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"A Minha Guerra"

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"Uma mina matou o meu melhor camarada"

A Minha Guerra: Emboscada na Guiné

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Numa missa ao ar livre em frente ao rio Cacheu

Dor. Ela pediu-me mas nunca contei à namorada do Chico a forma horrível como ele morreu, no dia seguinte a termo-nos visto pela última vez.

A maior mágoa que trouxe da guerra no Ultramar foi a morte do meu melhor amigo, o Chico – de nome completo Francisco Pepino Tomás do Coito. Conhecemo-nos na recruta e, sendo ribatejanos, eu de Amiais de Baixo e ele de Alcanhões, criámos uma grande amizade, como se fôssemos irmãos. Quando embarcámos para a Guiné éramos radiotelegrafistas e pertencíamos ao mesmo batalhão mas fomos colocados em companhias diferentes, a 30 quilómetros de distância. Eu fiquei em Farim, no Norte, e ele em Quntina, na fronteira com o Senegal, onde estavam todos os atiradores. Como pertencíamos às Comunicações, falávamos muito durante a noite, quando estávamos no mesmo turno, ao longo dos oito meses de comissão.

A última vez que o vi foi na véspera da sua morte, quando veio ao meu quartel. O Chico escreveu quatro aerogramas para a família e a namorada, e pediu-me que os metesse no correio, uma vez que o avião chegava no dia seguinte. Dormiu na minha cama enquanto estive de serviço e partiu muito cedo, sem se despedir, pedindo apenas ao estafeta que me desse um abraço por ele.

De manhã, soube pelo rádio que morrera numa emboscada a caminho de Quntina. Pisaram uma mina antipessoal e o Chico morreu numa explosão horrível que lhe deixou o corpo todo desfeito. A sua morte deixou-me devastado e foi muito sentida por todos os que o conheciam. Mesmo assim, deixei os seus aerogramas no correio.

Passadas três semanas, recebi uma carta da namorada do Chico, a Madalena, da Tapada de Almeirim, que nunca conheci mas julgo ser (ou ter sido) juíza no Tribunal de Almada. Pedia-me por favor que lhe contasse a morte do namorado: como foi, se foi rápida ou lenta, se sofreu, se levou um tiro ou se foi atingido de outra maneira. Nunca lhe respondi, porque achei que dizer a verdade seria demasiado cruel. Aliás, nem à minha mãe contei, nas cartas que mandei para casa, que o Chico tinha morrido.

De resto, a guerra foi uma experiência horrível, e eu até costumo dizer que a Guiné é onde o sol é mais quente e o luar é mais turvo. A minha primeira sensação do que era uma guerra, e que me marcou profundamente, vivi-a a 22 de Abril de 1968, quando os turras atacaram o quartel com morteiros. Estava com o estafeta no posto de rádio – sempre o primeiro alvo a abater - e ouvimos um barulho horrível a grande distância. Ele disse-me: 'Amiais, isto é um ataque.' Mas acabámos por ficar, com ele a dizer-me que eu não tivesse medo.

Os rebeldes atacavam o quartel quase sempre ao dia 22 de cada mês. Num desses dias, ao ouvir os primeiros barulhos, corri para a enfermaria e escondi-me junto a uma parede. Ao olhar para cima, qual não foi o meu espanto quando vi o nome do meu pai gravado numa telha: 'Manuel Lourenço Frade'. Não faço a mínima ideia de como é que as telhas feitas na cerâmica dele, em Amiais de Baixo, foram parar à Guiné. E se calhar até tinham passado pelas minhas mãos quando lá trabalhava. Tive o pressentimento de que não ia morrer ali, como se o meu pai me estivesse a proteger.

Fui umas 20 vezes para o mato, o pior que nos podia acontecer. Numa ocasião, em Outubro de 1968, era o único branco no meio de 60 ou 70 ‘roncos’, guerrilheiros negros que estavam na sua terra mas ao serviço de Portugal. Como eles não tinham transmissões, tive de caminhar com um rádio de 16 quilos às costas durante dois dias e duas noites. Urinei para uma queimada para me poder mascarrar de preto e não ser um alvo fácil no meio deles. A missão era chefiada pelo comandante Chern, que me colocou um binóculo Bricama na cara para que eu visse um quartel de terroristas que tinha a fama de ser quase tão forte como o nosso. Eu disse-lhe para ter cuidado para ver para onde me levava, porque eu tinha mulher e dois filhos para criar na Metrópole. Era mentira, porque eu era solteiro e bom rapaz, mas funcionou e voltámos para trás. A guerra e a matança eram a coisa mais normal do Mundo para eles. Mas para mim não.

O dia mais feliz da minha vida foi quando regressei à Metrópole. Vivi situações muito complicadas mas sei que muitos portugueses sofreram bem mais do que eu, que só não fui mais sacrificado por ser radiotelegrafista. Nos momentos de acalmia, fugia à realidade escrevendo cartas à minha mãe. Aliás, quero deixar aqui um grande bem-hajam a todas as mães que tiveram filhos no Ultramar, mesmo às que já partiram, como a minha.

ENTRE NAMORADAS E NETOS

Depois de regressar em 1969 da Guiné, onde esteve na Companhia de Comando e Serviços do Batalhão de Caçadores 1932, Dinis Frade trabalhou como motorista de pesados durante 29 anos. Neste momento está em situação de pré-reforma, depois de ter ficado viúvo há seis meses. Tem dois filhos e uma filha, todos casados. O ex-combatente não perde um encontro do seu batalhão, porque ficou 'marcado pela união e amizade que se criou'. 'Na tropa falávamos de namoradas. Agora falamos dos netos', diz Dinis Frade, comparando as voltas que a vida dá.

PERFIL

Nome: Dinis Frade

Comissão: Guiné (1967/69)

Força: Batalhão de Caçadores 1932

Actualidade: Hoje, aos 61 anos, em Amiais de Baixo

Dinis Frade - Guiné (1967-1969)​
 

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"Os pés não foram decepados pelo inimigo"

A Minha Guerra: Emboscada da CCVA 1773

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Carro de combate M5A1, em Nambuangongo, no Norte de Angola. Este blindado tinha nome: chamava-se ‘Nina’. Guarnição: Almeida (chefe do carro); Ribeiro (apontador); Dias (condutor); Aires e Pouca Roupa (mecânicos)

Enquanto puder, defenderei com tudo o que estiver ao meu alcance o que os meus homens fizeram e como se comportaram em combate.

Cumpri quatro comissões no Ultramar: em Goa, como alferes e tenente, comandante de um pelotão de reconhecimento; em Moçambique, já capitão, no comando da Companhia de Cavalaria 568; em Angola, ainda capitão, comandante da Companhia de Cavalaria 1773; e, por último, já major, como oficial de operações do Batalhão de Cavalaria 3836. Torna-se difícl falar de tudo o que passei durante as minhas comissões. Falarei da ‘minha guerra’, a que vivi com os meus homens. Não falo do que fizeram ou deixaram de fazer as outras unidades.

Esta oportunidade de escrever sobre o que se passou devo aos militares sob o meu comando. Não admito que outros falem por nós. Enquanto puder, defenderei com tudo o que tiver ao meu alcance o que os meus homens fizeram e como se comportaram. Já que alguém resolveu escrever sobre a companhia que comandei (ver depoimento de António Guerreiro, na edição de 27 de Setembro de 2009, "Cortaram tornozelos para roubar as botas"), ainda por cima com mentiras e asneiras, resolvi sair a terreiro – não para salvar a minha honra mas para repor a verdade em defesa dos meus homens.

Escreveu António Guerreiro: "Lembro-me de um homem, de outra companhia, que foi vítima de uma emboscada e cortaram-lhe os tornozelos para lhe roubarem as botas. (...) Recordo-me de que estávamos de segurança e decidíramos jogar à bola para passar o tempo. A determinada altura, alguém chegou e disse: ‘Temos de sair já, parece que há mortos por aí’. Fomos ao acampamento vizinho e, quando lá chegámos, era um quadro de terror. Nesse destacamento, dentro de uma igreja pequenina, lá estavam três corpos tapados com lençóis. Destapei-os. (...) Lá estavam dois alferes e um cabo. Mortos a tiros e mutilados com catanas."

A companhia que eu comandava, a 1773, estava na Fazenda Beira Baixa, enquanto a de António Guerreiro, então furriel, a 1774, estava em Nambuangongo. É certo que dois grupos de combate da minha companhia sofreram uma emboscada, entre a Beira Baixa e Balacende, por um grupo inimigo constituído por uns 50 homens. Também é verdade que os guerrilheiros levaram as botas de um dos militares mortos. Mas é falso que lhe tivessem decepado os pés. Ao destapar os corpos, como diz que fez, podia ter observado isto mesmo. Mas é claro que não viu nada. Resta-me dizer, sobre este episódio, que os meus homens responderam à emboscada com valentia raiando a heroicidade.

Nunca ouvi falar do tal desertor que, segundo António Guerreiro, andaria na zona armado com uma espingarda de sniper a atirar apenas contra os graduados e a quem chamavam o ‘Mata Alferes’. É um disparate. Não usávamos nem galões, nem divisas, nem óculos escuros quando saíamos para combate.

Reposta a verdade, lembro agora um episódio que passei em Moçambique, no comando da Companhia 568, e que muito me marcou.

Tomámos parte em inúmeras operações, planeadas a maior parte delas pelo então tenente-coronel Pires Veloso (hoje major-general na reforma), a quem chamávamos o ‘Embrulha’. E ele sabia que tinha esta alcunha. Era o ‘Embrulha’ porque sempre que aparecia era para nos meter numa embrulhada. A maior que ele nos arranjou foi uma grande operação conjunta com pára-quedistas, comandos e fuzileiros. Esta acção militar foi desencadeada a norte de Metangula. Em dada altura, durante a operação, um ‘pára’ teve a infelicidade de pisar uma mina – e ficou sem um pé. O ferido, que se esvaía em sangue, necessitava de ser evacuado com urgência. Mas não havia helicópteros disponíveis. E ali não existia pista para um avião.

Os meus homens levavam para as operações uma catana no cinturão. Só havia uma solução: abrir uma picada à catanada, por entre a vegetação, para servir de pista. Foi isso que fez o pessoal da Companhia 568 – enquanto os pára-quedistas garantiam a nossa segurança. Ouvimos no céu o barulho de um Dornier 27. Não sabia que aos comandos do aparelho vinha o extraordinário piloto que era o então tenente Carrilho – e ainda bem que era ele. Conseguiu aterrar naquela pista improvisada e curta. Eu nunca tinha visto uma coisa assim: o avião balançava no ar como uma folha de papel a perder altura – até que o trem de aterragem tocou o solo. Embarcámos o ferido. O piloto conseguiu fazer subir o avião, motor na máxima rotação, em tão curto espaço.

Ainda hoje me vêm as lágrimas aos olhos ao recordar este episódio. Não sei se o ‘pára’ sobreviveu. Gostava de saber. Fizemos tudo para o salvar. Ele foi para o hospital, em Vila Cabral, nas mãos de Deus e do piloto Carrilho.

LIVRE DA INVASÃO DE GOA

José Cabedo fez a primeira comissão no Estado Português da Índia como comandante de um pelotão de reconhecimento em Goa. Os homens que o renderam sofreram a invasão pelas tropas indianas. O então governador, general Vassalo e Silva, não tinha alternativa que não fosse a rendição. Era isso ou, como pretendia Salazar, a carnificina inútil de uma guarnição escassa e mal armada. "Só pode haver portugueses vitoriosos ou mortos", exigia o presidente do Conselho em Lisboa. Os nossos militares foram humilhados e tratados como cobardes pelo regime.

PERFIL

Nome: José Cabedo (coronel)

Comissões: Goa, Moçambique, Angola (1958/1972)

Força: CCAV 568 e 1773, BAT 3836

Actualidade: Hoje, aos 74 anos, em Lisboa

José Cabedo, Comissões em Goa, Moçambique e Angola (1958-1972)​
 

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"Fomos atacados pela nossa aviação"

A Minha Guerra: Alvo errado na Guiné

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Manuel Sousa com a mulher e os dois filhos, que se juntaram a ele em Angola em 1970

Ultramar. Fiz duas comissões, na Guiné e em Angola, alistei-me no exército como voluntário e fui militar até me reformar, na Escola de Sargentos.


A minha história é diferente daquela que é contada pela esmagadora maioria dos que estiveram no Ultramar. Eu alistei-me como voluntário no Exército e passei a vida no meio militar. Ainda hoje, reformado, ajudo nas questões administrativas na Liga dos Combatentes. Eu fui um dos 180 homens que partiram no ‘Niassa’, a 30 de Julho de 1966, com destino à Guiné. Desembarcámos em Bissau a 5 de Agosto e seguimos de imediato numa lancha para Catió e depois para a ilha de Como, que tinha um papel de destaque nos símbolos da luta do PAIGC.

Estivemos seis meses na ilha. O meu lema era: 'Não morrem todos, porque é que me há-de calhar a mim?' A primeira peripécia aconteceu ao fim de quatro meses, com a nossa própria aviação, que nos avistou e pensou sermos o inimigo. Houve uma descoordenação, não conseguimos contactar os nossos camaradas e fomos bombardeados. Tivemos de fugir para o aquartelamento e, por sorte, ninguém ficou ferido.

As coisas não estavam a correr bem. Não tínhamos água potável na ilha. As lanchas da Marinha abasteciam-nos todos os dias, desde Catió, mas quando não havia maré não podiam cumprir a missão. Tínhamos de poupar. Só tomávamos banho e lavávamos a roupa quando chovia. Ao rio não íamos porque tinha crocodilos. Foi ali que se registaram os primeiros feridos da companhia. Tínhamos armadilhado o caminho até aos bidões de gasolina, junto ao rio, e apenas os condutores sabiam lá chegar. Só que um cão accionou as minas, que feriram cinco militares.

Dali fomos para o aquartelamento em Empada, em Março de 1967. Quando regressava de uma operação para o quartel, o furriel Ribeiro foi alvo de uma emboscada e atingido a tiro na medula, ficando paraplégico. Em combate foi o único ferido da companhia. O único morto aconteceu em Bissau, quando estávamos prestes a regressar. Ele vinha do hospital militar e foi atropelado por uma viatura da tropa. Fui eu, por ser o mais antigo do quadro, quem ficou encarregue de trazer o corpo e o seu espólio e de os entregar à família.

