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"A Minha Guerra"

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“Tudo o que viesse eu tinha de abater”

A minha guerra

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Partida para uma operação. João Rato com a sua secção, prontos para arrancar

A guerra começou por significar a difícil perda do irmão. Depois acabou ele por conhecê-la. Em Angola, este português sofreu e lutou. Muito

Quando assentei praça em Elvas, foi uma grande alegria para mim porque, pensava eu, finalmente tinha a profissão de que gostava: seguir a vida militar. No dia 23 de Outubro de 1967, ao ver os meus futuros camaradas, todos rapaziada pelos 20 anos, tal como eu, percebi que iria fazer novos amigos que me iriam marcar pela vida fora. E como marcaram! Depois de terminar a recruta, fui para o Regimento de Infantaria nº 1, que ficava na Amadora. Lá dei entrada em 1968, para tirar a especialidade de atirador e ao mesmo tempo de minas e armadilhas, e o curso para 1º cabo.

Escusado será dizer que foram outros três meses de grande sofrimento pois, em Março de 1968, recebo a triste notícia de que estava mobilizado para a guerra. Nesse momento veio-me ao pensamento a triste recordação do falecimento do meu irmão, José Manuel Rato, morto em combate no ano de 1966 na Guiné. O choque foi tão grande que fiquei sem sangue, andei uns dias desorientado, mas com os meus 20 anos tudo foi ao lugar. Tinha de ser. No dia 28 de Março de 1968, terminada a concentração no cais de embarque da Rocha do Conde de Óbidos, foi-nos concedido um tempo para contactarmos os familiares e amigos que se haviam ali deslocado para assistirem à partida.

A viagem para Angola foi feita a bordo do paquete ‘Vera Cruz’. Chegados à maior província ultramarina portuguesa, eu e os meus colegas de armas fomos transportados até ao campo militar do Grafanil – onde toda a tropa ficava sediada até ser distribuída. Após alguns dias a dormir no chão, chegou a ordem para sermos deslocados para o Norte de Angola, mais precisamente para o Toto.

Passado mais de um mês nessa região, um dia, pelas oito da manhã, o camarada das Transmissões correu a informar o comandante de que uma coluna de outra companhia, localizada a 40 ou 50 quilómetros, não dava sinais de vida, pelo que o nosso comandante destacou dois grupos de combate para ir ver o que se passava. Ao chegar ao local deparámo-nos com o pior cenário que poderíamos encontrar: foi o nosso verdadeiro baptismo de fogo, em que encontrámos vários camaradas mortos e feridos.

No regresso, começámos a pensar como a emboscada tinha sido feita: chegámos à conclusão de que os inimigos tinham prendido uma galinha na picada para despistar os jipes dos nossos militares, que bateram uns contra os outros. Verdade é que a informação nunca nos foi dada correctamente, foi feita ao longo de semanas, anunciando de cada vez uma ou duas baixas em combate.

Volvidos alguns meses, recebemos a notícia de que alguns de nós teríamos de ir para a região de Bembe, recuperar o espaço físico de uma antiga missão, para que pudesse receber o resto da companhia. Foi o que fizemos. Quando chegou o resto do pelotão, o comandante, José Carlos de Quintal Calheiros, reparou que não havia luz e resolveu dar uma prenda aos seus homens pelo trabalho feito em tão pouco tempo: mandou então vir um gerador de Luanda.

Como queria ver os seus homens sempre alegres, arranjou também dois equipamentos de futebol, um à Sporting, o outro à Benfica. Como era um ferrenho sportinguista, e para que tivesse sempre alegrias, decidiu que os melhores jogavam sempre com o equipamento do seu clube. Depois de várias operações de combate, chega a comunicação de que o 4º grupo de combate tinha de se deslocar para o Leste de Angola, para ‘as terras do fim do Mundo’, para reforçar um pelotão de Cavalaria que já tinha tido algumas baixas. Era uma zona pantanosa: havia poucos tiros, porque eles atacavam mais com flechas, mas não foi fácil.

Numa altura em que o meu grupo de combate tinha que abater certos e determinados indivíduos, eu fui um dos nomeados para abater quem aparecesse. Nesse momento, recordei-me que anos antes, na Guiné, tinha perdido um irmão em combate. Mas mesmo não sendo uma situação que tomei de ânimo leve, tudo o que viesse e que me aparecesse à frente da arma eu tinha de abater. Depois de mais algumas operações, chegou a comunicação de que tínhamos de regressar ao Norte para formarmos a companhia e regressarmos à Metrópole.

Após chegar, estive meses abalado por tudo o que vivi. Estava muito fraco, pesava menos de 50 quilos. Ainda hoje me lembro dos tempos de África, dos meus camaradas, e, posso dizer, tenho em todos eles um amigo. Ao fim de 30 anos, realizei o nosso primeiro encontro – e não deixarei nunca acabar estes convívios, porque o Batalhão 2840 e a Companhia 2351 são a minha grande família. Desejo um dia, com eles, voltar a Angola. Não morrerei sem lá ir.

NA LIGA A AJUDAR VETERANOS

João Rato, ‘comandante Rato’, continua ligado aos combatentes. "Recebi um convite para fazer parte da Direcção do Núcleo da Liga dos Combatentes de Estremoz’, que aceitei com orgulho. Mas não fico descansado enquanto não resolver um triste episódio de que tive conhecimento: um dos meus companheiros do Ultramar é hoje um sem-abrigo. Irei lutar para encontrar uma solução para todos os veteranos de guerra, para que tenham um fim feliz." A Casa da Idade do Ouro, projecto em desenvolvimento para acolher estas pessoas, está a caminho de cumprir essa vontade.

PERFIL

Nome: João Francisco Rato

Comissão: Angola (1968/70)

Actualidade: Tem 63 anos, é bancário reformado e trabalha na Liga dos Combatentes

João Francisco Rato, Angola (1968-1970)
 

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“Fechámos os quartéis e demos as armas”

A minha guerra

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A sair de um helicóptero durante missão em Cangonbé, no Leste

Para os comandos, a vida militar em Angola era feita de sobressalto. Tínhamos de estar sempre prontos para novas operações debaixo de fogo.

Nascido e criado em Lisboa, vivi em Campo de Ourique a minha juventude. Foi aos 21 anos que ingressei na vida militar, quando iniciei em Mafra a recruta em Infantaria. Corria o ano de 1972 e eu era um cadete. Não fazia ideia do que era África.

A 5 de Janeiro de 1973, acabado de fazer 22 anos, embarquei de avião para Angola. Nunca mais me esqueço do primeiro impacto quando chegámos a Luanda. Tínhamos deixado Lisboa com cinco graus, mas quando a porta do avião se abriu em Angola estavam 35. Era um calor sufocante que nos marcou logo desde o início da comissão.

Tal como estava planeado, partimos para a Funda e Belo Horizonte, onde fizemos o curso de Comandos. Os dois primeiros dias até foram simpáticos – estivemos no Grafanil, onde se podia beber tudo o que quiséssemos sem pagar nada. Mal sabíamos o que nos esperava nos dias seguintes... A primeira prova que nos fizeram no curso de Comandos foi precisamente um teste de resistência à sede. Ao fim de várias horas sem beber nada, vi dezenas de camaradas desmaiarem. Éramos 300 a fazer o curso, e mais de metade dos soldados desfaleceu durante a prova de sede. Mas havia mais dificuldades para vencer.

