de travar. E hei-de vencê-la!”
Ao seu lado a dar apoio e coragem, está a Maria João. Paulo Azevedo chegou a pensar que talvez não fosse fácil ter namorada. Enganou-se. Maria João é de Santarém, mas estuda Engenharia Alimentar em Faro. Uma amiga comum apresentou-os. Ela gostou do olhar dele, da graça, da fúria de viver e de vencer. Namoram há dois anos. Os pais dela foram outra luta: “Para eles foi um choque. Mas eu percebo. Imagine o que é ter uma filha que lhe diz que namora com um rapaz sem pernas e sem mãos. O que é que você pensa? Os pais dela devem ter pensado que ela ia ter de me dar de comer, vestir, lavar. Não me conheciam. Não sabiam do que eu era capaz.” Hoje, sabem. E aprenderam a respeitá-lo. Quem sabe, a agradecer a Deus, ou ao destino, ou a ambos, por ter Posto o Paulo no caminho da filha. Um homem com H maiúsculo. Uma força da Natureza. Uma lição.

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Fonte:Selecções Reader's Digest-Setembro 2007
 
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