O maior susto que apanhei foi em Tite. Numa noite fui ao aquartelamento, em serviço da companhia (eu era comandante de secção), numa avioneta da Força Aérea, de dois lugares, que fazia o reabastecimento e levava o correio. Ia pernoitar no quartel. Tinha tomado banho e tocou o recolher, às 21h30, e o silêncio meia hora depois. Logo a seguir estivemos meia hora debaixo de fogo. Nem arma tinha para ripostar. As tripulações dos Panhard correram para lançar o contra-ataque mas dois dos condutores – um cabo e um soldado – foram atingidos e morreram. A certa altura, o major de operações, Jasmim de Freitas, apanhou um Panhard, saiu do quartel e fez dispersar o inimigo.

Voltámos à Metrópole no paquete ‘Uíje’ a 15 de Maio de 1968. Em 1969, fui mobilizado para Angola. A partida foi a 26 de Novembro no ‘Império’ e chegámos a 6 de Dezembro a Luanda. Estivemos seis dias em Granafil e depois fomos para Mamarrosa, sede do batalhão.

A 22 de Junho de 1970 fomos para Cuimba, para render o Batalhão de Artilharia 2864. Não sofremos emboscadas e a vida correu tranquila. O mesmo não puderam dizer as outras companhias do meu batalhão. Num patrulhamento junto à fronteira com a República do Congo o soldado Anastácio de Jesus Magalhães, da Companhia de Caçadores 2608, accionou uma mina antipessoal e morreu. Outros dois mortos em serviço ocorreram nas restantes companhias – o soldado Adelino António Pereira Magalhães, da 2609, e o 1º cabo Armando da Fonseca e Silva, da 2610. Também as subunidades de reforço registaram baixas – o 1º cabo Herculano Tavares Pontemieiro, do Pelotão de Morteiros 2167, e o sargento Silva Joaquim e o soldado Pedro Camboa, das tropas de elite.

Em Janeiro de 1972 regressei a Luanda, ao quartel-general da Região Militar de Angola, para desempenhar serviços administrativos na 1ª repartição. Os meus camaradas regressaram à Metrópole. Como era do quadro permanente, fiquei em Angola, onde a minha família já estava desde 1970. Quando me encontrava em Cuimba, a minha mulher e os meus dois filhos estavam em São Salvador, a 100 quilómetros. Regressei à Metrópole a 22 de Dezembro de 1974, ao Regimento de Infantaria 5, e fui promovido a primeiro-sargento. Fui formador da Escola de Sargentos do Exército, que sucedeu ao Regimento de Infantaria 5. Por causa da idade, não fui ao curso de promoção a sargento-chefe. Passei à reforma em 1987.

UMA VIDA DEDICADA AO EXÉRCITO

Manuel João Martins Sousa é de São Vicente, Elvas. Fez a 4.ª classe e entre os 11 e os 20 anos trabalhou no campo. De 1957 a 1960 esteve no Batalhão de Caçadores (BCAÇ) 8, em Elvas, e em 1960 no BCAÇ 9, em Viana do Castelo. Nesse ano fez o Curso de Formação de Sargentos Milicianos, em Tavira.

Em Janeiro de 1961 foi para o Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha. Em 1963 casou-se e em 1965 já era furriel. Um ano depois foi para a Guiné (1966/68), logo após nascer o primeiro filho. Esteve ainda em Angola, no BCAÇ 2890, como segundo-sargento (1969/74).

PERFIL

Nome: Manuel Sousa

Comissão: Guiné (1966/68)

Força: Companhia de Caçadores 1587

Actualidade: Hoje, aos 72 anos, nas Caldas da Rainha

Manuel Sousa, Guiné (1966-1968)​
 

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"Um deles ainda vi a dar o último suspiro"

A Minha Guerra: Militar-poeta em Moçambique

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Na velha Mercedes, a atravessar uma ponte feita por militares

Ser cozinheiro deu-me uma tropa mais tranquila. Apesar disso ainda assisti à morte de vários camaradas e estive envolvido nalguns combates.

Foi em Moçambique, em 1966, que empunhei armas para lutar em nome da minha Pátria. Segui viagem desde Lisboa no navio ‘Vera Cruz’, onde também viajava o general Ramalho Eanes, na altura capitão e comandante de uma companhia de caçadores. A bordo iam três batalhões, mas mesmo assim tive oportunidade de travar conhecimento com Eanes, que era compadre do capitão que comandava o meu batalhão. Hoje somos vizinhos e bons amigos. Mas a minha guerra começou a 4 de Janeiro de 1964, quando fiz 20 anos e fui dar o nome, como era exigido nessa altura. Cinco meses depois fui à inspecção, em Góis, tendo sido considerado apto para todo o serviço militar.

Assentei praça em 26 de Outubro de 1965, no Regimento de Infantaria 10, em Aveiro. Ali fiz a recruta, em Novembro e Dezembro. Foram dias muito amargos e duros para um jovem que, embora criado na linda aldeia de Carvalhal do Colmeal, já conhecia algumas vilas e muitas aldeias, pois o meu pai negociava em gado e vivíamos da agricultura. Trabalho que eu aprendi a fazer, mas que não pude praticar em Aveiro, onde os dias eram passados a rastejar junto às salinas.

A minha caserna era na primeira companhia, comandada pelo capitão Macedo, um homem rijo. Os mosaicos da caserna eram paralelos pretos, por já ter lá existido uma cavalariça. Só tínhamos dois lençóis e duas mantas para nos protegermos do frio, que era muito e nos deixava a tremer. O banho era outro tremor, por ser de água fria. Passei dois meses mesmo duros.

Em 2 de Janeiro de 1966, dia do meu aniversário, entrei pela primeira vez no Regimento de Infantaria 15, em Tomar. Tirei a especialidade de cozinheiro e quando passei a pronto fui transferido para outra caserna. Dois dias passados soube que estava mobilizado para uma comissão de reforço, com destino a Moçambique.

Saímos de Lisboa no dia 23 de Abril de 1966, no ‘Vera Cruz’. Parámos um dia em Luanda, para abastecer o navio, depois lá fomos visitar a cidade e o quartel de Grafanil. À noite continuámos a viagem e, ao chegar a Lourenço Marques, os três batalhões – o meu era o Batalhão de Caçadores 1890, de Infantaria – fizeram um desfile pela cidade. Prosseguimos e parámos em Porto Amélia e em Nacala, onde saíram algumas companhias independentes, nomeadamente a que era comandada por Ramalho Eanes.

O meu batalhão desembarcou em Mocimboa da Praia. Três dias depois partimos em coluna e dormimos em Mueda e depois Mocimboa do Rovuma, onde chegámos a 22 de Maio de 1966. Como o meu batalhão ia numa comissão de reforço, tivemos que construir abrigos, casernas e tudo o mais que fazia falta. A trincheira e os abrigos eram à prova de morteiros, feitos de troncos grossos e terra amassada, como barro. Estávamos lá há 12 dias quando fomos atacados. Quase todas as semanas havia ataques. Na primeira saída para Mueda sofremos um morto, o 1º cabo Manuel Correia, e quatro feridos.

Devido à minha especialidade, de cozinheiro, passava os dias quase sempre dentro do arame farpado, mas passei por grandes sustos, pois fomos atacados muitas vezes. Recordo que, em 5 de Outubro de 1966, eram 12h30, estávamos para começar a almoçar e tivemos de fugir para as trincheiras e adiar a refeição para fugir ao ataque. Deixámos de comer a esta hora.

No dia seguinte, o nosso comandante mandou-nos fazer trincheiras e abrigos e, a partir de então, dormíamos numa casa velha, toda esburacada por balas. Assim, quando nos atacavam, entravamos logo na trincheira, que era o sítio mais seguro e então a espingarda G3 parecia uma costureira. Se o sentinela desse três tiros, toda a malta tinha que deixar a cama.

A 9 de Março de 1967 tivemos mais dois mortos no pelotão de Sapadores. Morreram próximo de mim, na explosão de uma mina. Um deles, ainda o vi a dar o último suspiro. No dia 8 de Maio, era já noite escura quando o cabo que fazia a escala de serviço me avisou que tinha de entrar de reforço ao abrigo das palhotas. À meia-noite começou o ataque e estivemos cinco horas debaixo de fogo. De manhã havia homens com as mãos queimadas do morteiro 81 mm a disparar à volta do acampamento e só ficámos mais tranquilos com a chegada da aviação. As munições apanhavam-se aos baldes, com uma pá. Recordo também o soldado Américo Manuel Filipe, que foi mandado para uma companhia de transportes de castigo, por ter apanhado um Frango nas palhotas. Foi ferido por uma mina, ainda é vivo, mas sofre muito. Sempre foi e será para mim um bom amigo.

TEM A VIDA CONTADA EM VERSOS

A vida de Cid Barata Lima desde que saiu da sua aldeia, Carvalhal do Colmeal, em Góis, está escrita em verso. São mais de 200 quadras a aguardar publicação, onde relata a vivência militar, desde o dia da inspecção até ao regresso do Ultramar. "Começou por ser uma forma de ocupar o tempo, depois tornou-se um hábito", explica, adiantando que o seu recente divórcio também está escrito em verso. Depois da tropa, trabalhou como estivador no porto de Lisboa, até se reformar. Explorou, durante 22 anos, uma loja de velharias, em Alfama. Tem dois filhos, de 30 e 38 anos.

PERFIL

Nome: Cid Barata Lima

Comissão: Moçambique (1966/1968)

Força: Batalhão de Caçadores 1890

Actualidade: Hoje, 65 anos, em Lisboa

Cid Barata Lima, Moçambique (1966-1968)​
 

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“Não quis reviver dor do adeus à família"

A Minha Guerra: Último a ir para Angola

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No Piri, ao fim da tarde, junto à Casa do Administrador

Partida. Os meus cinco camaradas gritaram de alegria por já não caberem no navio, mas eu insisti para ir. Evitei ter de me despedir duas vezes.

Estávamos a 14 de Dezembro de 1971. O gigante dos mares ‘Vera Cruz’ foi engolindo todo o batalhão até não poder mais. Sobrámos seis criaturas desprotegidas e tristes, logo após se ter verificado a sobrelotação do barco. "Vocês já não cabem!" – gritou-nos o capitão. "Como só volta a haver transporte no dia 8 de Janeiro, ides todos passar o NAtal e o Ano Novo a casa". Gritaram de alegria os meus cinco camaradas. Eu enfrentei o capitão e disse-lhe: "Encaixe-me num buraco qualquer. Não quero voltar a reviver de novo a dilacerante dor do adeus à família". E, como estava tudo cheio, escapei à degradante 3ª classe e fui encafuado num camarote de 2ª.

Durante a viagem houve quem chorasse desesperadamente. Eu preferi arquitectar sonhos, ao ritmo da frenética dança dos peixes voadores. Quando chegámos a Luanda, fui enviado para a povoação de Piri, no Norte, algures entre o Caxito e Quibaxe. Na manhã da partida para o mato acenámos um último adeus à belíssima capital do território e, envoltos num espesso e tórrido ar de estufa, rumámos, integrados na coluna militar, ao Norte, a Dange, a Dembos, paredes-meias com a famigerada Pedra Verde. Estrada fora, a fita negra e estreita de alcatrão, praticamente oculta pelas marés alterosas do capim que das bermas fustigava as viaturas, estendia-se à nossa frente em requebros sinuosos e difíceis de trilhar.

Finalmente surgiu, à esquerda, na companhia de um vigoroso bananal, o "comércio" do sr. Dinis, um transmontano robusto, mas anafado, radicado em África há já alguns anos, com mulher e filhos, cujo bacalhau assado na brasa fazia as delícias de quem por ali tinha de passar e parar, em mais um compasso de espera de uma das duas colunas militares diárias, entre Carmona e São Paulo de Luanda e vice-versa. No planalto do Piri tudo é silêncio, enganador! Só o esvoaçar despreocupado de algumas centenas de pássaros negros, semelhantes a corvos, entretidos com a filharada no primeiro andar das palmeiras que ornam as margens do rio, quebra, de quando em vez, a intrigante monotonia do ambiente. Não se vêem pessoas.

Para Sul, paredes-meias com o quartel da tropa, abriga-se a população autóctone sob a estratégica protecção do Exército. É a chamada sanzala da paz, onde não faltam as bem cultivadas lavras, a garantir ao povo os típicos alimentos de primeira necessidade. É neste ambiente sedutor, de magia indizível, mas de estranha e indisfarçável conflitualidade latente, que o Sol, de forma inapelável, vem gritar a vida todas as manhãs, por detrás do arvoredo cerrado, não tardando em dardejar quente e prateado, depressa subindo na vertical, para ser tórrido, escaldante, devorador.

Eu pesava 52 quilos. Quando saía para o mato com o rádio às costas, um Racal TR 28 (30 quilos), a G3 e a Walter (4 quilos), o saco da tenda (5 quilos) e o saco com as rações de combate para quatro dias (12 quilos), quase que duplicava o peso. E então se chovesse ou se tivéssemos de atravessar um rio a vau, muito pior. Nas encostas e nas montanhas era empurrado pelos camaradas mais solidários. O alferes fazia vista grossa. Fomos atacados várias vezes, do lado de fora do arame farpado, sempre de noite.

No dia seguinte podiam ver-se os cadáveres cobertos de moscas, jazendo por entre o palmeiral do lado Sul, em resultado das bazucadas com que lhes respondíamos. Não escapámos ilesos: durante o meu mês de férias, dois camaradas foram ceifados na flor da vida. Podia ter sido pior. Além de Piri, estive no Bom Jesus, em Quibaxe, no Dange (Fortim), na Matobe e na Maria Manuela. Quando terminei a comissão de serviço em Janeiro de 1974, com 23 anos de idade, iniciei um tratamento forçado contra a malária, tendo conseguido inverter o lastimável estado em que me encontrava (45 quilos), depois de sucessivos surtos a que aquela doença me sujeitou.

Terminava assim a minha vida militar, iniciada quando fui incorporado, a 11 de Janeiro de 1971 no Regimento de Infantaria (RI) 7, em Leiria. Fiz o curso de Radiotelegrafia no Regimento de Transmissões do Porto, até 15 de Agosto de 1971; passei pelo RI4 de Faro, até 16 de Outubro, e fui mobilizado para Angola, tendo aguardado ordem de embarque no RI16 de Évora, até 30 de Novembro. Gozei 10 dias de licença com a família e, depois de alguns dias em Lisboa para vacinações e requisição de material (armamento e ‘enxoval’), eis-me no cais da Rocha do Conde de Óbidos, alinhado como se da parada se tratasse, face ao imponente ‘Vera Cruz’ para embarcar para Angola.