À prova seguinte chamavam o ‘teste do mosquito’ e consistia em estarmos imóveis durante largas horas, proibidos de usar repelente e sem podermos enxotar os milhares de insectos que voavam à nossa volta. Lembro-me de um camarada que foi tão massacrado pelas picadas que, no fim da prova, a cara dele parecia um bolo. Estava irreconhecível.

Depois de acabar o curso de Comandos fui mobilizado para o Leste de Angola, para a zona do Luso, hoje conhecida como Luenas. Juntei-me à Companhia de Comandos 2041 e os combates começaram pouco depois de termos chegado. Os Comandos tinham por missão fazer golpes de mão de grande rapidez e violência. Já graduado em alferes, comandei vários grupos de 30 homens. Partíamos em cinco helicópteros e mais um helicanhão e atacávamos onde fosse preciso. Nunca se podia dormir descansado, porque estávamos sempre prontos para ser chamados para nova missão a qualquer momento.

O Leste de Angola, a par com o Norte, era a zona onde a guerra era mais violenta e sabíamos que, para os Comandos, a missão nunca era fácil. Lembro-me que os primeiros combates em que participei foram na zona da N’riquinha, junto à fronteira com a Zâmbia.

Aliás, aí acontecia um fenómeno curioso: Quando as nossas tropas deixavam alguns mantimentos (cerveja, comida, farinha) junto à fronteira, havia alguma tranquilidade. Se não houvesse essas ‘ofertas’ era certo que havia bombardeamentos com morteiros. Lembro-me de uma missão que tivemos em Lupiri, em que fomos muito maltratados pelo inimigo durante vários dias.

A vida militar era dura, mas criavam-se laços de grande amizade e companheirismo. Sabíamos que qualquer um de nós estava disposto a dar a vida pelos outros. Havia muita coragem. Perdemos dois homens da companhia em combates e esses foram os momentos mais tristes que vivi em Angola.

Em 1974, a minha Companhia foi colocada no Norte de Angola, em Salazar. Ficámos nas bases dos comandos em Piri e Úcua. Aí a guerra era ainda pior do que no Leste. O inimigo combatia com ferocidade e, ao contrário do Leste, que era plano e seco, a paisagem era de selva tropical, quase intransponível. Era muito difícil deslocarmo-nos naqueles terrenos e o inimigo aproveitava para nos atacar. Eu levava sempre a minha máquina fotográfica e fiz fotos incríveis dessas missões.

Nem só de guerra se fez a minha passagem por Angola. É um país lindíssimo, que eu conheci de uma ponta à outra e fiquei fascinado. A vida em Luanda era um descanso, onde havia praia, marisco e mulheres lindíssimas.

Vivi o 25 de Abril de 1974 em Angola. A Revolução trouxe reacções muito diferentes, eu não gostei do que se passou. Fiz o meu dever como combatente, mas Angola foi entregue de mão-beijada a movimentos que não estavam preparados para receber o país. Durante os últimos meses que estive em Angola, fechávamos os quartéis de Luanda e entregávamos as armas, sabendo que os angolanos já as estavam a usar para se matarem uns aos outros e começar a guerra civil.

Regressei a Portugal em Janeiro de 1975 e nunca mais voltei a Angola. Ali vivi os melhores dois anos da minha vida e também os piores dois anos da minha vida.

PAIXÃO PELA FOTOGRAFIA

Em Angola, Alberto Amado conheceu alguns dos melhores fotógrafos que trabalhavam na província ultramarina. Comprou a um deles uma máquina fotográfica Nikon F5, que nunca largava: "Ia sempre para as missões com ela e fiz fotos incríveis. Tenho imagens como nunca vi em lado nenhum", conta o antigo comando. Um dia, ele próprio foi protagonista de uma notícia, publicada na revista ‘Notícias’, de Angola: "Estava em Luanda e vi um carro a cair na baía. Atirei-me à água e consegui salvar a mulher que guiava o carro". Um fotógrafo captou o gesto de heroísmo.

PERFIL

Nome: Alberto Amado

Comissão: Angola (1973/1975)

Actualidade: Tem 59 anos e quatro filhos. Desempregado, trabalhava com automóveis

Alberto Amado, Angola (1973-1975)
 

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“Missão era encontrar os meus camaradas”

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Adelino Carvalho com dois camaradas no Regimento de Infantaria de Aveiro, onde fez a recruta militar

A recruta preparou-me para a guerra mas o destino colocou-me na manutenção militar. Localizava os camaradas para as famílias.

Assentei praça no Regimento de Infantaria de Aveiro em Outubro de 68. Fui, desde a primeira hora, preparado física e psicologicamente para mais dia menos dia ter de enfrentar o desafio do Ultramar.

Embarquei no ‘Infante D. Henrique’ a 18 de Julho, passando pelo quartel-general de adidos para levantar o equipamento camuflado. Não fazia a mínima ideia do local onde iria ser colocado e nem mesmo quando desembarquei em Maputo, Lourenço Marques, sabia qual seria o meu destino. Ao fim de quatro dias apareceu uma carrinha para nos levar com destino ao centro de logística da manutenção militar que se encontrava na estrada da Beira, afastado da cidade. Permaneci aí destacado durante os 26 meses que durou a minha participação no conflito.

Tinha como missão a segurança das instalações. Foi um doce remanso onde abundava a boa vida, a boa mesa, as cervejas nas esplanadas e nos bares, algumas miúdas e o divertimento que permitiam os 900 escudos mensais do salário de primeiro cabo. Não fui eu que escolhi e também não tinha padrinhos de alta patente, tive sorte. No entanto apercebi-me bem do que se passava, da realidade crua que se vivia no norte de Moçambique.

FUNÇÕES

No quartel-general tinha como missão receber o correio que não encontrava destinatário e reencaminhá-lo. Fazia de escrivão também na elaboração de processos e lia em primeira-mão o correio militar proveniente das outras unidades, inclusivamente das zonas de combate. Também era na minha secção que se apresentavam familiares de militares que se encontravam noutras unidades e dos quais não recebiam notícias há muito tempo: Estavam, por isso, na maioria das vezes, bastante preocupados. Nesses casos a minha missão era descobrir onde se encontravam estes camaradas e dar notícias às famílias.

Na Manutenção Militar assistia de perto ao envio de milhares de toneladas de rações de combate para aquela que foi designada como operação ‘Nó Gordio’. Durante os meses em que estive em Moçambique nunca deixei de visitar no Hospital Militar camaradas meus conhecidos ou conhecidos de alguém da minha terra – que me pedia para o fazer. Levava umas latas de fruta de conserva e uma palavra amiga.

CAMARADAS DA MANUTENÇÃO

Adelino Carvalho com os camaradas quem, junto com ele, trabalhavam na área da manutenção militar – na praia do Bileme, em Moçambique. "Tínhamos uma equipa de vinte pessoas, sem contar com os civis. Não havia conflitos entre nós, como mostra esta foto, tirada durante um passeio à praia, a cerca de 100 quilómetros de Lourenço Marques". Neste dia terá até havido sardinhada. "Era raro".

PERFIL

Nome: Adelino Carvalho

Comissão: Moçambique (1969/1971)

Actualidade: 62 anos. É inspector fiscal de instalações eléctricas

Adelino Carvalho, Moçambique (1969-1971)
 

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“Fomos atacados no dia do meu aniversário”

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Ataque a uma aldeia onde o inimigo tinha estabelecido uma base de apoio, no Norte de Angola

Parti para Angola sozinho e cumpri a minha comissão em duas companhias. Estive no Norte, onde os combates eram muito violentos.