UMA VIDA DEDICADA AO ENSINO

José Manuel Bragança Esteves dos Santos, 58 anos, entregou-se aos estudos a partir da Primavera de 1975. Ao abrigo do regime militar, entre 1975e 1980 conseguiu concluir o 5.º ano dos liceus, o 7.º ano, os três anos do Magistério Primário, o ano Propedêutico e, em 1980, três anos de um Curso de Letras (Inglês-Francês) na Universidade do Porto. Após uma pausa de 10 anos, por doença, regressou à Universidade do Minho para concluir o curso de Administração Educacional, disciplina que hoje lecciona, como professor especializado. Tem três filhos, de 17, 18 e 26 anos.

PERFIL

Nome: José Santos

Comissão: Angola 1971/1974

Força: Batalhão Caçadores 3858

Actualidade: Hoje, aos 59 anos, na Maia

José Santos, Angola (1971-1974)
 

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“Fui salvo por latas cheias de munições”

A Minha Guerra: Sorte em Angola

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A serem deixados numa zona de combate por um helicóptero Alouette

Combates. Os confrontos eram frequentes. Num deles escapei a um tiro devido à mochila carregada. Mas também houve coisas boas.

Nós éramos ‘Os Cagões’, assim conhecidos pelo aprumo. Cortávamos a barba todos os dias, com excepção de quando andávamos no mato. Mas quando regressávamos ao aquartelamento o capitão mandava-nos logo ‘afeitar’. Chegámos a Angola no navio ‘Vera Cruz’. Estivemos em Grafanil, Luanda, e partimos de seguida para o Alto de Quito.

No acampamento estava quase só o meu destacamento, a companhia que geria a zona de Quibala, e o comando encontrava-se em Benguela. A minha comissão era de 14 meses mas foi prolongada, o que deu tempo para eu ser promovido de furriel a sargento miliciano.

O objectivo da nossa companhia era evitar a introdução dos terroristas no território, através de operações de combate. E houve algumas intensas. Fomos atacados muitas vezes, logo que saíamos do acampamento, por inimigos pendurados de tal forma nas árvores que ninguém os via. A companhia registou dois mortos, vítimas de uma mina, e houve muitos feridos, alguns dos quais ficaram deficientes. Os terroristas já estavam bem equipados, com espingardas e metralhadoras, algumas que nós não possuíamos nem conhecíamos. Os seus ataques obrigaram-nos muitas vezes a recuar para a base: tínhamos tantos feridos que era impossível continuar a avançar no terreno.

Numa altura tive muita sorte. Tínhamos arrancado com uma coluna para o mato mas a minha viatura (uma Unimog) não pegou logo. O motorista, o Matias, da Amadora, com os nervos, não conseguia pô-la a trabalhar. Por fim, seguimos com os restantes camaradas e fomos emboscados mais à frente. Houve bastantes feridos. Mais tarde ripostámos, com helicópteros e aviões, e também causámos baixas no inimigo. Neste combate fui atingido por um tiro que furou a minha mochila ao nível dos joelhos. Lá dentro levava balas enfiadas em latas. Foi a minha sorte, se me tivessem acertado ficava sem pernas. Estávamos com oito ou nove meses de comissão.

Noutra operação, passámos um mês ser comer uma refeição quente. Alimentámo-nos apenas com rações de combate. Andávamos tão fracos que se nos baixássemos quase caíamos no chão, com falta de força. Nestas saídas mais prolongadas, íamos à procura de acampamentos de terroristas mas quase sempre, quando os descobríamos, já lá não estava ninguém. Só numa altura fizemos um prisioneiro, levado de helicóptero para Luanda para nos dar informações.

Entretanto, a nossa comissão tinha terminado, mas ainda tivemos de ficar algum tempo. Recebi uma mensagem urgente para nos prepararmos para uma saída para o mato, na zona do Luso. Quase me acontecia uma tragédia. O meu motorista pisou uma mina, que saltou mas não explodiu. Atrás de nós seguia a polícia, que a sinalizou, e eu voltei atrás para a apanhar. Tive pena de um rapaz que estava na polícia naquela zona, que fora meu cabo em Castelo Branco, porque dias mais tarde soube que os terroristas o tinham matado e a outro camarada.

Nesta altura não estivemos envolvidos em grandes confrontos e até nos pediram para transportar uma negra grávida. Foi curioso. Levámo-la numa Unimog quando começou a ter dores e o Lemos fez-lhe o parto ali mesmo, com um saquito de primeiros-socorros. Montámos segurança na zona e a mulher e a criança ficaram bem. Portanto, na guerra nem tudo foram coisas más. Também houve algumas boas. Por exemplo, criámos equipas de futebol e consegui montar uma sala que serviu de escola, onde ensinei muita gente a ler e a fazer a antiga 4ª classe. Outros conseguiram ali a carta de condução de veículos ligeiros e pesados.

Eu também formei jovens de lá e terroristas, que se entregaram e passaram a colaborar connosco. Tínhamos uma carreira de tiro pequena para os treinar e eu tinha de confiar neles, porque depois íamos juntos para o mato. Como os tratava bem, alguns ficavam meus amigos.

Antes, quando estive no acampamento, adoptei um menino indígena que morava perto sem quaisquer condições. Fugia dos brancos, mas vendo-me vinha logo a correr para mim. Comia ao meu lado na messe e quando vim de férias levei-lhe muita roupa, de uma sobrinha da altura dele. Enquanto esteve comigo passou sempre bem. Tenho saudade daqueles tempos, não da guerra mas da camaradagem, da família em ponto grande que éramos. O meu regresso à Metrópole foi de novo no ‘Vera Cruz’ e não fiquei a dever nada à minha consciência por ter feito mal a alguém.

DIAS PASSADOS NA TIPOGRAFIA

José Guedes era tipógrafo antes de ir para o Exército, seguindo as pisadas dos irmãos mais velhos. Depois do regresso da comissão, voltou a juntar-se aos irmãos na Tipografia Beira Serra. Só recentemente se reformou, não deixando, ainda assim, de passar os dias na tipografia.

José Guedes casou, meio ano depois de regressar de Angola, com Fátima Guedes, natural do concelho do Sabugal, com quem teve duas filhas, hoje com 36 e 37 anos, ambas professoras do 2.º ciclo. Abastado em netos, já conta cinco, o mais novo com dois anos e o mais velho com 11.

PERFIL

Nome: José Guedes Ribeiro

Comissão: Angola (1967/1970)

Força: Batalhão de Cavalaria 1928

Actualidade: Hoje, 65 anos, na Guarda.

José Guedes Ribeiro, Angola (1967-1970)​
 

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"Senti um horrível medo de morrer"

A Minha Guerra: Emboscada em Angola

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Durante uma paragem numa picada a meio de uma das muitas missões

Missão. a primeira vez foi muito marcante, pois não tinha qualquer experiência de combate, à semelhança de muitos dos meus camaradas.

Eu nasci em Nova Lisboa (hoje Huambo) e foi aqui que ingressei no serviço militar, a 11 de Março de 1965, tinha 21 anos. A recruta, que terminou a 10 de Julho de 1965, foram quatro longos meses, de grande esforço físico e mental, durante a qual tirei a especialidade de condutor. De seguida, fui destacado para Silva Porto, de onde, após oito dias à espera, segui para Luanda. Fui integrado no Esquadrão de Cavalaria ‘Os Dragões’ e tirei a especialidade de condutor de carros de combate AM Panhard – viaturas blindadas. Quando integrei o esquadrão fiquei com muita curiosidade em saber como era a vida na Metrópole, que não conhecia, porque os meus camaradas recém-chegados me diziam bem.

A minha principal função era proteger os veículos civis e militares que transportavam os mantimentos para as nossas tropas estacionadas em zonas de combate. Nesta altura, já tinha o posto de 1º cabo condutor. A primeira missão que fiz foi entre Zala e Nambuangongo. Quando se faz uma coisa inédita a nível pessoal é sempre especial. Foi marcante, pois não tinha qualquer experiência de combate, à semelhança de muitos dos meus camaradas que seguiam na coluna.

Foi nessa missão que senti o verdadeiro medo: um horrível medo de morrer. Cada missão por terras desconhecidas foi um verdadeiro tormento. Sofremos uma emboscada, durante uma deslocação em que tínhamos como objectivo proteger os mantimentos. A coluna onde seguíamos foi atacada e fizemos todo o trajecto debaixo de intenso fogo do inimigo. Era tiros a rebentar por todo o lado. Pensei que não ia sobreviver, mas estávamos preparados para o pior. O combate provocou feridos em ambos os lados. Foi uma experiência que me marcou e ficou bem gravada na minha memória: ainda hoje a recordo com nervosismo.

Outra situação que me marcou bastante foi a morte de um camarada, durante uma das nossas deslocações para levar comida e medicamentos aos nossos militares. Um dos jipes passou por cima de uma mina que rebentou com grande violência. Na explosão faleceu o camarada que ia a conduzir um jipe que se encontrava na frente da coluna. Foi uma morte horrível que nos deixou a todos apreensivos e com raiva. Todo o esquadrão ficou marcado com esta morte. Éramos um grupo de homens unidos pela coragem e pela vontade de sobreviver.

Como não andava na frente de combate, não assisti a muitas mortes, mas os relatos que ouvia eram assustadores. Por mais que se tente negar, cada militar tinha receio de ser a próxima vítima e era cuidadoso a abordar as missões que lhes eram confiadas. Lembro-me que uma vez um superior pediu voluntários para fazer um patrulhamento a pé e ninguém se ofereceu. Perante o silêncio, fomos todos, mas contrariados.

O tempo passado no mato, onde travámos combates com o inimigo, comíamos e dormíamos, era fecundo em acidentes, mas, felizmente, também em peripécias que nos ajudavam a passar os dias longe da família. Ríamos em vez de chorar. A verdade é que, como outras centenas de milhares de portugueses, também fiz parte da história do nosso País – de uma forma muito pequenina, mas importante na altura, quando era preciso defender a honra de ser português.

Nessa fase da minha vida conheci muitos camaradas, mas o tempo foi passando e os nomes foram-se apagando da minha memória, infelizmente. Nunca mais voltei a falar com alguém que tivesse pertencido ao meu pelotão.

As poucas fotografias e as grandes peripécias dos dias de guerra são a lembrança que guardo daquele tempo que nunca mais se apagou da minha memória. A guerra não é boa, mas dela também se consegue tirar o melhor dos homens. Mesmo perante a tensão, o ódio, o perigo, o medo e outros sentimentos vividos nos dias lá passados, também existiu muita camaradagem, amizade e alguns bons momentos que nunca esqueci, nem esquecerei. Houve dias bons e outros maus, mas em todos aprendi alguma coisa que me ajudou ao longo de toda a vida e contribuiu para a formação da pessoa que sou hoje.

Passei a disponibilidade a 7 de Agosto de 1968 tendo regressando a Gabela, cidade onde viviam os meus pais. Continuei em Angola até ao dia 26 de Agosto de 1975, altura em que fui forçado a vir para Portugal, devido às mudanças no Governo e no sentimento dos indígenas: nós, os portugueses, deixámos de ser Bem-vindos em Angola. Eu e a minha família partimos, e deixámos para sempre a minha terra-natal, onde nunca mais voltei.

VIDA PASSADA NAS OFICINAS

Horácio Moreno nasceu em Angola, de onde saiu em 1975. Até ingressar no serviço militar foi bate-chapas, mas "as vicissitudes da vida" levaram-no a desempenhar outras profissões. Quando veio para a Metrópole continuou a trabalhar como bate-chapas, mas depois foi serralheiro-mecânico na refinaria de Sines.

Após cumprir o serviço militar casou e teve quatro filhos – dois rapazes e duas raparigas. Os três mais velhos são casados e o mais novo ainda vive com o casal. Horácio Moreno reside em Vila Nova de Santo André e está reformado por invalidez há três anos.

PERFIL

Nome: Horácio Nunes Moreno

Comissão: Angola (1965/1968)

Força: Grupo de Cavalaria 401

Actualidade: Hoje, aos 65 anos, em Santiago do Cacém

Horácio Nunes Moreno, Angola (1965-1968)​
 

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"Zeca Afonso acabou com programa de rádio"

A Minha Guerra: Combatente radialista

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Numa viatura usada nas acções de fiscalização

Chegada. Começámos logo mal porque o pequeno-almoço atrasou. Fomos castigados. Estive numa emissora regional e fiz o baptismo de voo.

O primeiro dia no Campo Militar de Grafanil, para onde foi o Batalhão de Caçadores 2911, começou logo mal. O pequeno-almoço atrasou e, quando o comandante chegou, a formatura não estava pronta para a apresentação. Foi um pé-de-vento enorme. Ficámos duas horas formados ao sol e vários militares desmaiaram. Foi o nosso baptismo. E ainda ficámos proibidos de sair. O nosso comandante, Paços Esmariz, era bom, mas passava-se de vez em quando.

Em 17 de Maio de 1970 arrancámos para a nossa zona de acção: Henrique Carvalho, uma capital do distrito de Lunda. Demorámos dois dias a fazer 1200 quilómetros. Quando chegámos só havia uma estrada alcatroada, mas tinha uma pista de aviação descomunal, com quatro quilómetros. Quando viemos embora, em 1972, já as ruas estavam todas alcatroadas. Eu desempenhava a função de oficial de serviço de material e tinha como missão verificar se estava tudo a correr bem com a manutenção das viaturas.

Foi numa dessas saídas que fiz o meu baptismo de voo, num avião Cessna. Foi muito engraçado, mas estava cheio de medo. Ia sozinho com o piloto, que, tal como eu, não falava muito. Então, para desanuviar o ambiente, eu disse: "Estamos a seguir um rumo certinho?" Ele perguntou-me porque estava a dizer aquilo, ao que eu respondi: "Porque a bússola não se mexe." Então, ele retorquiu: "A bússola está avariada, mas não se preocupe que eu conheço o caminho."

Apanhámos uma enorme trovoada, mas ele voltou a descansar-me dizendo que havia uma gaiola de Faraday. Entrámos lá dentro, apanhámos pancada de todos os lados, mas saímos bem. Antes de aterrar, o avião deu duas voltas e começou a baixar. Mas eu não via a pista e conclui que estivesse avariado. Só depois percebi que a pista era um caminho. Apanhei tudo o que era mau, mas foi uma experiência única.

Uma das inspecções que fiz foi em Camaxil, uma zona de muito paludismo. Quando chovia transformava-se numa ilha. Por precaução, o meu comandante até colocou aí um médico em permanência. A pista ficava a sete quilómetros, percurso que demorava três horas a fazer quando chovia. Levei um cabo – Mateus Baptista – que era um bom profissional para me ajudar na inspecção. Mas durante o percurso apanhou a doença. Ao chegar ao quartel já estava doente e ficou quatro dias de cama. Não me ajudou em nada.

Durante a minha permanência em Lunda também fiz rádio numa emissora regional da Rádio Oficial de Angola. Eu, o alferes Amaral e o furriel Valente fazíamos um programa duas vezes por semana. Chamava-se ‘Mosaico’. O nome foi escolhido pelo comandante. Passávamos música e fazíamos artigos sobre cinema e música. Os discos eram emprestados por militares ou por uma loja que vendia um pouco de tudo.

Entre outras, passávamos música de Zeca Afonso. Nunca ninguém nos disse que era proibido. Mas, passado um tempo, apareceu lá um fulano que exigiu ver os artigos que tínhamos para ler no programa. Começou a fazer emendas, mas dava mais erros gramaticais do que nós. Quando começou o programa só pusemos música. Não lemos os artigos e no final anunciámos que tinha sido o último programa. Ele não disse nada, mas todos sabíamos que tinha ido até ali por causa do Zeca Afonso.

Outra situação que me marcou aconteceu praticamente no final da comissão, quando ocorreu um acidente com uma viatura Berlier entre Nova Chaves e Muriege. O condutor seguia com mais três pessoas e, quando saiu do quartel, anunciou que ia bater um recorde, mas não conseguiu. Numa picada embateu numa árvore e teve de parar. Para os socorrer, saímos às 05h00 e fizemos 150 quilómetros tudo por picada. Acabámos por ter de passar lá a noite. Para fazer a segurança tínhamos os Cipaios. De manhã perguntámos se tinha corrido tudo bem. Eles responderam afirmativamente. Apenas que tinha andado por ali um leão. Felizmente estávamos todos a dormir e não nos apercebemos do animal, mas de facto lá estavam as pegadas.

Numa outra inspecção, em Cacolo, foi-me oferecida a oportunidade de me dedicar ao negócio dos diamantes, mas recusei. Estava lá uma companhia de indígenas e colocaram-me num quarto na pseudomesse. No dia seguinte, quando um deles me foi acordar, levava um frasco cheio de diamantes e perguntou-me se queria comprar. O nosso batalhão, apesar de estar em zonas de combate difíceis, só teve um morto.

DEDICOU-SE À VIDA MILITAR

Carlos Manuel Jales Ferreira Pimentel estava no 3.º ano do curso de Engenharia Electrotécnica, na Universidade de Coimbra, quando foi para Angola. De regresso a Coimbra ainda fez mais duas cadeiras, mas pediu o reingresso no serviço militar. Esteve um ano na Escola Prática de Serviços de Transporte na Figueira da Foz e depois foi para o Regimento de Serviço de Saúde. A partir daí dividiu a sua carreira entre Coimbra e Figueira da Foz, tendo feito dois deslocamentos em Penafiel (1986-88) e no quartel general em Lisboa (1996-98). Em 2004 passou à reserva.

PERFIL

Nome: Carlos Pimentel

Comissão: Angola (1970/1972)

Força: Batalhão de Caçadores 2911

Actualidade: Hoje, aos 64 anos, na Figueira da Foz

Carlos Pimentel, Angola (1970-1972)​
 

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“Ataque fez oito baixas no pelotão”

A Minha Guerra: Emboscada em Angola

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Pelas densas matas de Angola, por picadas quase intransponíveis

O pior. No combate dois dos camaradas nem conseguiram sair da viatura. Os restantes responderam ao inimigo e causaram-lhes várias baixas.

No período em que estivemos em Úcua, na zona de Dembos, fez-se uma grande operação, denominada ‘Quissonde’, comandada pelo coronel Alves Pereira, conhecido pelo ‘Totobola’. Demorou bastantes meses. O objectivo era abrir uma picada até ao rio Dange, que separava Úcua de Nambuagongo e Quicabo, uma zona muito difícil. A picada, feita pela nossa Engenharia, ia passar por um quartel dos turras, que constantemente flagelavam os nossos camaradas. Uma companhia sofreu um ferido grave, que ficou numa cadeira de rodas. Nos Fuzileiros também se registaram baixas.

O primeiro ataque ao nosso aquartelamento aconteceu três semanas após termos chegado a Úcua. O nosso grupo de combate foi destacado para uma patrulha de três dias, com destino até junto do rio Zenza, na zona oposta ao rio Dange. Ao fim de dois dias, fizemos o regresso e ficámos a poucos quilómetros de Úcua para dormir, no meio de uma plantação de sisal, cujo dono era o Sr. Acácio. Pelas 03h00 ouviu-se um tiro de pistola e, logo de seguida, desencadeou-se um forte tiroteio. Nós, da zona plana onde nos encontrávamos, assistimos ao tiroteio: víamos as chamas a sair dos canos das armas e até por cima de nós passavam pequenas rajadas de pistola metralhadora. Eles tinham-nos visto chegar e o ataque durou até às 05h30.

De manhã cedo, já tudo estava sereno e chegámos ao aquartelamento, que se encontrava em grande alvoroço. Aqui deram-nos a triste notícia de que tinha havido uma baixa: a primeira em combate e só tinham passado três semanas. Um dos dias mais tristes para todos nós foi quando recebi um telefonema do alferes comandante do nosso grupo de combate, a dizer: "Oliveira, prepare rapidamente o grupo de combate - nós que tínhamos regressado de uma MUL (conjunto de viaturas civis de transporte de mantimentos) nem há uma hora e tínhamos acabado de tomar banho -, porque a coluna diária da Companhia de Artilharia (Cart) 1469, sediada em Piri, está a ser atacada". Eram 17h00 e o dia escurecia uma hora depois.

O nosso comandante, tenente-coronel José Pires acompanhou-nos numa viatura Unimog - a que eu comandava e que transportava a metralhadora pesada Breda. Era um grande comandante, um grande homem, apesar de só ter 1,62 metros de altura. Quando passámos na zona onde se deu a emboscada, só vimos uma Unimog 204 a arder. Era a viatura que transportava o rádio e tinha sido atingida com uma bazucada. O socorro só foi pedido devido uma viatura Scania que conseguiu passar o forte tiroteio e, já com a parte traseira em cima das jantes, alertar para o que estava a acontecer em Piri.

Quando chegámos, pelas 19h00, e falámos com os camaradas, no comando, encontrei-me com o furriel encarnação e perguntei-lhe quantas baixas havia e ele respondeu-me: "Oito baixas confirmadas e sete feridos, alguns com gravidade, a precisarem de ir para Luanda". Entre as vítimas que foram para o hospital nenhuma morreu. Perguntei-lhe também quem era o alferes que comandava a coluna, ele disse-me o nome e respondeu: "Viste a Unimog a arder?". Disse que sim. "Ele e mais o condutor estão lá dentro". Só no dia seguinte é que foram retirados.

Ainda em relação a esta emboscada, recordo duas situações que demonstram o grande espírito de entreajuda e valentia dos nossos militares. Quando o grupo de combate saiu em socorro dos camaradas que estavam a ser atacados, antes do local da emboscada, numa curva em cotovelo, encontrava-se uma força inimiga que, para evitar que a nossa chegada fosse rápida, se empenhou num forte tiroteio. Só a pronta acção de coragem demonstrada pela coluna o evitou. Além de outros, destaco a do furriel Pinto de Lima, que, debaixo de fogo, levantou-se e com a arma ao quadril foi disparando contra o inimigo. Assim, arrastou outros que conseguiram desbaratar a resistência.

No segundo caso, já no local da emboscada, um soldado com dois tiros numa perna conseguiu arrastar-se para debaixo de uma viatura Mercedes (foram emboscados dois carros com um total de 17 soldados). Quando já esperava o pior, ouviram-se vozes do lado inimigo, que pensava não haver sobreviventes. "Vai lá abaixo buscar as armas", disse uma, ao que outra respondeu: "Vai lá tu". Passado um bocado, desceram às estrada dois inimigos, um armado com uma espingarda Simonov e o outro desarmado. Na altura certa, o nosso camarada deu um tiro no peito do primeiro e atingiu o outro, quando se virou, matando-o também.

CUIDAR DOS EX-COMBATENTES

Vítor Manuel Valente de Oliveira nasceu a 9 de Setembro de 1943 e é natural de Póvoa de Santa Iria. Depois da comissão de 26 meses em Angola, regressou à Metrópole - como furriel miliciano sapador de Infantaria - e casou em 1970. É técnico de desenho industrial, reformado desde 2001, tendo trabalhado na Mague.

Tem dois filhos, de 36 e 38 anos e três netos, dois gémeos de oito anos e um de cinco. Com o seu testemunho quer chamar "a atenção dos responsáveis para cuidarem" dos ex-combatentes que "hoje estão gravemente doentes física e psicologicamente".

PERFIL

Nome: Vítor Oliveira

Comissão: Angola (1965/1968)

Força: Batalhão de Artilharia 1869

Actualidade: Hoje, aos 66 anos, em Póvoa de Santa Iria

Vítor Oliveira, Angola (1965-1968)​
 

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"Tivemos de almoçar com quem nos atacou"

A Minha Guerra: Independência de Angola

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Num jipe do Regimento Militar de Angola (RMA), a descansar à sobra de árvores, próximo de uma aldeia que se vê ao fundo

Entrega. Estive no quadrado da morte, mas acabei por viver dias piores em Luanda. Custou-me ter de entregar quartéis e material ao inimigo.


A minha Companhia, formada por 135 homens, rumou a Angola num avião militar. O voo até Luanda demorou 14 horas. Fomos para Grafanil e seguimos depois de comboio até Teixeira de Sousa. Foram dois dias e duas noites de aventura, percorrendo centenas de quilómetros e alimentados a rações de combate, com medo que a composição fosse atacada. Mas não houve incidentes.

De Teixeira de Sousa rumámos em coluna militar até Cazombo, no Leste de Angola, onde estava estacionado o batalhão de que íamos depender. Depois fomos para Caianda, substituir uma companhia que regressou à Metrópole. Caianda faz fronteira com a Zâmbia e era uma zona de infiltração da FNLA. Era o chamado quadrado da morte. Estávamos a 650 quilómetros de Moçambique, 300 de Cazombo e a três mil de Luanda.

Sempre nos disseram que íamos ser dizimados. O território é uma grande planície, a perder de vista, com mato muito alto. Víamos quando os turras se aproximavam pelo mexer da vegetação. Às vezes queimávamos tudo para conseguir ter um melhor campo de visão. Noutras ocasiões fazíamos disparos de morteiros para eles terem noção da nossa presença.

As instalações eram parcas. Encontrámos uma cozinha onde só existia massa, arroz, salsichas enlatadas e chouriço em óleo. As refeições foram, durante alguns dias, massa com chouriço ao almoço e arroz com salsichas ao jantar. Os abastecimentos faziam-se de três em três meses. Os frescos chegavam semanalmente.

Ainda mal conhecíamos o território quando fizemos a primeira saída para o mato, tinham passado apenas 14 dias da nossa instalação. Eu era furriel miliciano, mas em Angola desempenhei as funções de 2º sargento. Sofremos uma emboscada, a 40 quilómetros do aquartelamento. Houve tiroteio e foi o salve-se quem puder. Felizmente não se registaram mortos, nem feridos. Mas como abandonámos as viaturas Unimog e Berlier, os terroristas ainda conseguiram levar algumas espingardas G3 e rádios Racal.

Depois desta emboscada optámos por uma abordagem diferente à população. Proporcionámos-lhe uma vida diferente da que estava habituada. Fornecíamos-lhe alimentos e água potável. Éramos verdadeiros assistentes sociais. Mimos não lhe faltou e foi remédio santo. Nunca mais tivemos problemas quando saíamos para o mato. A ligação à população foi boa e até nos convidava para os seus rituais.

Após um ano de estada, chegou a notícia da futura independência de Angola. Tivemos de promover um encontro com um grupo de guerrilheiros, chefiado pelo temível ‘Tigre’, comandante da guerrilha do Leste, com quem íamos negociar a cedência das nossas instalações. Tentámos não criar dificuldades, mas eles chegaram ao aquartelamento armados até aos dentes. Lá os conseguimos convencer a depositar o material e a juntarem-se connosco à mesa para um almoço.

Foi preciso muita cabeça fria e sentido de autocontrolo. Disseram-nos que tinha sido aquele grupo a emboscar-nos quando saímos a primeira vez para o mato. A revolta entre os meus militares foi enorme e não fosse a intervenção do comandante da companhia podia ter acontecido uma tragédia. O pessoal só pensava em carregar os canhões e os morteiros e dar cabo deles.

Passadas umas semanas, deixámos o aquartelamento. Carregámos o material de guerra mas deixámos ficar muitas coisas. Éramos para levar as camaratas, mas deixámo-las para a população, que nos as pediu. Regressámos ao aquartelamento do batalhão, em Cazombo. A partir daí começamos a desactivar os aquartelamentos; no Luso, em Henrique Carvalho, em Salazar, Nova Lisboa. Terras maravilhosas das quais tenho saudades.

Chegámos a Luanda com uma coluna de 200 a 300 viaturas, carregadas de material militar, depois distribuído em Grafanil ao MPLA. Até fiquei chateado, porque andei a fazer os inventários e depois levaram tudo sem qualquer ordem. Em Luanda estávamos no RI21, fazíamos patrulhamentos integrados com os guerrilheiros. Um dia houve um problema, em Vila Alice, onde havia confrontos entre forças rivais. Registaram-se tiroteios e a população portuguesa começou a fugir. A nossa tropa teve de intervir para retirar os portugueses e Vila Alice ficou quase destruída. Foram mais difíceis os meses finais em Luanda do que o tempo que passámos no mato.

A companhia regressou à Metrópole, no navio ‘Niassa’, mas eu fui mobilizado para os inventários do material de guerra. Voltei mais tarde, após muita confusão e perigo, num DC10, da Swiss Air, que transportava retornados.

UM EMPREGO PARA TODA A VIDA

João Simões foi mobilizado com 22 anos. Trabalhava na antiga Caixa de Previdência de Viseu. Já namorava quando partiu. A distância não o fez esquecer a mulher da sua vida, com quem viria a casar depois do regresso de Angola. Voltou para o antigo emprego, onde ainda trabalha, mas agora integrado no Agrupamento de Saúde de Viseu.