09 Maio 2010
Nº de votos (16) Comentários (1) Por:Manuel Aldeias, Angola (1972-74)

Fui mobilizado para Angola, onde permaneci de Julho de 1972 até Setembro de 1974. Parti sozinho, isto é, em rendição individual, e prestei serviço na especialidade de transmissões na Companhia de Caçadores 3386/B. CAÇ. 3848 e após o regresso desta na Companhia de Cavalaria 8453.

NAMBUANGONGO

Cheguei em Agosto de 1972 a Nambuangongo, 180 km a norte de Luanda, na temida região dos Dembos. Ali perto encontrava-se o Quartel-general da 1ª Região Militar do MPLA, onde os guerrilheiros se acoitavam e preparavam ataques.

Alguns dias após a minha chegada, sofremos quatro violentos ataques. A 10 de Setembro de 1972 o inimigo infligiu-nos um morto e um ferido grave. Partimos para Luanda, afim de integrarmos a Força de Intervenção. Éramos uma espécie de bombeiros da guerra, intervínhamos em qualquer lugar do Norte. Em Janeiro de 1973 montámos uma base táctica perto de Nambuangongo. Durante uma operação, o nosso guia perdeu-se na cerrada e tenebrosa mata. Deambulámos pelo interior da floresta virgem, perseguidos pelo inimigo que nos flagelava constantemente, durante seis dias. Valeram-nos os helicópteros Puma, protegidos por um helicanhão, que nos resgataram.

No final da operação, a nossa força foi considerada inoperacional e enviada para os confins do sertão angolano, no Sul, junto à fronteira com a actual Namíbia. Aqui ficámos três meses na paz dos deuses, até ao final da comissão. Findo este período, e como me faltava cerca de um ano para terminar a comissão, fui enviado para junto da fronteira norte.

Com o tempo a passar sobre o 25 de Abril de 1974 e devido à indecisão de Portugal sobre o futuro de Angola, a FNLA atacava em força. Na noite de São João de 1974 o nosso aquartelamento da Mamarrosa, onde se encontrava a minha companhia ‘Os Felinos’, foi atacado com armas automáticas, morteiros e canhões sem recuo. Devido a actos de bravura e coragem, ao clarear do dia o inimigo pôs-se em fuga. Em 29 de Julho de 1974, dia do meu aniversário – fazia 23 anos – a FNLA cercou o nosso pequeno destacamento do Luvo, junto à fronteira, e desencadeou um brutal ataque com a intenção de o tomar de assalto. Mas ‘Os Felinos’ reagiram com arrojo e audácia e o inimigo foi heróica e corajosamente rechaçado.

COM OS POVOS DO SUL DE ANGOLA

Tive o privilégio de conhecer o extremo Sul de Angola, junto à fronteira com a actual Namíbia. Uma região de savana com um clima seco e árido, influenciado pelo deserto do Calaári. Aqui pude conhecer povos como os cuanhamas, muilas e os bosquímanos, os célebres intervenientes do filme ‘Os Deuses Devem Estar Loucos’, e que em Angola são chamados de mukankalas ou vassequeles.

PERFIL

Nome: Manuel Aldeias

Comissão: Angola (1972/74)

Unidade: C. Caç. 3386 e B. Caç. 3848

Actualidade: Tem 59 anos e está reformado. É casado e tem uma filha
 

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“Implorava aos santos e à N. Sra. de Fátima”

A minha guerra

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Antes da partida para mais uma emboscada. Custódio Pouseiro está de pé, ao centro, em cima de uma caixa de granadas, agarrado a uma bazuca

Do lado do inimigo morreu o mercenário Margot Cruz. Enterrámo-lo. Na lápide lia-se: “Que a terra lhe seja leve e o cimento também”

Estávamos em Dezembro de 1968, eram pouco mais das 10 horas da manhã, um dia de sol radioso, como tantos. Vivia-se uma calmaria sufocante, a humidade de Cabinda, só por si, criava em nós, continentais, um estado doentio. De um momento para o outro tudo se alterou; da densa e quase intransponível floresta do Maiombe soavam sons de rajadas de metralhadoras, tiros, muitos tiros, rebentavam granadas e bazucadas que nos provocavam suores.

Em breves instantes os nossos lábios ficaram secos e frios, trocávamos olhares de espanto entre os camaradas. Assaltou-nos o medo. Seguiram-se momentos de incerteza. Em poucos segundos, talvez minutos, o radiotelegrafista dava-nos conta de um ataque a caminho do Sangamongo (destacamento que se situava a poucos quilómetros do local onde a selecção de futebol do Togo caiu numa emboscada quando, no ano passado, se deslocava para o Campeonato das Nações Africanas, em Luanda).

Corremos em busca das espingardas, subimos para as viaturas e aí fomos nós, o 3º e 4º pelotões em ajuda dos nossos camaradas. Estaríamos a cerca de 12 quilómetros e, à chegada, assistimos a um cenário de guerra arrepiante. Rebentamentos, gritos de dor dos que não morreram, viaturas em chamas... Cada um de nós, como pôde, procurava dar conforto aos feridos, como se de familiares se tratasse.

Veio a ordem para abrirmos fogo de defesa e, após segundos de puro silêncio, os mortos, em número de cinco, e os muitos feridos foram encaminhados para as viaturas e conduzidos ao nosso aquartelamento, no Chimbete. Desta emboscada resultou, da parte deles, um morto confirmado que, supomos, seria um comando "mercenário" de nome Margot Cruz, que sepultámos no nosso aquartelamento com uma lápide onde se podia ler: "Que a terra lhe seja leve e o cimento também. Tchimbete 22.12.1968".

Organizada a retirada daquele inferno, iniciámos o regresso ao quartel. Sem darmos por isso, eu, o soldado que carregava a bazuca e o meu amigo furriel vimo-nos na frente da coluna porque, entretanto, as viaturas que nos protegiam seguiram com outra velocidade, em socorro dos feridos. Eu implorava a todos os santos e a Nossa Senhora de Fátima e o meu amigo à Rainha Santa, por ser de Coimbra. Lá nos amparámos um ao outro.

Já no aquartelamento, foi o transporte dos feridos para o helicóptero, rumo à cidade. Restavam os mortos.

VOLUNTÁRIOS

Chega-nos entretanto a ordem de que os mortos deverão seguir naquela noite, de 22 de Dezembro, para Cabinda, a cidade. "Aceitamos voluntários para os acompanhar", disseram. Entre ficar no aquartelamento, onde reinava a tristeza profunda, ou acompanhar os mortos, aceitei ser voluntário. Partimos ao cair da noite, foram 230 quilómetros de picada até Cabinda, em Berliet improvisada de carro funerário. Chegámos pelas cinco horas da manhã à morgue de Cabinda. Quando a morgue abriu, entregámos os corpos ou parte deles.

Dia e meio depois, foi o regresso ao inferno do Chimbete, onde estava o nosso aquartelamento. Pelas 22 horas da véspera de NAtal de 1968 fomos recebidos com uma ‘anormalidade’, que ainda hoje, passados 41 anos, me causa arrepios . De Luanda tinham-nos enviado o ‘Conjunto João Paulo’ para nos confortar.

Nunca os esquecerei. Nem os mortos, nem os vivos.

PERFIL

Nome: Custódio Pouseiro

Comissão: Angola (1968/70)

Força: Companhia de Caçadores 2356

Actualidade: 63 anos. É empresário

Custódio Pouseiro, Angola (1968-1970)
 

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“Vi o ódio. O colono tinha de ir embora”

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Soldados portugueses, desfardados. A guerra já não era a mesma em Angola

Cheguei a Luanda duas semanas depois do 25 de Abril. Fogo só em porcos-bravos, jibóias e na carreira de tiro. Mas vi o início da outra guerra.

Fiz parte do Batalhão de Artilharia 6323, um dos últimos a arrancar para Angola. Chegámos a Luanda duas semanas depois do 25 de Abril. Com a confusão gerada pela revolução, só soube para que zona do mato iria ao fim de dez dias na capital angolana. O meu irmão mais velho, que ali vivia, mostrou um ar estarrecido quando lhe disse que ia para Zala (nos Dembos, a escassos quilómetros de Nambuangongo). A fama de Zala era das piores. Explico o que vivi entre o cessar-fogo oficial (Junho de 1974) e o meu regresso a Portugal, em Agosto de 1975.

A emergente falta de actividade castrense atirara-nos para um langor fácil. Fogo só em porcos-bravos, numas jibóias lentas e na carreira de tiro. E acontecia isto num sítio que era um tremendo ‘buraco', explicado à maçaricada num grande painel que anunciava a chegada à Estância de Férias do Zala. O painel era sucinto, mas provou-se depois que já fora ultrapassado pelo tempo: anunciava piscina, golfe, ténis e um tal "stand de tiro ao preto".

Em meados de 74 havia uma paz simpática. Em Zala fazíamos passeatas mascaradas de missões. Havia uma colina a oeste - o morro da UPA, para onde estava virado o Pelotão de Morteiros - mirada com respeito por via de histórias contadas e aumentadas. Um céu era primevo. No ar só quase havia pássaros e borboletas - e uma desportiva DO-27, ou um esporádico e não menos desportivo Alouette. Vi Pumas a levar Comandos. E os correios da Satal e da CTA, que aterravam no meio de grande euforia.

Assim chegou a outra guerra. A outra! Bolongongo, terra de muita chuva e picadas terríveis, é mais um nada no meio de coisa nenhuma. O NAtal de 74 trouxe fogo que se visse, mas a estática gerada entre militares, colonos e futuros dirigentes políticos de pleno direito faz-se sentir como uma névoa enervante.

Os dias mostram que há sempre uma nova realidade, imprevista. Vi caras mostrarem corações. Vi o verdete fosforescente de um ódio palpitante, humidificado pelo medo, em soldados e civis. Acho que, no fundo, já todos se sentiam a escorregar para uma armadilha sem saída. Pequenos abusos e picardias irrisórias anunciavam o fim do respeito pela normalidade até então tida por histórica. A urbanidade terminara de vez e mostrava porque nunca tivera solidez naquelas coordenadas. O colono tinha de ir embora! Angola era dos angolanos e "A vitória é certa!"

DEPOIS DE ANGOLA, A ESCRITA

A cédula militar de António Eça de Queiroz, bisneto do escritor Eça de Queiroz. É jornalista, trabalhou na imprensa, entre outros, no extinto ‘Comércio do Porto e no ‘Expresso'. Tem 57 anos, dois filhos. Reside no Porto. O ex-furriel miliciano em Angola (1974-1975) é autor dos livros: ‘Contos Acrónicos', ‘Eça de Queiroz e os Seus Clones', ‘Porto versus Lisboa' e ‘O Romance Ilegal do Sr. Rodolfo'.

PERFIL

Nome: António Eça de Queiroz

Comissão: Angola (1974/75)

Unidade: C.C.S. (Companhia de Comando e Serviços) do Batalhão de Artilharia 6323 (BART 6323)

António Eça de Queiroz, Angola (1974-1975)
 

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“A guerra marca-nos para sempre”

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Com um Obus 14 em Mansoa, no centro da Guiné, em 1973. Foi a segunda de três bases onde António cumpriu a sua comissão de serviço na Guiné

Da Guiné recordo sobretudo os meus tempos em Cufar – entre o Tombali e o Cantanhez, zonas míticas de uma guerra que não estava perdida

Já com 20 meses de serviço militar em Portugal, fui mobilizado para a Guiné, em rendição individual. Cheguei a Bissau nos últimos dias de Junho de 1972 e fui colocado no CAOP 1 (Comando de Agrupamento Operacional nº 1), em Teixeira Pinto, na zona de acção norte, entre os rios Mansoa e Cacheu. Eu era um alferes miliciano num Comando de Operações que tinha consigo a 35ª Companhia de Comandos (depois a 38ª), mais as três companhias (que rodavam) 121, 122 e 123 do Batalhão da Caçadores Pára-quedistas 12, e ainda o Destacamento de Fuzileiros, no Cacheu.

Não sendo propriamente um operacional, cabiam-me as funções de alferes dos papéis e da pequena logística do CAOP 1. Mas, ao longo dos 22 meses de comissão tive a sorte, ou a pouca sorte, de acompanhar muito de perto o desenrolar da guerra a partir de um comando de operações, inicialmente estacionado em Teixeira Pinto, depois em Mansoa, no centro da Guiné, e finalmente, durante os meus últimos onze meses de comissão até Abril de 1974, em Cufar, no sul. Fui de algum modo testemunha e participante privilegiado do fim do velho império colonial português.

Hoje, da Guiné, recordo sobretudo os meus tempos em Cufar – entre o Tombali e o Cantanhez, zonas míticas da guerra –, com os homens do meu CAOP 1, a C. Caç. 4740 e os pilotos da Força Aérea que todos os dias, desde Bissau, chegavam à nossa grande pista asfaltada de Cufar, com os seus helicópteros e avionetas DO, nos traziam correio e os géneros fundamentais para a alimentação dos aquartelamentos. Em Abril de 1973, estava eu em Mansoa, haviam sido abatidos cinco aviões portugueses pelos mísseis ‘Strela’ que começaram a ser usados pelos guerrilheiros.

O apoio aéreo quase parou durante algumas semanas, mas depois os nossos pilotos passaram a conhecer a natureza dos mísseis e aprenderam a voar de forma diferente, a rapar o solo ou a altitudes superiores a 2000 metros, tornando os mísseis ineficazes. Até ao fim da guerra, em Janeiro de 1974, apenas mais um avião foi abatido pelos ‘Strela’, um Fiat G 91, em Janeiro, pilotado pelo tenente Gil, em Copá, junto à fronteira com a Guiné-Conacri.

Prevalece na sociedade portuguesa e até a entre alguma historiografia recente, a tese, a ideia de que a guerra na Guiné estava militarmente perdida face ao evoluir da situação e superior poder do armamento dos guerrilheiros do PAIGC. Esta tese não corresponde ao que aconteceu no terreno nos anos de 1973/ /1974. É verdade que o aquartelamento de Guileje, no sul, foi abandonado pelo major Coutinho e Lima e os seus homens em Maio de 1973, mas na altura em toda a Guiné existiam 225 destacamentos e aquartelamentos portugueses. Mais nenhum foi abandonado.

GUERRILHEIROS

Numa guerra de guerrilha, como a da Guiné, é fundamental controlar as populações. Ora os guerrilheiros controlavam apenas um terço do território, abrigados em pequenas aldeias escondidas sob as florestas e tinham consigo cerca de 50 mil habitantes. Todos os centros urbanos, vilas e principais aldeias da Guiné tinham aquartelamentos ou destacamentos portugueses e aí habitavam cerca de 500 mil habitantes. Na fase final da guerra, a Força Aérea voou como nunca e os Fiats passaram a bombardear com bombas de 750 libras, mais potente e precisas.