Do casamento com Maria Teresa Simões, professora já aposentada, teve três filhos: Pedro, de 32 anos, funcionário público no Centro de Saúde de Tondela, Rui, de 31, advogado, e Jorge, de 18 anos, ainda a estudar. Já tem um neto.

PERFIL

Nome: João Simões

Comissão: Angola (1974/1975)

Força: Companhia de Caçadores 5044

Actualidade: Hoje, 57 anos, em Viseu

João Simões, Angola (1974-1975)​
 

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“O inimigo causou-nos 44 feridos numa noite”

A Minha Guerra: Ataques na Guiné

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A arma foi usada na brincadeira só para tirar a foto. Júlio aponta a Alfredo Oliveira. O perigo é que ela estava carregada e nenhum dos dois sabia...

Atribulada. Logo no início da comissão caímos numa emboscada. Seguiram-se outros ataques, mas só fui atingido uma vez por um estilhaço.

Logo a começar, entre Julho e Agosto de 1967, tive uma experiência que me marcou para sempre. Quando íamos levar géneros alimentares a uma outra companhia caímos numa emboscada. Resultado: três feridos graves, que acabaram por morrer mais tarde em Teixeira Pinto. As vítimas não eram da minha companhia mas sim da 2ª. Ainda houve um camarada que desapareceu. Andou perdido durante o dia e a noite, até que adormeceu. Foi encontrado no dia seguinte, a 50 metros do quartel. Mal ele sabia que estava tão perto.

Eu não sofri qualquer ferimento mas fiquei muito assustado e acabei por ir para Bissau, para a consulta externa. E desde aí consegui ficar sempre no quartel, mas isso não me impediu de viver outras experiências traumatizantes. A minha companhia foi destacada para Cacheu a 26 de Janeiro de 1968, e aí é que começou o perigo. Um dia, quando estava a regressar de Bachile, foi atacada durante a noite e teve de recuar. Houve cinco mortos e 14 feridos. Desde essa data, estivemos pouco mais de 20 homens em Cacheu a tomar conta do quartel até ao dia 1 de Fevereiro, quando chegou um reforço feito pelo pelotão que veio de S. Domingos.

Naquela noite, a partir das 22h00, atacaram-nos de novo, causando 44 feridos. Um deles foi um enfermeiro a quem eu tinha pedido um medicamento para o estômago porque já estava com ‘o grau’. Quando ele ia a entrar na enfermaria foi de tal forma ferido que ficou todo crivado. Eu só apanhei com um estilhaço nas costas. Este ataque ocorreu numa noite em que estávamos todos descontraídos. Andávamos a beber uns copos.

Pouco antes de sermos flagelados, eu e o camarada Coelho até andámos na rua, onde bebemos umas cervejas, mas regressámos entretanto ao quartel porque notámos qualquer coisa estranha. Pouco depois começou o tiroteio. O Simões, um camarada da nossa companhia, estava sentado na minha cama a beber com outros militares quando tudo começou. O curioso é que, antes de se refugiar, a sua preocupação foi esconder o garrafão de jeropiga. Só depois se foi abrigar. Somente a partir desta altura começámos a abrir valas para nos escondermos.

Eu era radiotelegrafista. Em Bachile, a minha casa era um buraco. Desde aquela data, tudo voltou à normalidade, até ao dia 28 de Maio de 1968. Quando chegou a altura de render o pelotão, o capitão Silva decidiu que, não sendo eu um operacional, podia ficar mais tempo. Então estive mais seis meses, três dias e 20 minutos. Ou seja, entrei a 30 de Maio às 10h10 e só saí a 3 de Dezembro às 10h30. Daí seguimos para Bissau, onde passámos o resto da comissão. Apesar de ter sido mais calmo, ainda sofremos um ataque.

Éramos meia-dúzia de homens com poucas munições e um dia, durante um patrulhamento no rio, fomos flagelados. Íamos todos em tronco nu. Nunca nos passou pela cabeça que o inimigo estivesse ali. Não era uma emboscada, estavam apenas reunidos. Nós fugimos. O perigo esteve sempre bem presente durante a comissão e na minha companhia morreram seis homens. Além destas situações mais perigosas, a que felizmente escapei, também houve experiências que me marcaram pelo insólito.

Um dia, um furriel com os copos agarrou numa granada de mão e atirou-a para a parada. Logo apareceu o capitão, que lhe deu um grande murro. Recordo-me também dos petiscos que fazíamos. Chegámos a apanhar uma gazela e um abutre e a comê-los. Quer um, quer o outro, eram bons. O abutre era um pouco rijo mas saboroso. Nessa altura não o fazíamos por necessidade. Se bem que houve um tempo, em Agosto de 1968, em que passámos 14 dias a comer feijão-frade com arroz.

Ao almoço era feijão com arroz, ao jantar era arroz com feijão. Não havia mais nada. Lembro-me de um camarada, que gostava muito de voltar a encontrar, o Francisco Limpo Capa, que estava sempre pronto para estas coisas dos petiscos. Era de Lisboa e cantava bem o fado. Eu e ele vimos o alferes cortar-nos o crédito na cantina mas nós depressa resolvemos o problema. Continuámos a consumir usando o nome de outros militares.

Estes foram alguns dos episódios que vivi desde que fui mobilizado para a Guiné, a 1 de Maio de 1967. Embarquei no cargueiro ‘Alfredo da Silva’ a 11 de Junho e cheguei ao destino no dia 20. A viagem correu normalmente, apesar de nos termos assustado entre Cabo Verde e a Guiné. Mas nada aconteceu. Ficámos em Bissau até Julho e depois fomos para a zona operacional, em Teixeira Pinto.

VIDA PASSADA NA TIPOGRAFIA

Alfredo Gervásio Silva Oliveira é natural de Anadia, onde ainda hoje reside. Antes de ir para a Guiné já era tipógrafo numa gráfica do concelho. Durante a sua comissão exerceu as funções de radiotelegrafista. Deixou a Guiné em 16 de Maio de 1969, tendo feito a viagem no navio ‘Niassa’.

Ao regressar à sua terra, a 21 de Maio, retomou a actividade de tipógrafo na mesma gráfica onde trabalhava antes de embarcar e ainda hoje exerce funções. É casado e tem uma filha com 36 anos. Não falha um convívio com os antigos camaradas, sempre na companhia da mulher.

PERFIL

Nome: Alfredo Oliveira

Comissão: Guiné (1967/1969)

Força: Batalhão de Caçadores 1911

Actualidade: Hoje, aos 64 anos, em Anadia

Alfredo Oliveira, Guiné (1967-1969)
 

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“O heli onde eu seguia foi atingido com 26 tiros”

A Minha Guerra: Comissão na Força Aérea

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José António foi mecânico de helicópteros. Saiu ileso de todas as missões

Socorro. A nossa missão era deixar as tropas nas zonas de combate e retirar os feridos e os mortos. Estávamos desejosos do fim do conflito.

Fui mobilizado para Moçambique a 2 Março de 1972. Na Beira fiquei a aguardar para onde seria destacado e logo na primeira noite tive de queimar o colchão da camarata: estava cheio de piolhos e fiquei todo picado. Mandaram-me para a Base Aérea 5 (BA5), em Nacala, onde estavam os aviões bombardeiros T6, os Dornier e os Fiat, e depois para o Aeródromo Militar 52 (AM52), em Nampula, onde se encontravam os helicópteros.

Fazíamos as rendições individuais e o único camarada de curso que partiu comigo foi o 1º cabo Mota, que ficou na ferramentaria. Eu fui para a linha da frente, para o destacamento de Mueda, no AM51. Era o pior sítio. Havia um painel pintado com uma caveira enorme que dizia: 'Bem-vindos a Mueda. Nesta terra trabalha-se, luta-se e morre-se'.

A 13 de Março participei na primeira operação, que consistia no transporte de helicóptero de tropas do Exército para um ataque a uma base da Frelimo, no planalto dos Macondes, em Mueda. Eu era mecânico dos Alouette III, onde seguiam, para além do piloto, mais cinco militares. Nas operações ia sempre um grupo de seis helicópteros. Aproximávamo-nos do solo, mas não chegávamos a aterrar. Os militares saltavam, nós voltávamos ao aeródromo e mais tarde íamos buscá-los.

O meu helicóptero, pilotado pelo alferes Francês, foi atacado com uma série de tiros, que cortaram o veio de transmissão traseiro. Como estávamos a um metro do solo, fizemos uma aterragem forçada e saímos para junto das nossas tropas, que nos fizeram protecção e outro helicóptero foi buscar-nos. Seis balas ficaram alojadas no aparelho. Ninguém ficou ferido. Essa operação acabou por render bem em armamento apreendido, o que significa que estávamos perto de uma base da guerrilha. No mesmo dia regressámos ao local para reparar o veio de transmissão e levar o helicóptero. Foi uma boa lição porque quem tinha medo perdeu-o naquela altura. Deixei de ser maçarico.

Noutra operação semelhante o helicóptero onde eu seguia foi atingido por 26 balas, mas por milagre não aconteceu nada a ninguém. O furriel Neto era o piloto e dizia pelo rádio: 'Estamos a ser abonados!' Quando éramos alvejados usávamos aquela expressão e ao chegarmos à base tínhamos de pagar uma cerveja a quem lá estivesse. Levávamos tiros e ainda pagávamos. Era uma forma de retribuir a dádiva de estarmos vivos.

A minha primeira comissão foi interrompida em Novembro de 1972. Vim para a Metrópole frequentar o curso de sargentos milicianos, na Ota. Regressei como sargento a Moçambique, em Setembro de 1973, ao AM51. Em Fevereiro de 1974, o capitão Castelo, um dos comandantes do aeródromo, morreu numa operação. Tínhamos largado as tropas e já íamos a caminho da unidade quando fomos atingidos por uma rajada de balas.

Quem ia com ele era o segundo sargento Vaz de Carvalho, atirador de héli-canhão. Tinha levado dois tiros nas nádegas cerca de um mês antes, noutra intervenção semelhante na mesma zona. Foi enviado para o hospital militar de Nampula para ser tratado mas, ainda em convalescença, soube que havia aquela operação, meteu-se num avião e foi ter connosco. E no momento de avançar, retirou o homem que o substituía e foi ele próprio.

O helicóptero foi atingido a tiro e caiu numa ravina enorme. O capitão Castelo desmaiou e ficou com o pescoço entalado contra o colete à prova de bala e morreu asfixiado. O Vaz de Carvalho partiu a bacia. Fomos buscá-lo e quando chegámos estava a fumar um cigarro, convencido de que iria ser apanhado pela Frelimo porque nós não teríamos condições para os ir buscar, já que o local era de terrível acesso. Quando nos viu, perguntou: ‘O que é que estão aqui a fazer!?’

Noutra ocasião, quando fazia o transporte de mantimentos, viajei com um piloto que tinha pouca experiência. O habitual era não seguir a mesma rota nos dois sentidos, para que guerrilha não se posicionasse de forma a atacar-nos. Ele não seguiu os meus conselhos, abusou e foi pela mesma rota. Resultado: fomos abonados e ele levou um tiro num braço, mas conseguimos regressar.

De resto, vimos muita desgraça, fomos buscar muitos camaradas, uns já mortos, outros sem condições para continuarem a fazer a vida militar. A maior parte era do Exército. Quase todos os dias fazíamos evacuações de gente que tinha sido atingida, uns com maior gravidade do que outros. Todos nós estávamos fartos e desejosos de que a guerra acabasse.

SOCORRO E AUTARQUIAS

José António Sousa da Silva é natural de Rio Maior. Ingressou na Força Aérea aos 19 anos, como voluntário. Com o dinheiro que ganhou na tropa comprou um camião e trabalhou por conta própria como fornecedor de materiais de construção.

Há 15 anos tornou-se gerente da Casa de Repouso Cantinho dos Avós, em Vidais, Caldas da Rainha. Foi presidente da Junta de Freguesia de Vidais (1986-1998) e adjunto do presidente da Câmara das Caldas da Rainha (1999-2009). Desde Outubro do ano passado é administrador dos serviços municipalizados do concelho.

PERFIL

Nome: José António

Comissões: Moçambique (1972/1974)

Força: Aeródromos Militares 51 e 52

Actualidade: Hoje, aos 59 anos, nas Caldas da Rainha

José António, Moçambique (1972-1974)​
 

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“Jipes eram blindados com chapa de bidões”

A Minha Guerra: Missão no Sul da Guiné

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Momento de lazer no quartel de Bissau, onde integrava a equipa da secção de saúde antes de rebentar o conflito armado

Tragédia. Para prevenir os ataques do inimigo colocávamos minas no exterior do aquartelamento. Uma delas explodiu e matou um furriel.

O meu contacto com o serviço militar começou a 19 de Agosto de 1961, data em que dei entrada no Centro de Instrução e Condução Auto, na Figueira da Foz, para tirar a especialidade de condutor. Depois da recruta, passei pela artilharia pesada, onde fiz a escola de cabos e vi morrer o primeiro camarada de armas. Estávamos no alto da Serra da Boa Viagem, num exercício de fogo real, com lançamento de obuses, quando uma munição rebentou à saída do cano. O soldado que estava a municiar o canhão morreu logo. Os outros ficaram feridos.

No final da especialização, em Dezembro de 1961, enviaram-me para o Batalhão de Telegrafistas, em Lisboa. Fui mobilizado para Angola mas, a conselho de um capitão amigo, decidi gozar os 10 dias de férias a que tinha direito antes de ir para o Ultramar e quando me apresentei no quartel já os camaradas tinham partido. Ainda me distribuíram a farda para ir de avião para Luanda mas acabei desmobilizado no mesmo dia. Foi sol de pouca dura. Duas semanas depois, acabei mobilizado para o Batalhão de Caçadores Especiais 356, que já estava na Guiné e tinha falta de pessoal. A partida para Bissau aconteceu a 25 de Fevereiro de 1962, no barco comercial ‘Manuel Alfredo’. Comigo iam mais 12 militares, todos condutores. Chegámos no dia 6 de Março.

A organização portuguesa era tão boa que quando desembarcámos não estava ninguém à nossa espera. Foi preciso perguntar aos locais onde ficava o quartel mais próximo, no caso a Manutenção Militar. Dirigimo-nos à unidade a pé e de lá contactaram o quartel-general para nos virem buscar. Meteram-nos num barracão, nos arredores de Bissau, e até rebentar a guerra – Fevereiro de 1963 – exerci funções na secção de saúde do batalhão. Tinha como missão o apoio sanitário às populações. Neste serviço, que incluía a distribuição de medicamentos, corri a Guiné de uma ponta à outra.

Quando estalou o conflito, fomos transferidos para Catió, no Sul da Guiné, onde estávamos incumbidos de garantir protecção às populações. Antes de partirmos, blindámos os jipes com chapas de bidões para nos protegermos do fogo inimigo. Já no quartel, éramos atacados quase todas as semanas, com mais intensidade nas épocas festivas como o NAtal ou a Páscoa. Morreram 12 militares do meu batalhão mas em Catió só se registou uma baixa, e por acidente. Para nos prevenirmos dos ataques nocturnos, colocávamos minas no perímetro exterior do quartel. De manhã, eram todas recolhidas. Numa das operações de desmontagem dos engenhos, um cabo tocou sem querer no fio que ligava as minas e uma rebentou. Um furriel, natural de Aveiro, atirou-se para cima dela. Morreu mas evitou a morte de outros camaradas. Ficou todo queimado da cintura para cima.

Noutra ocasião, já em finais de 1963, fui destacado para integrar uma operação no mato. A situação estava de tal forma tensa que a última viatura de uma coluna de 13 veículos ainda não tinha saído do quartel e já o nosso primeiro carro estava a ser atacado. Um camarada sofreu ferimentos graves.

Recordo-me também de uma missão que podia ter acabado mal por causa do facilitismo de um furriel, que era conhecido pela alcunha de ‘Ronha’ por ser um pouco desmazelado. Nós dávamo-nos bem com a tribo dos fulas, cujos elementos nos apoiavam ao ponto de fazerem operações delineadas por nós mas sozinhos e com o nosso armamento. Em troca deste apoio, todas as noites saía do quartel uma secção de sete ou oito homens para fazer a guarda às palhotas do chefe da tribo, João Baca.

Numa destas missões, estávamos nós a contar anedotas quando me pareceu ouvir movimentações na floresta. Como não estava ninguém de sentinela, avisei o furriel. Ele respondeu-me que não havia problema, para estar descansado. Meia hora depois estávamos cercados e debaixo de fogo. Só tivemos tempo de saltar para dentro da viatura e fugir para o quartel. Por ser muito decidido, ofereci-me uma vez como voluntário para participar numa emboscada ao inimigo e vi-me obrigado a urinar na posição em que estava – deitado de barriga para baixo – para não denunciar a nossa presença.

O regresso a Lisboa iniciou-se a 25 de Janeiro de 1964, no navio ‘Cuanza’. Tal como grande parte dos meus companheiros, fui contando os dias que faltavam para sair do Ultramar fazendo riscos num calendário. Passei horas duras mas guardo boas recordações, sobretudo do espírito de camaradagem que nos uniu.

ANTIGO MOTORISTA DA UNIÃO DE LEIRIA

Joaquim Bernardino Gaspar nasceu a 15 de Dezembro de 1940, na freguesia de Arrabal, concelho de Leiria. Estudou até à 4.ª classe e experimentou as profissões de canalizador e empregado de comércio antes de ir para o Ultramar. Depois do serviço militar, ingressou na PSP e foi para Moçambique, em comissão de serviço. Em 1977, regressou a Portugal.

Reformou-se há 19 anos e foi motorista do autocarro da equipa de futebol sénior da União Desportiva de Leiria. Agora ocupa parte do seu tempo como dirigente do Núcleo de Leiria da Liga dos Combatentes.

PERFIL

Nome: Joaquim Gaspar

Comissão: Guiné (1962/1964)

Força: Batalhão de Caçadores Especiais 356

Actualidade: Hoje, aos 69 anos, em Leiria

Joaquim Gaspar, Guiné (1962-1964)​
 

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“Tive 98 acções de fogo, quase desarmado”

A Minha Guerra: Ataques em Angola

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Com os colegas, em 1965

A figura magra não o impediu de ser dado como apto para o serviço militar. Regressou com uma Cruz de Guerra e o título de herói nacional.

Sou apurado para todo o serviço militar com 43,5 quilos de peso, que é o que ainda hoje tenho. Naquele tempo apuravam tudo. Mandam-me para o Hospital da Estrela, fazem-me exames, dão-me uma injecção que me dava vómitos, ligam-me a eléctricos e o médico, que era um major, disse-me: "Sim, senhor, tens aqui qualquer coisa no parietal direito mas nós precisamos é de malucos lá em África". E assim sou mobilizado, em Agosto de 1963.

Vou para o curso de sargentos milicianos em Tavira, tinha uma nota que não me dava mobilização e venho dar instrução a soldados para Elvas. Estavam lá mais rapazes, milicianos tal como eu, e naquele tempo o Alentejo era de facto muito pobre e os milicianos, como tinham estudos, eram assediados pelas meninas de Elvas. Os da terra não levavam aquilo à paciência. Eu era o único que não tinha lá namorada. Estava para casar. Um dia, já em 1965, estou de ronda à cidade, faltavam--me seis meses para acabar o serviço militar, quando um indivíduo passa por mim e diz "olha mais um filha da p..." Eu, como autoridade que ronda a cidade, dei-lhe voz de prisão. O tipo reage e dá-me um soco na cara. Eu levanto a bota da tropa, que é um bocadinho pesada, e dei-lhe um pontapé nas ‘jóias de família’. Onde eu me fui meter. Era filho da amante do meu comandante. Divisas abaixo, fui mobilizado para Angola, com três meses de casado.

Chego a Angola numa coisa que se chamava um navio mas não o era, era um cesto entupido. À saída da barra enjoei. Fui a chá, deitado, até Luanda. Uma vez lá, mandam-me para a companhia 1111, que não era mais do que uma companhia criada especificamente em Luanda para nós, os que lá estávamos, irmos substituir os que morriam. Andei por Luanda cerca de um mês até ser mobilizado para o sítio mais quente de Angola – o eixo Zala- Nambuangongo. Fui para uma das companhias na zona de Zala, a 15 quilómetros, a que deram o pomposo nome de Vila Pimpa. Não era vila nenhuma, era apenas um acampamento no meio do mato.

A minha primeira saída aconteceu pouco tempo depois de ter chegado ao batalhão, embora este já lá estivesse há cerca de três, quatro meses. Como já tinham sofrido vários ataques, alertaram--me, logo à saída de Zala, que havia a possibilidade de "haver porrada". Mas não houve nada. "Se não houve aqui, há ali no morro do Albino", disseram. E não havia nada. "Se não houver aqui é na camioneta vermelha". Na altura, pensei: "estão a gozar comigo. Afinal, como o Salazar diz, são uma meia dúzia de maltrapilhas e não há guerra nenhuma em Angola". E eles dizem: "se não foi para trás, da mata Madureira nós não passamos", já a caminho de Nambuangongo. E eu, pensando que me estavam a gozar, levantei-me do jipão, com dois punhetos de balas na mão (fizeram de mim mecânico da MG 42 que eu nunca tinha visto) e digo: "oh, sois filhos da p..., hoje não há guerra". E mal acabo de dizer isto, um punheto voou-me com uma rajada de metralhadora. Não me tocou. Mas, até hoje, nunca mais o vi. Vou parar debaixo do jipão sem saber como, tal não era a adrenalina, com o camuflado encharcado em suor. A partir de então, tive 98 acções de fogo, quase desarmado. Podíamos levar os punhetos de munições mas não podia levar a G3 para a mata. Arriscávamos muito, com granadas e pouco mais.

Em Junho de 1966 sou ferido em combate. Os tipos atingem-se numa perna com uma mina. O que me salvou foi o facto de em Angola os terrenos serem muito barrentos. Com a chuva que tinha caído cinco minutos antes de eu ali passar, a mina que estava perfeitamente enterrada moveu-se. Quando explode, explode para o lado esquerdo e eu estou do direito. Apanho apenas com estilhaços numa perna e nos braços. Vejo-me ferido e não penso duas vezes. Vou para ali adentro, a disparar com a G3 que levava, e apanho um ‘turra’ (terrorista) à mão. Se tivesse pensado duas vezes, não me tinha metido na boca do lobo. O ‘turra’ já estava ferido, provavelmente por uma mina, e não ofereceu resistência. Trago-o e sou condecorado herói nacional. Nesse mesmo dia fui voluntário por imposição do meu capitão, fui ferido em combate, apanhei uma Cruz de Guerra e fui parar à enfermaria do aquartelamento. Tudo isto em apenas seis horas.

Ferido, fico em Nambuangongo, já não volto para o meu batalhão. Foram dois dias debaixo de fogo para andar quarenta quilómetros. Com flagelações. Já não tínhamos rações de combate, já não tínhamos nada. E o que eu tinha era fome.

SOFRE DE STRESS DE GUERRA

José Rafael de Almeida é natural da freguesia da Graça, em Lisboa. Depois da comissão viveu em Luanda, onde foi escriturário. Mais tarde foi convidado a fundar a Teal Record Company. Em 1975 parte para a Venezuela mas regressa a Portugal, onde vem a desempenhar o cargo de chefe de vendas da fábrica Stephens, da Marinha Grande. Foi chefe de compras para uma cadeia de supermercados mas em 1991 ficou desempregado. Hoje é reformado, recebe 370 euros por ter prestado serviço militar em Angola e sofre de 35% de incapacidade e stress de guerra.

PERFIL

Nome: José Rafael de Almeida

Comissões: Angola (1965/1967)

Força: Batalhão de Cavalaria 1851

Actualidade: Tem 67 anos e vive em Lisboa

José Rafael de Almeida, Angola (1965-1967)​
 

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"Os ataques do inimigo eram uma constante"

A Minha Guerra

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A secção a que eu pertencia já estava a meio da missão

Luís Ferreira foi para a guerra rapaz e por lá se fez homem. Escapou ileso no corpo mas não arrumou as memórias. São muitas. Tristes e felizes.

É a bordo do navio ‘Niassa', à saída de Lisboa, a 8 de Outubro de 1964, que começa a nossa primeira grande aventura. Fomos transportados nos porões sem quaisquer condições, em beliches sem roupa nas camas e a comida era-nos servida no convés em marmitas de campanha. Os banhos eram em casas de banho improvisadas, com a água bem fria. Passaram-se seis dias de viagem.

Éramos rapazes preparados para a desgraça a caminho da Guiné. À chegada a Bissau as péssimas condições mantiveram-se: As nossas cadeiras para a refeição eram o chão e algumas vezes até saltavam pequenos sapos para as marmitas. Daqui fomos para a ilha do Como, bastante conhecida pela célebre ‘Operação Tridente'. Com a nossa chegada rendemos uma companhia que tinha ficado na ilha após ter terminado a operação. Sem quaisquer condições tivemos de viver em abrigos e casernas feitas com troncos de palmeiras e cobertas com chapas. Na ilha não havia água doce. Existia um poço de água salobra com a qual tínhamos de tomar banho com a ajuda de um balde. Lavávamos a roupa numa celha feita de um barril de cem litros, que vinha de Catió nas lanchas. Tínhamos que aproveitar a maré.

A azáfama diária era grande no cais de desembarque. A cerca de 800 metros o transporte era feito com bastantes dificuldades pois a estrada ficava lamacenta, impossibilitando o acesso. Também cortávamos centenas de palmeiras para fazermos a estrada com troncos. Era muito complicado viver assim. Quando chovia era uma festa porque podíamos tomar banho com água doce, de chuveiro. Nesta ilha vivia o famoso comandante Nino Vieira. Mas nós éramos comandados pelo tenente Proença, um homem recto e humano que não fazia diferença entre soldados e superiores. Por exemplo, a comida: Era feita igualmente para todos. Assim que ele deixou o comando as diferenças foram notórias _- houve logo separação: Rancho para os soldados e cantina para os superiores. Certo dia a lancha avariou - lá se foi a água doce para a comida.

Tivemos de recorrer à água do poço para beber e veio a ordem do senhor Varão - uma cerveja para cada homem. O problema é que o sargento protestou e disse que não havia verba para tanta bebida. A juntar a este sofrimento, durante dez meses, o resto do tempo foi passado em Catió como companhia de intervenção e em luta directa com o inimigo. Passámos momentos muito difíceis, como daquela vez em que nos morreu um alferes em combate, com um tiro no peito. Nessa vez deitámo-nos todos e por isso os bombardeios não nos atingiram, foi o que nos safou. Ou da outra vez, em que fomos bombardeados pelo Navio da Marinha de Guerra que feriu dois camaradas e matou um.

Claro que também houve alguns momentos muito felizes, porque havia contacto com as populações. Passámos, inclusive, tempo com as lavadeiras, que lavavam as nossas fardas. Mas por muito bons que tenham sido esses momentos eles não apagaram da memória as baixas que sofremos. Os ataques eram constantes, principalmente à hora de almoço: Lá vinham umas morteiradas e umas rajadas mas felizmente foram-nos passando ao lado, fomo-nos safando do pior.

Uma das situações que mais me marcou passou-se na noite de NAtal de 1964. Estávamos nós em clima de grande festa com o furriel Brás, que tocava no seu violão acompanhado por alguns camaradas que mostravam dotes de bons cantores, quando somos interrompidos por um ruído ensurdecedor. Devia ser perto da meia-noite quando rebentou um daqueles ataques que nos estragou a noite. Fugimos logo para os nossos abrigos para nos defendermos. Felizmente não houve feridos mas a noite não voltou à animação que estava. Nos meus tempos de guerra estive 11 meses em Como e um ano no Catió. Passei por várias funções: estive dez meses na cantina - como já tinha experiência de hotelaria não tive problemas - e passei pelas guardas e operações. Claro que era um risco. Temi pela minha vida. Um dos dias mais difíceis foi quando fomos bombardeados e tivemos de passar a noite dentro de água, num arrozal.

Tive medo, claro que tive. Mas são momentos que ficam gravados, não se esquecem. Com 13 camaradas criámos a ‘Tabanca dos Amigos do Bem', juntávamo-nos a fazer os aerogramas para as namoradas, que eram as madrinhas de guerra - eu tinha três ou quatro -, a jogar às cartas, a conversar. Guardo as lembranças das peripécias que com eles passei. E sempre que nos encontramos recordamos esses tempos da guerra, a nossa guerra, que nos marcou para a vida.

DA GUERRA PARA O COMÉRCIO

Luís Ferreira é natural de Arganil mas vive em Lisboa. Trabalhou na indústria hoteleira, antes e depois da Guerra Colonial, mas no ano de 2000 abriu uma loja de lingerie na avenida Almirante Reis, no centro da capital. Casou depois da guerra com a actual esposa e é pai de dois rapazes a quem faz questão de contar as histórias da ‘sua' guerra. 'Um deles até já foi comigo aos encontros dos ex-camaradas da Guiné. Costumamos fazer um almoço por ano, fiz boas amizades na guerra e é bom estar com eles a recordar tempos antigos. Pena alguns já terem desaparecido'.