A Marinha continuou a dar apoio fundamental, com as LDG (lanchas de desembarque grandes), LDM (médias), os navios-patrulhas e os batelões de transporte, por tudo quanto era mar e rios da Guiné. O Exército continuou a defender os seus aquartelamentos, a realizar operações – sobretudo com tropa especial – em toda a Guiné. Os guerrilheiros seriam cerca de cinco mil homens, parte deles instalados em quartéis no Senegal e Guiné-Conacri. As tropas portuguesas eram constituídas por 40 000 homens, 11 000 dos quais eram militares africanos.

A solução da guerra era política e não militar. Foi o que aconteceu após o 25 de Abril, embora a descolonização na Guiné, como nos outros território, se tenha saldado por muitas mais mortes e sacrifícios, como por exemplo o fuzilamento de centenas e centenas de militares africanos que haviam combatido ao lado dos portugueses. Em 1973/74, em Cufar, estive por diversas vezes debaixo de fogo, quase sempre sem consequências. Em Cufar, porque tínhamos uma grande pista de aviação, assisti e ajudei em muitas evacuações de militares portugueses feridos em combate na região do Cantanhez. A guerra marca-nos para sempre.

"UM DURO QUE IA A TODA A PARTE"

António Spínola cumprimenta os régulos locais, em Teixeira Pinto (1973). Graça de Abreu está de costas no meio da população, leva a mão à cabeça. Foi um entre muitos encontros entre estes dois homens. Recorda o alferes: "Ele andava de helicóptero por toda a Guiné. Era um homem corajoso e competente. Um homem da cavalaria que cortava a direito. Um duro que ia a toda a parte e que, por isso, se metia em situações complicadas".

PERFIL

Nome: António Graça Abreu

Comissão: Guiné (1972/74)

Força: 35ª Companhia de Comandos

Actualidade: Aos 63 anos é casado e pai de quatro filhos

António Graça Abreu, Guiné (1972-1974)
 

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“É aqui que os homens se tornam irmãos”

A minha guerra

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Estrada de Catió e Cufar, hoje centro de passagem de droga. A pista que serve foi construída para a visita do então presidente Craveiro Lopes

Vivi o perigo e a dor. Vi feridos e mortos. Descobri que não é preciso ter o mesmo sobrenome para se ser da mesma família.

Assentei praça no CISMI, em Tavira, no dia 8 de Agosto de 1963 e fui colocado no BAT. CAÇ. 8 em Elvas, em Janeiro de 1964, e em Lamego, em Junho de 1964 no C.I.O.E. onde tirei o curso de Operações Especiais, vulgo ‘rangers’.

A 11 de Fevereiro de 1965 embarquei, no navio ‘Timor’, com destino ao CTI da Guiné, como fur. miliciano de op. esp. Chegámos a Cufar, no Sul da Guiné, a 2 de Março de 1965, ficando a C.CAÇ. 763 em quadrícula.

Vivi a Guerra no sul da Guiné tendo como adversário e comandante do PAIGC na então Zona 11, no Cantanhez, o ex-presidente da Guiné-Bissau, já falecido, ‘Nino Vieira’. Para falar de uma guerra de guerrilha como a que foi a da Guiné, há que ter a noção do que é uma guerra de guerrilha e as suas componentes. Para o guerrilheiro é essencial o conhecimento do terreno com o apoio da população. Para quem faz a antiguerrilha, é lutar contra o desconhecimento do terreno e utilizar todos os meios para captar a simpatia e dar apoio às populações.

Havia apenas oito dias que tínhamos destruído o acampamento do PAIGC em Cabolol. Eis que o meu grupo de combate tem de partir para Catió, levar o pelotão de Artilharia. Nessa noite, um grupo da milícia do João Bacar Jaló, estacionado em Priame, detecta que a estrada foi minada, pelo que temos de utilizar o sistema de picagem da mesma.

DUAS ‘MENINAS’

Mesmo ao cimo da leve subida, quando a estrada entra no túnel da mata após o vale de capim que separa aquela do cruzamento do Cabaceira, foram detectadas duas ‘meninas simpáticas, blenorrágicas prostitutas Anti/Carro’ que por nós esperavam, para nos ‘fornicarem’ o corpo.

Havia que deitar mãos à obra e rebentar as minas. Deixaram uma cratera que cabia lá um unimog. Toca a tapar o buraco para as viaturas passarem. Trabalho efectuado, viaturas passadas, pessoal em segurança, vai um minutinho para fumar um cigarrito.

Verificámos então como funciona a guerrilha. Altamente organizada e eficiente contra a nossa ingenuidade. Fumando o cigarro, juntaram-se em amena cavaqueira de guerra três alferes, três furriéis milicianos e um milícia de nome Zé Libanês. Conversa animada no grupo quando um clarão aflorou da terra, secundado de um grande estrondo e o grupo foi atirado cada um para seu lado. O Zé, de gatas, dizia: ‘estou ferido!…’

Ouvimos um gemido. Também o alferes Abrantes de Artilharia estava estendido na berma. Perna direita levantada. O pé tinha desaparecido. O artilheiro ali estava a receber os primeiros-socorros. Outro inválido e aos 24 anos!

O cabo de transmissões entra em contacto com o aquartelamento que, de imediato, pede evacuação a Bissau que será depois feita de avião. Há que fazer o transporte para Cufar. O José Pedrosa, cara toda chamuscada, camuflado cheio de terra, oferece-se.

É ASSIM NA GUERRA

Conhecia a perícia do Zé Pedrosa, autêntico condutor de ralis, mas era perigoso voltar só. O Artur Teles, comandante do grupo de combate, decide rapidamente. Acede e manda subir para o unimog o enfermeiro, entregando-lhe uma G3, e nomeia outro soldado, que também salta para a viatura. O Zé entrega a sua G3 ao condutor que sede o lugar e salta para o lugar deste e, com o ferido esticado na caixa, o enfermeiro e soldado segurando o infeliz, arrancam direito a Cufar. É assim a guerra: ou ficamos todos, ou salvamos um.

Chegados a Catió não dá para mais nada: é largar os obuses e correr para o cais, pois há que embarcar para o Cachil na ilha do Como. Temos de fazer a segurança àquele desterro.

É na dor que os homens se tornam irmãos sem consanguinidade. Ao todo foram 34 operações de grande envergadura, 15 emboscadas sofridas, 444 patrulhas apeadas e 135 auto, 36 escoltas diversas, 48 emboscadas e 10 golpes de mão realizados. Operações de limpeza batidas e nomadizações na totalidade de 45.

Quase nove mil quilómetros percorridos a pé, seis mil de viatura e perto de mil de lancha de desembarque. Fui evacuado para o Hospital Militar e operado de urgência a duas hérnias inguinais, devido ao esforço de atravessamento de pântanos, bolanhas e rios de maré.

Em 26 de Novembro de 1966, a C.CAÇ. 763 desembarca em Lisboa. Mortos em combate: 1 sargento, 1 furriel miliciano e 5 praças. Feridos em combate: 2 alferes milicianos, 3 furriéis milicianos e 35 praças. Evacuados por doença: 1 sargento, 1 fur. mil. e 3 praças.