PERFIL

Nome: Luís Antunes Ferreira

Comissões: Guiné (1964/66)

Força: Companhia de Caçadores 728

Actualidade: Tem 66 anos e vive em Lisboa

Luís Antunes Ferreira, Guiné (1964-1966)​
 

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"A arma do inimigo encravou e fiquei vivo"

A Minha Guerra: Missão em Moçambique

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Silva segue com o seu grupo para combate ao lado do furriel Morais [em primeiro plano].

Na recruta, chumbou no exame de condução, mas conseguiu vingar nos comandos. Não estava era preparado para encarar com um guerrilheiro.

Regressei sem mazelas – mas tive muita sorte porque ainda cheguei a ver a luz branca ao fundo do túnel. Só não morri porque a arma do inimigo encravou. Já na fase final da minha comissão, fomos a um aldeamento em Vila Coutinho. Deixámos comida para um velhote e ao atravessar um rio ficámos debaixo de fogo. Os tiroteios, ao contrário do que muitos camaradas dizem, nunca duravam muito tempo: apenas uns escassos minutos.

Quando havia fogo deitávamo-nos no chão em defesa e imediatamente preparávamos o ataque. Bastava um gritar ‘Vamos a eles’ que nós avançávamos a correr em direcção ao inimigo. Mas dessa vez vi um guerrilheiro a um ou dois metros a apontar-me a arma. Não estava preparado para esse encontro. A minha arma encravou quando vou para disparar e a dele também. Deitei-me no chão e atirei uma granada para cima do inimigo. Ela rebentou, fui ao local mas não havia lá ninguém.

Assentei praça em 26 de Janeiro de 1970, no Centro de Instrução de Condução Auto (CICA) do Regimento de Infantaria 8, em Elvas. Fiz a recruta e chumbei no exame de condução. Ao fim de dois ou três meses, fui fazer nova recruta no Batalhão de Caçadores nº 8, na mesma cidade. O aspirante engraçou comigo e nesse período, cerca de dois meses, fazia apenas ginástica e saltos de viatura em andamento. Nunca cheguei a ir para as semanas de campo.

No final da recruta surgiu a oportunidade de me inscrever nos Comandos e lá fui para Lamego, no dia 29 de Junho de 1970, formar um batalhão, que embarcou para um curso em Angola a 25 de Julho desse mesmo ano. Não me esqueço desta data, porque o Salazar morreu dois dias depois e no navio ‘Vera Cruz’ foi posta a bandeira a meia-haste no dia 27. Quando cheguei a Angola, no dia 4 de Agosto de 1970, saímos do barco e fomos para o Grafanil, em Luanda. Em poucas horas, levámos uma série de injecções e fomos sujeitos a uma bateria de exames.

Poucos dias depois partíamos para Belo Horizonte e iniciámos o curso de Comandos, que durou cerca de três meses e meio. Foi aí que tivemos o primeiro contacto com um cenário de guerra. Abalei de Angola no dia 4 de Dezembro de 1970 e fui para Moçambique, integrando a mesma companhia de Comandos, onde me instalei em Montepuez. Era uma zona pacífica, nunca tivemos problemas.

A primeira operação foi em Cabo Delgado, precisamente em Antadora. Os guerreiros da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) atacaram a companhia. Um dos nossos camaradas ficou ferido e teve de ser evacuado, posteriormente, para Lisboa.

Como em todas as companhias de Comandos, havia cinco grupos, todos chefiados pelo capitão Baptista Morais, hoje coronel na reforma. Cada grupo era formado por cinco equipas de cinco homens. Cada equipa era depois comandada por um furriel.

Ao fim de dois meses em combate, tínhamos direito a um mês de descanso na Ilha de Moçambique. Fazíamos limpezas e zelávamos pela segurança da Fortaleza de São Sebastião. Mas também íamos à praia e comíamos bom camarão, todo ele dado aos militares.

Mas houve uma vez, em Junho de 1971, que fomos chamados ao fim de três dias de descanso. Havia duas companhias pára-quedistas que estavam encurraladas num vale em Nangololo, uma zona de muita guerra. A guerrilha da Frelimo estava a cercá-los e bombardeava a zona para não os deixar sair. A nossa companhia tinha por missão tirar de lá os nossos camaradas, e conseguimos. Circulámos os morros, fizemos um cerco aos guerrilheiros e obrigámos o inimigo a fugir.

A minha companhia regressou a Portugal de avião sem uma única baixa em combate. Apenas faleceu um soldado, vítima de um acidente quando manuseava uma granada dentro da caserna em Montepuez, Moçambique. Além desta morte, causou ainda vários ferimentos a um outro camarada que ficou sem uma vista e um braço. Estava por perto e ouvi o estrondo. Acorri ao local mas já não havia nada a fazer.

O meu último dia de tropa foi a 7 de Dezembro de 1972. Regressei a Évora e tentei ingressar na Polícia e nos Correios. Surgiu a oportunidade nesta última empresa e por lá fiquei até me reformar. Nunca tivera problemas relacionados com o ‘stress’ de guerra até agora. A minha mulher diz que sonho com o conflito armado. Certo é que agora, de duas em duas horas, estou a acordar durante a noite. Dantes isso não acontecia. Aos meus camaradas, ‘MAMA SUME!’.

VIDA DEDICADA AOS COMANDOS

Quando acabou a comissão em Moçambique, Manuel da Silva casou com a sua namorada, Ermelinda Pássaro, com quem teve três filhos. Hoje já é avô de seis netos. Viveu sempre em Évora e trabalhou nos Correios até se reformar, há seis anos. Apesar da dedicação ao trabalho, Manuel nunca deixou de participar nas actividades dos Comandos. A sua paixão por esta tropa de elite levou-o a fundar a Associação de Comandos de Évora. Hoje tem 80 associados e um programa anual de encontros-convívio e provas piscatórias. Manuel está agora a de-senvolver uma biblioteca na sede.

PERFIL

Nome: Manuel Joaquim Ourives da Silva

Comissões: Moçambique (1970/72)

Força: 29.ª Companhia de Comandos

Actualidade: Tem 60 anos e reside em Évora

Manuel Joaquim Ourives da Silva, Moçambique (1970-1972)
 

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"A guerra ficou-me agarrada à pele"

A Minha Guerra

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Intervalo de uma operação em Cambamba e em plena nomadização no meio de uma queimada

Casei em Março e embarquei em Maio, mas deixei o menino já feito. Só o conheci meses depois. Mas naquela época todos éramos muito idealistas.

Assentei praça em Mafra, como soldado cadete, em 1970. A recepção oficial que tivemos no velho Convento onde funcionava a EPI foi de molde a causar apreensão, senão receio, em qualquer jovem oriundo da casa dos pais, com vinte anos de idade, quer pelo cenário bélico montado, para impressionar, quer pelo tratamento austero de que fomos alvo por parte do ‘comité de recepção’.

Ultrapassada que foi a fase de preenchimento da documentação, de inspecções médicas e distribuição de fardamento e equipamento, dirigimo-nos para a caserna, pensando que estávamos despachados e iríamos ter sossego.

Puro engano. Aí é que começou a ‘festa’. Fomos invadidos por galões e divisas, com marcação cerrada, quase homem a homem, em que a palavra de ordem era abrir os sacos e despejar o conteúdo na cama. Obedece quem deve. Calados, quietos, em sentido, foi ver o completo despojamento dos farnéis arranjados com tanto amor e carinho pelas nossas mãezinhas, entre lágrimas dissimuladas, porque era ‘proibido trazer comida de casa’. Ele era o presuntinho, o chouricinho, a latinha de conserva, a fruta, a broa e sei lá que mais, tudo ganhou asas e nem um pio. Soubemos mais tarde que os oficiais e sargentos mais não eram que soldados prontos, com divisas emprestadas pelos que eram, de facto, graduados, que se banquetearam com as nossas iguarias, como reforço do rancho, constituído, para não variar, por arroz ao almoço, massa ao jantar e vice-versa.

Qual não foi o meu espanto quando o ‘capitão’ que me limpou a mala se veio oferecer no dia seguinte para me fazer a cama diariamente a troco de umas ‘lecas’. "É p’ro tabaco’, como ele dizia. Na altura não achámos graça, mas depois rimos a bom rir com a figura que tínhamos feito.

Já chegados a Angola, surgiu o dia em que a minha companhia abandonou, de madrugada, o Grafanil em direcção a Cambamba (região dos Dembos), onde ficaríamos aquartelados. A meio do percurso a companhia que íamos render foi esperar-nos, espalhando, aquando da junção, o boato de que tinham sofrido uma emboscada no caminho resultando daí um ferido grave.

O ferido estava em exposição mas parecia o homem invisível. Só se viam os olhos, tudo o mais eram ligaduras e mercurocromo com fartura, que aos nossos olhos, pouco experientes, parecia sangue vivo. Calcula-se como ficámos, no nosso primeiro dia em zona de guerra. Ninguém desconfiou de que se tratava de uma encenação. O comentário que se ouvia, à boca pequena, prendia-se com os eventuais motivos porque o ferido não tinha sido evacuado, dado o seu lastimoso estado. Mais espantados ficámos quando o desgraçado foi deitado no fundo de uma berliet e levado para o quartel. Durante a viagem, todos nós, maçaricos, íamos com o coração mais pequenino que um caroço de azeitona, sobretudo quando olhávamos para as zonas rochosas que ladeavam a estrada, onde até à pedrada podíamos ser atacados.

Chegados finalmente a Cambamba, sem incidentes, assistimos ‘in loco’ ao tratamento do ferido que, para nosso espanto, era o radiotelegrafista da nossa companhia que tinha viajado mais cedo para o mato, para receber material. Foi uma risota geral, para compensar os verdadeiros momentos de apreensão e angústia que viveríamos depois.

Tinha-me casado em Março de 71 e embarquei em Maio, já com um menino feito e que nasceu quando eu estava em Cambamba. Só o conheci em Outubro, quando vim de férias. No meu pelotão houve um soldado que foi morto numa operação, estava eu cá de férias, e além dessa só tivemos outra baixa, mas por acidente. Tendo em conta que tínhamos uma actividade operacional bastante grande (eram operações de cinco dias, sozinhos no mato, com o material e as armas todas às costas), não correu mal.

Nunca fui ferido e só me posso queixar das doenças: Paludismo e uma intoxicação alimentar tão grande que ia morrendo. Mas muitas vezes temi pela minha vida, quando éramos atacados e nem sequer sabíamos de onde vinham os tiros. Mas aos 20 anos somos todos idealistas e temos um bocadinho de vontade de ser heróis. Era o tempo do ‘Angola é nossa’. Ninguém estava politizado e íamos lá para fazer o que tínhamos a fazer.

Voltei de lá sem sequelas físicas ou psicológicas. Esquece-se a parte má e recordam-se apenas a camaradagem e as patuscadas. Mas essa coisa de ter ido à guerra ficou-me para sempre agarrada à pele...

CAMARADA NÃO É ESQUECIDO

Dos camaradas do seu batalhão, que reunia brancos enviados da metrópole e tropas negras locais, Alberto Silva recorda com especial carinho Alfredinho, o guia angolano das tropas portuguesas. "Era uma figura e um homem de grande lealdade.

Quando foi agraciado com o Prémio Governador Geral de Angola foi-lhe proporcionada uma viagem a Portugal, onde ficou espantado por não se ver capim nas ruas e onde comprou uma colecção de gravatas que nunca mais tirou. Até de tronco nu ostentava a gravatinha. Pergunto-me muitas vezes o que lhe terá acontecido", recorda Alberto.

PERFIL

Nome: Alberto Silva

Comissão: Angola (1971/73)

Actualidade: Hoje, aos 60 anos, vive em Algés

Alberto Silva, Angola (1971-1973)
 

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“As minas eram o nosso pior inimigo”

A Minha Guerra

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O furriel Dias (na foto é o terceiro a contar da esq. dos militares sentados na fila de trás), com a sua secção, junto a um posto de vigia em Miandica, Niassa, 1967

Estive à beira da loucura após dez dias praticamente subalimentado. Fomos salvos de um ataque por uma catarpiler. Na guerra, consolei camaradas.

Em Abril de 1966 parti no paquete ‘Pátria’ para a guerra. A 30 de Abril, como me podia esquecer? Tinha 22 anos. Já me achava velho para a guerra. O resto era rapaziada de 19 ou 20 anos. Tive muito tempo à espera. Quando cheguei a Moçambique, com 17 dias de mar, fui para a Zambézia. O tempo da chuva e do calor já se estava a dissipar.

A Companhia de Caçadores 1559, onde eu era o furriel Dias, foi a primeira unidade militar a fixar-se no Molumbo, tendo encontrado para alojamento um tosco campo de futebol. Instalámos tendas de campanha e ali ficámos 15 dias. Depois fomos transferidos para uma velha prisão, cedida pela administração local. Basicamente passou a ser a nossa "prisão" – o nosso quartel –, construída no sopé de um majestoso monte.

A população tratava-nos muito bem. Mas nós fazíamos por isso. Eles tinham carências de saúde, alimentação, transportes. Cheguei a dar-lhes parte da minha comida, essencialmente às crianças, que pareciam enxames à nossa volta.

Custou-me horrores passar a noite de NAtal de 66 no meio da picada com a viatura atascada, sem poder juntar-me à minha secção. Eu tinha ido ao quartel buscar alimentos para a Consoada, que acabei por passar à chuva com mais quatro homens. Foi uma noite muito triste. Demos um abraço e assim se passou.

Só em Maio de 1967, um ano depois de ter chegado ao Molumbo, já destacado no chamado "inferno de Miandica", vivi o primeiro episódio de guerra. A Secção dos Milhinhos, ao regressar ao destacamento através da pista de aterragem em construção, por isso, em campo aberto, sofreu um forte ataque. Em simultâneo, o inimigo atacou também o destacamento onde eu me encontrava. Seguiram-se momentos de grande angústia e perigo. Salvou-nos uma Catarpiler das obras que estava estacionada. Ouvíamos os tiros a bater na máquina. Naqueles momentos não se tem medo – temos que nos proteger. Ali não morreu ninguém nem houve feridos.

Estive dois meses no ‘ inferno’. Os praças dormiam em buracos no chão. Nós vivíamos numa casa de tijolo cheia de parasitas. O reabastecimento fazia-se através da avioneta que largava as sacas. Partilhávamos a comida com macacos, que nos roubavam. Passámos dez dias subalimentados. E sem tabaco. Estava prestes a chegar à loucura.

Mortos das nossas tropas, não quis ver. No meu batalhão (600 homens), morreram nove. Na minha companhia (160) tivemos apenas um morto por acidente com arma, o alferes Cartaxo. Mas senti também o pesar quando me disseram que morreu o cabo Leão, com o accionamento de uma mina antipessoal. Na guerra, as minas eram o nosso maior inimigo. Eu estava num local que lhe chamavam "Estado de Minas Gerais".

Quando saí do "inferno" de Miandica, em direcção ao Cóbuè, participámos na operação ‘Novo Rumo’ à base do Mepache. No caminho detectámos um posto avançado da Frelimo e houve um confronto. Obviamente alertaram logo a base principal. Nós continuámos. Estava combinado a aviação bombardear o acampamento do Mepache ao meio-dia. Com todos os percalços, quando lá chegámos já não estava ninguém. Por azar, um furriel da minha Companhia caiu numa ravina e abriu um buraco numa perna e ficou imobilizado. Eram três da tarde e a aviação já não o evacuou. Tivemos que passar a noite perto do aquartelamento que tínhamos atacado. E, de madrugada, fomos nós atacados. Ficámos caladinhos. Disparávamos sobre quem? Ao fim de dez minutos de fogo intenso desistiram. No dia seguinte, o helicóptero levou o furriel ferido e nós seguimos para Cóbuè.

Recordo-me que em Miandica fiquei três semanas sem correio. Quando o saco lá chegou, também atirado pelo ar, tinha 22 cartas. Escrevia sempre à minha namorada e aos meus irmãos. Para os meus pais, quando andava no mato, eu tinha um esquema montado para que a cada saída do correio seguisse sempre uma carta minha. A minha mãe tinha que estar sempre iludida. Para ela, era como se eu estivesse nas Seicheles ou no paraíso. À minha namorada, com quem casei depois, só escrevia cartas de amor. Havia momentos de solidão em que chorei. E outros houve que dei consolo a muitos camaradas.

Em Fevereiro de 68 voltei ao Molumbo. A parte final foi pacífica. Eu tinha um rapaz que andava comigo, era o meu ‘mainato’. O Joaquim. No dia da despedida, ele, com 15 anos, agarrou-se às minhas pernas, chorava e pedia-me para o levar comigo. Dei-lhe dinheiro, roupa – sempre lhe dei – e lá o deixei entregue a outro furriel. Nunca soube mais nada dele.

O REGRESSO 36 ANOS DEPOIS

Em 2004 Manuel Pedro Dias tornou realidade o sonho de regressar a Moçambique, aos locais por onde passou na Guerra do Ultramar. "Não sei o que nos leva, a nós, ex-combatentes, a querer voltar ao local onde tanta coisa boa e tanta coisa má se passou". Mas ir, concretamente ao Molumbo, foi uma experiência única. "Ao olhar para aquele morro por trás do nosso antigo quartel, senti tanta adrenalina como aquele alpinista conhecido, o João Garcia, deve sentir ao subir a qualquer montanha". Manuel (o antigo furriel Dias) encontrou lá pessoas do tempo da guerra.

PERFIL

Nome: Manuel Pedro Dias

Comissão: Moçambique (1966/1968)

Actualidade: Aos 65 anos, vive em Odivelas e é bancário aposentado

Manuel Pedro Dias, Moçambique (1966-1968)
 

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“A terrível perda do bom amigo Serra”

A Minha Guerra

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A 30 de Setembro de 1964, Cristiano (à esquerda), Duarte, Tigre, Filipe e Celestino despediram-se do sargento Serra

Algo tão definitivo como a morte lhe roubaria a futura e feliz contemplação da jovem esposa e da linda criança que deixara em Portugal.

A caravana deixou a cidade às primeiras notas do crepúsculo. Pôs-se em andamento – numa cadência monótona e irritante – já quando o Sol, matizado de vermelho, fazia a sua aparição no horizonte de vegetação verde, onde ainda ecoavam os sons da noite. A velocidade aumentou para depois diminuir, diminuir sempre, devido às precárias condições do terreno. Mais à frente, sessenta quilómetros volvidos, a civilização deu lugar à selva, ao intenso arvoredo em muitos pontos virgem. Foi então que a odisseia dessa viagem começou – um lancinante drama que a todos, indistintamente, envolveu.

Habituados desde sempre ao bulício das cidades mas também à placidez romanesca dos campos, fácil foi sermos surpreendidos pelo ‘ambiente’ desconhecido que nos rodeava; um ambiente totalmente hostil, inseguro, de que o cinema até não dera uma ideia concreta. Um ‘clima’ de autêntica guerra para onde tínhamos sido lançados como vítimas inocentes, tochas humanas na alimentação indescritível e inconcebível da fogueira imensa que lavra sempre em universos de discórdia.

O Serra era um bom amigo, estimado sem excepção pelos companheiros. A sua figura viva, propícia aos ditos espirituosos, transmitia uma alegria que contagiava e não ofendia. E era honesto. Ora contra a sua maneira de ser, por forma que lhe era inusitada, o Serra estava diferente naquele dia. Com mais propriedade, desde a véspera que se lhe notava certa modificação. Mais isolado, taciturno, dir-se-ia obcecado por algo terrível. É que – vim depois a saber – o nosso amigo temia a viagem que no dia seguinte faríamos. Não porque de natureza fosse temeroso, mas porque nesse dia uma voz estranha, que lhe vinha do âmago do seu ser, lhe havia pressagiado um mau acontecimento.

O pobre Serra confessou-nos o receio de que ocorresse algo que o obrigasse a deixar o contacto terreno; O afastasse eternamente do convívio dos entes queridos que, longe, no seu rincão natalício, o sentiriam partir. Algo por demais indizível, como a morte, lhe roubaria a futura e feliz contemplação da jovem esposa e da linda criança que deixara. Imbuído nesses pensamentos pediu-nos que, se não sobrevivesse, lhe enviássemos o corpo para a sua terra. Nós, indiferentes, alheios à sua luta interior, duvidámos do seu lúcido estado de espírito e não nos apercebemos da missão ingrata que teríamos de efectuar.

E partimos todos, unidos pela burocracia que nos juntara, rumo ao ignorado e à perfeita aventura, sem nos capacitarmos sequer de que já éramos personagens de um drama. Se já não bastasse a distância de 180 mil metros que palmilhámos em mais de 23 horas pelo terreno acidentado, as subidas íngremes e as descidas em declive; A verificação de cultivos devastadas, os muros abertos em ruínas, pátios calcinados, a destruição, as condições péssimas em que nos deslocávamos, sobre caixotes, aos trambolhões, comendo pó em vez de alimento, perfeitamente expostos à hostilidade da paisagem, então bastaria a iniludível tensão que em nosso redor pairava, onde se adivinha o perigo que poderia surgir a cada momento.

O tempo sob as rodas poeirentas dos veículos lá foi seguindo o seu curso, até que o dia se transformou em noite. E esta, por sua vez, deu desfecho ao pressentimento. Percorríamos uma prolongada elevação quando se avistaram vários pontos brilhantes. Nós seguíamos na cauda da coluna. Os tiros passaram-nos sobre as cabeças. A um só tempo, todos saltaram para o chão procurando o melhor abrigo e a melhor forma de ripostar. O fogo, intenso do nosso lado, fez calar a parte contrária. No entanto, e não obstante a relativa escassez dos disparos adversos, o destino impôs-se. Nessa altura era cedo ainda para que a verdade nos atropelasse como um bólide. Só mais tarde, depois do ferido ser conduzido à nossa frente, depois de percorridos os últimos quilómetros, é que nos detivemos ante a gélida perda do nosso amigo. A perda de um amigo nascido dum circunstancial convívio, propiciado pelas circunstâncias da guerra, mas efectivamente um amigo.

Como chefe de secretaria do pelotão, o meu primeiro trabalho foi, infaustamente, o de velar o seu corpo. Tenho a memória das lágrimas silenciosas que então me rolaram pela face, depois repetidas, em raiva, quando oficialmente negaram a sua trasladação para Portugal. Hoje não choro, mas recordo.

AS VIAGENS PELO MUNDO

Natural da Ribeira de Santarém, Celestino Santos reside actualmente em Lisboa com a sua esposa, companheira de há já 50 anos. Depois de uma carreira como ‘audit manager’ numa empresa internacional de auditores, regressou a Portugal em 1975 com a esposa e as duas filhas.

Retomou os estudos no ISCAL, na área da Administração Financeira, exercendo em simultâneo funções como ‘financial controller’ numa multinacional americana. Hoje, já reformado, divide-se entre a família, os amigos, o prazer da leitura e as muitas viagens à descoberta do Mundo.

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Nome: Celestino Santos

Comissão: Angola (1963/1965)

Força: Pelotão de Apoio Directo 926

Actualidade: Hoje, aos 69 anos, em Lisboa

Celestino Santos, Angola (1963-1965)​
 

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“Perdi dez camaradas da minha companhia”

A Minha Guerra

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Foto para a namorada tirada em Cabinda

As rajadas de metralhadora não o deixaram dormir. Mas foi numa dessas noites que descobriu o sentido da camaradagem em tempo de guerra.

Depois de um ano de tropa no continente, fui mobilizado para Angola, integrado numa companhia de caçadores especiais mas com a especialidade de operador cripto, ou seja, responsável por cifrar e decifrar mensagens.

Parti numa madrugada fria de Novembro. Ainda noite, a minha companhia saiu de Beja num comboio para a Rocha Conde d’Óbidos, em Lisboa, onde chegámos pela manhã. Por lá, já se encontravam outras tropas prontas para embarcar. A confusão era muita, com as famílias, amigos, namoradas e outras gentes que ali aguardavam desde muito cedo para se despedirem dos soldados. Alguns de lenço na mão, outros de lágrimas nos olhos por causa de um “adeus, até qualquer dia”, que não era fácil pois sabíamos que para alguns de nós poderia ser para sempre. O momento mais arrepiante foi quando os militares do meu contingente começaram rapidamente a subir as escadas do ‘Niassa’. Durante longos minutos, o navio foi-se afastando devagar – com aquelas pessoas todas que não paravam de acenar a confundirem-se no cais – enquanto nós, de braços bem levantados, íamos desaparecendo no infinito.

Logo no primeiro dia recebemos dos nossos superiores instruções de como iria ser a ordem das refeições. Como éramos muitos (a minha companhia tinha cerca de 160 soldados) e a viagem até Luanda demorava 11 dias, fomos divididos em grupos de 11. A cada grupo era dado um alguidar e cada dia um soldado diferente ia à cozinha buscar a comida, depois colocava-o no chão do barco e os onze soldados sentados à volta do alguidar, com uma lata a fazer a fazer de marmita, serviam-se.

Alguns dias antes da chegada fomos informados de que não iríamos para Luanda mas sim para Cabinda e, como o navio não podia atracar lá, ancorou ao largo e fomos desembarcando por cordas. Cada vez que um descia, caía em cima dos outros que já lá estavam. O batelão não parava quieto. Batia no navio e afastava-se logo de seguida e se falhássemos os cálculos caíamos à agua. Ficámos aí alguns dias e depois lá entrámos pela mata de Maiombe.

Não gosto muito de falar de momentos tristes, mas lembro-me em particular de uma noite ouvirmos rajadas de metralhadora por todo o lado. Saíram então dois pelotões em sentidos diferentes em busca do inimigo, mas o arvoredo e a escuridão acabaram por metê-los frente a frente e os soldados abriram mesmo fogo uns contra os outros. Não me lembro se aí morreu alguém, mas sei que ao fim de dois anos a minha companhia perdeu uns 10 militares.

Noutra ocasião ouviram-se, de madrugada, também rajadas de tiros perto do acampamento. Estavam poucos militares no acampamento, porque a maioria tinha sido destacada para missões em Miconge e Luali, então os poucos que restavam formaram um pelotão e foram ter com o inimigo. Antes de ir, um dos meus companheiros, o Neves, disse: “ um dia vou e não volto”. E foi isso mesmo que aconteceu. Tinham sofrido uma emboscada.

Noutra madrugada recebi uma mensagem cifrada a dizer que cerca de 300 homens (do inimigo) vinham na nossa direcção. Ainda por cima, dependia de mim a rapidez em decifrar as mensagens em situações de perigo iminente.

Saíram de imediato dois pelotões atrás deles. Tal como eu, os poucos que ficaram no aquartelamento temeram o pior. Quando ouvimos barulho, eu e outro companheiro deitámo-nos no chão, durante mais de uma hora e essa noite pensei que talvez fosse a última da minha vida. Ali ficámos imóveis e o colega que estava deitado a meu lado no chão tremia como varas verdes. Disse-me que tinha fome e respondi-lhe que tínhamos de aguentar, até porque na véspera tínhamos tido ração de combate. Mas de repente meti a mão ao bolso do camuflado, vi que tinha sobrado uma bolacha da ração e dei-lha. Então, ele disse-me baixinho: “é metade para cada um de nós”. Isso ficou-me marcado para sempre. E essa não foi a última noite da minha vida, mas foi aquela em que aprendi o valor da camaradagem.

Os dias mais felizes eram aqueles em que chegava o correio, quando ouvíamos o nosso nome na voz do colega que fazia a distribuição. E que bonitos aerogramas nos mandavam as madrinhas de guerra... Mas era complicado, por causa das namoradas que cá tínhamos deixado. Mas também era uma tristeza quando não recebíamos nada. Não havia nada a fazer. Tínhamos de seguir em frente sem perder o ânimo. Era preciso estar alerta.

DOENÇAS ERAM CONSTANTES

João Monteiro escapou às balas mas não às outras maleitas que afectavam os militares em África. “Nas matas de Cabinda, uma das maiores e mais impressionantes florestas do Mundo, o arvoredo era imenso, o calor muito e raramente se encontrava água boa para beber, por isso o paludismo e os problemas gástricos eram uma constante”, recorda.

“Nunca fui ferido mas sofri esses males na pele e tive de ir de avião para o Hospital Militar, em Luanda, onde fiquei internado semanas”, recorda o ex-cabo que retomou o seu lugar nas trincheiras “ainda combalido”.

PERFIL

Nome: João Ferreira Monteiro

Comissão: Angola (1962/1964)

Actualidade: Trabalhou no comércio. Após a reforma tornou-se vigilante numa escola

João Ferreira Monteiro, Angola (1962-1964)​
 
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