OS MENINOS-SOLDADOS

O dia em que matámos uma cobra na lagoa de Cufar. Na foto, o Fernando, um miúdo sem eira nem beira que tinha embarcado connosco em Bissau para Cufar. Era costume os miúdos andarem com os soldados, pois recebiam de comer e o que vestir. O Fernando e um outro miúdo, ambos com uns 11 anos, deixaram-nos a meio da comissão. Apanharam outro barco, foram atrás doutros soldados, à aventura.

PERFIL

Nome: Mário Fitas

Comissão: Guiné (1965/66)

Actualidade: Casado, pai de duas filhas e avô de um neto, reformado da TAP

Mário Fitas, Guiné (1965-1966)
 

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"A estrada fez-se à custa de suor e lágrimas"

A minha guerra

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O pelotão de Carlos Esteves Vinhal e o aquartelamento onde esteve 22 meses

A obra de asfaltamento da estrada Bironque-Farim fez-se, mas foi preciso correr sangue. O PAIGC tudo fez para impedir a ligação a Bissau.

Com 21 anos feitos em Março, no dia 22 de Abril de 1969 apresentei--me nas Caldas da Rainha, RI 5, para fazer a recruta do curso de Sargentos Milicianos. No dia 5 de Julho fui para a EPA de Vendas Novas para tirar a especialidade de Atirador. Na condição de cabo miliciano tirei o curso de Minas e Armadilhas em Tancos.

Foi aqui que soube que ia para a Guiné. No dia 8 de Dezembro embarquei no navio ‘Funchal' para a Madeira - ia apresentar-me no BAG 2, onde se formou a CART 2732 que integrei como furriel miliciano. Ao meio-dia de dia 13 embarcámos no navio ‘Ana Mafalda' para a Guiné.

A CART 2732 foi para Mansabá, a cerca de 90 km a norte de Bissau, em direcção a Farim. Mansabá era um ponto importante do norte da Guiné, ali confluíam as picadas de Bissorã e Bafatá, bem como a estrada de Mansoa para Farim.

No interior do triângulo Mansoa, Mansabá e Bissorã ficava a importante base do PAIGC do Morés. Em Novembro de 1970 começaram as obras de asfaltamento do troço Bironque/Farim da estrada Mansabá-Farim. O PAIGC tudo fez para impedi--las. Era a única via de ligação a Bissau por terra. Mansabá tornou-se para nós num ponto estratégico, com companhias de pára-quedistas, comandos e artilharia. Dali saíam forças helitransportadas para fazerem operações na zona do Morés, praça-forte do PAIGC.

MORRERAM CAMARADAS

Na sua estratégia de desmoralização de militares e civis, o PAIGC flagelava, quase diariamente, com morteiros, RPG e armas ligeiras os locais dos trabalhos, a povoação e o quartel de Mansabá. Num desses ataques, a 12 de Novembro de 1970, houve 14 mortos entre a população e feridos nas nossas tropas. A estrada fez-se, mas à custa de muito sangue, suor e lágrimas. Morreram cinco camaradas. Alguns dos militares da minha companhia foram feridos mais do que uma vez, mas voltavam sempre com valentia à actividade operacional.

No dia 19, ao fim de 23 meses e dois dias de comissão, embarcámos num boeing dos TAM com destino a Lisboa. Cheguei a casa, nos arredores do Porto, no dia 20 de Março de 1972, à beira de completar 24 anos. Passei à situação de disponibilidade no dia 11 de Abril, ao fim de três anos, menos 10 dias, de tropa.

OS EFEITOS DE UMA MINA ANTICARRO

Durante a noite, guerrilheiros do PAIGC punham armadilhas e minas antipessoais na zona dos trabalhos na ligação de Farim a Bissau. A 6 de Dezembro de 1971, na CART 2732, tivemos dois mortos numa emboscada a uma coluna auto em Mamboncó, na estrada Mansabá-Mansoa, e um condutor ferido pelo rebentamento de uma mina anticarro no Bironque, que destruiu a GMC que conduzia.

PERFIL

Nome: Carlos Esteves Vinhal

Comissão: Guiné (1970/72)

Actualidade: 62 anos; aposentado da Função Pública

Carlos Esteves Vinhal, Guiné (1970-1972)
 

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“Portugal desprezou soldados africanos”

A minha guerra

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Mexia Alves em pé, num barco Sintex, com o qual se chegava ao destacamento de Mato Cão

Quando a guerra acabou, os homens das forças africanas foram fuzilados, presos ou agredidos pelas autoridades locais

"Entrei para a recruta no Quartel de Mafra em Janeiro de 1971, finda a qual fui "escolhido voluntariamente" para me apresentar em Lamego onde fiz a especialidade de Operações Especiais, vulgo, Rangers. Daí fui colocado no Regimento da Serra do Pilar, em Gaia, onde a partir de Outubro de 1971 começámos a preparar o Batalhão, com o qual iria embarcar no ‘Niassa’, a 21 de Dezembro de 1971, rumo à Guiné.

Chegámos e fomos enviados para a ilha de Bolama onde fizemos a IAO, (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional), com vista à adaptação não só ao clima, mas às condições de guerra da Guiné. O meu Batalhão, BART 3873, ficou sediado em Bambadinca (zona leste), e a minha companhia, CART 3492, foi para o aquartelamento mais longe da sede, no Xitole.

Durante os sete ou oito meses da minha estadia no Xitole, tivemos flagelações ao quartel, sem baixas, nem ferimentos entre os militares. Houve uma ou duas emboscadas, sem problemas para as nossas tropas, tendo sido reportadas por informadores algumas baixas no PAIGC.

Fui então enviado para comandar um Pelotão Independente de Africanos, o Pel. Caç Nat. 52, sediado nessa altura na Ponte do rio Udunduma, na estrada Bambadinca/Xime. Era um sítio sem condições de vida, mas onde estive muito pouco tempo e sem problemas. Depois o Pelotão foi colocado no Destacamento de Mato Cão, na margem norte do rio Geba, a meio caminho entre o Xime e Bambadinca, sendo a nossa primeira missão assegurar a navegabilidade desse troço do Geba.

GUERRILHA

As condições de vida eram francamente más: dormíamos em buracos abertos no chão, ladeados de bidons e cobertos de paus de cibo e sem luz. Devo ter estado em Mato Cão cerca de nove meses. Mantivemos uma forte actividade operacional – o melhor "remédio" neste tipo de guerra de guerrilha.

Posteriormente, fui colocado na C. Caç. 15, (Companhias de Africanos), sediada em Mansoa, constituída na sua esmagadora maioria por Balantas, e que fazia operações de intervenção do Batalhão de Mansoa, segurança à estrada em construção de Mansoa/Portogole, e segurança às colunas que passavam para Norte, junto à mata do Morés. Aqui e até ao fim da comissão tive uma actividade operacional muito intensa, com contactos com o inimigo de então, mas graças a Deus sem baixas na nossa Companhia a registar.

CAMARADAS

Regressei a Portugal, em rendição individual, em avião militar em 21 de Dezembro de 1973. Afirma-se, hoje em dia, que a guerra na Guiné estaria perdida militarmente. Não creio. Só motivos políticos justificam tal afirmação. Ainda hoje não esqueço a dedicação e empenho das forças africanas constituídas por guineenses, que honrosamente comandei, e exprimir a minha revolta pelo abandono a que foram votados. Muitos foram fuzilados e outros presos, agredidos, pelas autoridades que tomaram conta da Guiné – desprezados por Portugal.

Quero exprimir a minha revolta pelo ignominioso tratamento dado aos combatentes, não só da Guiné, mas também de Angola e Moçambique, por parte dos governos de Portugal. Há ex-militares que esperam o resultado de processos 35 anos depois do fim da guerra. Se antes como se dizia éramos "carne para canhão", hoje – vivos – somos transparentes.

PERFIL

Nome: Joaquim Mexia Alves

Comissões: Guiné (1971/73)

Força: Rangers

Actualidade: Administrador das Termas de Monte Real, 61 anos, quatro filhos e dois netos

Por:Joaquim Mexia Alves, Guiné (1971-1973)
 

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“Morreram o Praxedes e o Elísio Bravo”

A minha guerra

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‘Staff’ da secretaria do sector S, em Cabinda. José Manuel Vacas está no centro da foto, com óculos

Foi num tiroteio que nos apanhou desguarnecidos numa lavra. Foram atingidos dois camaradas, de Sesimbra e Águas de Moura

Parti a 15 de Abril de 1966 no navio ‘Niassa’, integrado no Batalhão de Cavalaria 1883 – Companhia de Cavalaria 1535. Era alferes miliciano operacional, comandante de um grupo de combate. Íamos fazer operações de reconhecimento para evitar ataques ao aquartelamento e localizar as forças inimigas.

A nossa primeira operação especial foi em Maria Fernanda Zala. Dez dias. Fomos de viaturas pelo Bico do Pato (curvas e contracurvas onde normalmente éramos atacados), mas passámos sem problemas. Deixámos viaturas no aquartelamento de Zala e seguimos a pé para um morro, onde ficámos oito dias. Na véspera da partida fomos atacados com morteiros e rajadas de armas automáticas. Mas não houve baixas.

Na segunda operação especial – Canassala –, que durou oito dias, era necessário limpar a área entre a Beira Baixa e Nambuangongo, onde se começava a abrir a picada do Canacassala. Deixaram-nos na Beira Baixa e começámos a caminhar pelo trajecto onde iria ser aberta a nova picada. Fomos atacados logo no primeiro dia. Um dos guias ficou ferido. Pedimos apoio aéreo e continuámos. Ao fim do quarto dia, verificámos que o outro guia nos estava a enganar. Levava-nos para locais onde o capim era altíssimo. Não havia água e houve quem urinasse e, com um comprimido de Olozone, depois bebesse a urina.

A minha terceira operação especial – Maria Fernanda –, ao longo do rio Dange, prolongou--se meia dúzia de dias. Foi uma operação conjunta com sete companhias, incluindo comandos pára-quedistas e a actuação dos F-16 da Força Aérea. Saímos de Maria Fernanda em viaturas até à missão, onde começámos a seguir o rumo pré-estabelecido para a nossa companhia, enquanto as outras companhias avançavam por itinerários diferentes.

O primeiro ataque foi no primeiro dia, com fogo cerrado. Entretanto com estas caminhadas, o meu joelho inchava e provocava-me dores diabólicas.

No dia seguinte fomos avisados de que os F-16 iam bombardear algures à nossa frente. Cerca de duas horas após terem terminado os voos rasantes dos F-16, avançámos com a percepção de que estávamos numa zona perigosa. O meu grupo ia à frente da companhia.

Caminhávamos por um trilho no meio da floresta quando avistámos uma lavra junto ao rio Dange que terminava novamente na floresta. Dei ordens para as três G3 de cano reforçado ocuparem as primeiras posições, seguidas da MG, e entrámos na lavra em ‘bicha de pirilau’.

DOIS CAMARADAS MORTOS

Começou um tiroteio vindo de todo o lado, até de uma pequena ilha no Dange. Apanhados num sítio plano sem protecção, respondemos mas não conseguimos evitar que o Praxedes (de Águas de Moura) tivesse morte imediata. Uma bala perfurou-lhe o abdómen, roubando a vida ao melhor atirador de morteiros da companhia. Uma bala apanhou também Elísio Bravo (de Sesimbra). Entrou-lhe pelo orifício do ouvido esquerdo e ficou alojada no crânio. Faleceu dois dias depois, na véspera de NAtal. Ficámos muito abalados.

Alguns dias mais tarde, já não aguentava as dores no joelho e segui para o Hospital de Luanda.

A segunda comissão que tive foi para mim uma segunda guerra, totalmente diferente. Fui para Cabinda, para chefe da secretaria do sector S, depois recebi ordem de marcha para Tomboco, para, na qualidade de oficial de reabastecimento, substituir o oficial que o comandante do Batalhão 1903 tinha dispensado. Depois fomos para Santo António do Zaire e, finalmente, Ambrizete, mês e meio antes de regressar a Portugal.

PERFIL

Nome: José Manuel Vacas

Comissões: Angola (1966/68)

Força: Batalhão de Cavalaria 1883 e 1903A

Actualidade: É casado e tem quatro filhos e seis netos. Aos 69 anos, é gerente comercial

Por:José Manuel Vacas, Angola (1966-1968)​
 

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“Era difícil habituarmo-nos à sede”

A minha guerra

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Operação na zona do Burmuleo, em 1969

O meu primeiro contacto com as operações deu-se em Junho de 1968, quando fui enviado para destacamentos em Canjadude e Che-che

Fui mobilizado em rendição individual, destinado à Companhia de Caçadores nº 5, uma unidade da Guarnição Normal do CTIG (Comando Territorial Independente da Guiné), que tinha cabos e Soldados da Metrópole de diversas especialidades. Cheguei no dia 2 de Junho de 1968 (embarquei em Lisboa a 28 de Maio) a bordo do NM Alenquer.

O barco transportava material de guerra e outros materiais para as tropas em serviço na província. Antes, estava no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 2, em Torres Novas. Tinha sido promovido ao posto de 1º Cabo Miliciano, com a especialidade de Transmissões de Infantaria, no dia 18 de Abril de 1968. Fui informado da mobilização, teatro de operações e unidade de destino perto do final desse mês.

A par da preocupação da chegada a um teatro de guerra, havia a expectativa de tomar contacto com realidades, até aí desconhecidas. A ida para a guerra já era como que uma certeza, que se desenrolava desde 1961 , contrariamente ao que o Regime pretendia deixar transparecer que o conflito era um assunto já resolvido, o que a realidade desmentia uma vez que se procedia à formação de mais soldados para aumentar a presença militar nos teatros de operações.

Quando cheguei à Guiné em 1968, com seis anos de guerra já decorridos, havia a expectativa de, no terreno, viver o que já me tinha sido relatado, apesar de muito pouco explícito, como eu próprio o faria ao regressar, como defesa e tentativa de esquecer esse passado recente e sempre presente.

ADAPTAÇÃO DIFÍCIL

Para mim como para todos, mas todos, apesar de muitos quererem mostrar o contrário, estávamos numa terra que, apesar de a sentirmos como Portugal, não era o nosso cantinho, na nossa cidade ou na nossa aldeia. Numa unidade africana, como a minha, o número de metropolitanos era reduzido (seríamos no máximo 50 europeus). Também a rotação do pessoal era frequente, o que poderia originar, um sentimento de não integração, dada a alteração ser cíclica, com a partida de camaradas e a chegada de novos, até que chega a nossa vez. O clima também provocava alterações sensíveis no nosso comportamento, com consequências físicas e psicológicas.

A unidade para a qual fui enviado tinha a sede e o comando em Nova Lamego (actual Gabu) e os grupos de combate a guarnecer os destacamentos de Canjadude, Cabuca e Che-che, todos na Zona Leste.

O meu primeiro contacto com as operações deu-se, ainda no mês de Junho de 1968, quando fui enviado para visitar os destacamentos da companhia instalados em Canjadude e Che-che, aproveitando a coluna que iria retirar as nossas tropas do destacamento de Béli e colocá-las em Madina do Boé (evacuada, posteriormente, em Fevereiro de 1969). Ao longo do percurso, viam-se viaturas destruídas por minas, as crateras abertas pelas mesmas minas e ouvíamos o rebentamento das bombas lançadas pelos aviões, tentando limpar os possíveis locais de esconderijo das forças adversas. Era difícil habituarmo--nos ao novo tipo de refeições (as célebres rações de combate) e à sede constante que nos afligia a todos.

Deixei o destacamento de Canjadude, para onde fora destacada a Companhia em Agosto de 1969, no dia 28 de Maio de 1970, exactamente dois anos após ter largado do Tejo. Regressei no ‘Rita Maria’, um barco civil , que partiu de Bissau a 2 de Junho de 1970. Aportámos em Lisboa no dia 10 desse mesmo mês.

PERFIL

Nome: José Marcelino

Comissão: Guiné (1968/70)

Força: Companhia de Caçadores nº 5

Actualidade: Tem 63 anos, é casado e tem três filhos e dois netos. Vive em Odivelas e é técnico oficial de contas

Por:José Marcelino, Guiné (1968-1970)
 

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"Deixou marcas para toda a vida"

A Minha Guerra

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Fiquei num lugar de má fama: Tomboco. Mas no fim da comissão pude ter comigo a minha mulher e o meu filho. Angola ficou-nos na memória.

Quando desempenhava as minhas funções de furriel miliciano, com a especialidade de vagomestre da alimentação, no depósito de géneros do Quartel de Infantaria Nº 6, no Porto, fui mobilizado para Angola. Fui para Santa Margarida, onde se formou o Batalhão de Caçadores 1903, do qual eu fiz parte na Companhia do Comando C.C.S. com a especialidade de vagomestre do Batalhão, Serviços de Reabastecimentos.

Embarcamos em Alcântara, Lisboa, no dia 18 de Fevereiro de 1967 no navio ‘Vera Cruz' e chegámos a Luanda no dia 27. Permanecemos no aquartelamento do Grafanil durante cinco dias, tendo o Batalhão seguido depois para o Norte de Angola. A Companhia do Comando, C.C.S., à qual eu pertencia na qualidade de furriel miliciano de Reabastecimentos, ficou instalada em Tomboco.

Herança negra

Os primeiros tempos foram difíceis. Sabíamos que o aquartelamento em Tomboco sempre tinha sido um alvo. Os grupos de terroristas atacavam, provocando feridos e mortes entre os militares. As forças militares anteriores tinham tido muitos problemas. Em Julho de 1964, o dia 23 ficou para a História - os terroristas atacaram o Tomboco e raptaram 86 nativos ali residentes. As nossas tropas sofreram um ferido. Dois anos depois, no mesmo mês, a dia 9, uma emboscada a uma coluna de reabastecimento entre Tomboco-Lufico provocou cinco mortos e 16 feridos graves; em Dezembro, a 11, as tropas detectaram um grupo de terroristas composto por 70 elementos, na estrada de Ambrizete- Tomboco, junto ao rio M'Bridge. Na fuga, uns morreram, outros desapareceram.

É evidente que esta memória foi grande motivo de preocupação para todos nós. Mas o nosso Batalhão não passou por estas situações. Tivemos cinco mortos mas devido a acidentes.

Valeu-nos a experiência do nosso comandante coronel Orlando Andrade e do nosso capitão Eugénio Fernandes que já conheciam aquela zona. Faziam a apologia da acção psicossocial por forma a evitar ataques terroristas. Método de sucesso. Tanto Sóbas como a população negra ali existente queriam que passássemos ali toda a comissão militar.

Lembro-me que, no início, quando ia à sanzala comprar os géneros alimentícios, sentia os olhares de total desconfiança dos negros e por muito que eu perguntasse a quem pertenciam os alimentos ninguém me respondia. Então tomei a iniciativa de pegar nos alimentos e colocá-los no jipe com a ajuda do condutor. Foi um trabalho que se repetiu quinze dias. Depois os negros passaram a ir levar os géneros ao quartel, deixando o pagamento ao meu critério. Manifestavam confiança.

Em Janeiro de 1968 fomos transferidos para Santo António do Zaire. Aqui encontrámos mais tranquilidade, de tal forma que tive a oportunidade de poder ter a minha mulher e filho comigo, porque existiam umas casas destinadas às famílias dos militares casados. A minha mulher gostou do tempo em que ali esteve. O meu filho, que ali fez os cinco anos, tem ainda hoje recordações, sobretudo dos dois macacos pequenos que tínhamos.

Fomos transferidos para Ambrizete. Partilhámos uma casa com o meu colega e amigo da mesma Companhia do Comando, C.C.S., furriel Hélder Freire, mulher e filha.

Regressámos no ‘Vera Cruz'. Chegámos a Lisboa a 3 de Junho de 1969. Foi uma guerra sem razão de existir, mas que o Governo daquela época nos obrigava a cumprir. Deixou marcas para toda a vida.

Por:Fernando Dias - Angola 1966/67​
 

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“Um terço do destacamento foi ferido”

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Ao centro com oficiais do Exército, num bote no rio Zambeze

Integrei os fuzileiros como enfermeiro. Entre o horror em Angola, a minha missão foi ajudar os aflitos, curar as feridas da guerra.

Chegámos a Angola no dia 10 de Julho de 1965. Fui integrado no Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 2, como enfermeiro, e fizemos a viagem a bordo do navio petroleiro ‘S. Gabriel’, da Armada, adaptado para o transporte de pessoal. Quando saímos da Base Naval do Alfeite já sabíamos que o nosso destino era Angola. No ano anterior, 1964, fizera o Curso de Fuzileiro Especial, em Vale do Zebro, por imposição militar, pois estava com 31 anos de idade.

Após desembarcarmos, fomos ocupar uma zona militar chamada Belas, a 13 km de Luanda. Recordo a ‘talhe de foice’ apenas as nossas primeiras operações. Na floresta do Maiombe, a norte de Cabinda, passámos o Natal e o Fim de Ano de 1965/66.

ENTRE BALAS E FERIDOS

E foi precisamente à meia-noite do dia de Natal de 1966 que fomos em socorro de um pequeno grupo de soldados do Exército, cercado e atacado perto da fronteira com a Zâmbia. Resolvemos o problema e aprisionámos três guerrilheiros. Depois precisámos nós do Exército numa picada a caminho do Clubombo – a minha viatura caiu em cheio numa emboscada. Catorze fuzileiros foram feridos. Uma indígena a quem havíamos dado boleia ficou pendurada na viatura, morta. O meu banco, ao lado do condutor, ficou com 8 buracos de bala.

Foi também no rio Zambeze que a nossa lancha foi violentamente atacada a partir das margens. Ainda no interior das matas dos Dembos, o nosso destacamento enfrentou uma das piores situações de guerra. Fomos atacados às 6 da manhã. Os guerrilheiros recuaram e desapareceram – mas às duas horas da tarde sofremos o mais terrível dos combates. Feridos por todo o lado, dois em estado grave, estendidos no chão. Lembro-me que gastei hemostáticos, injecções para as dores, de ter montado balões de soro, posto garrotes e pensos. Alguns fuzileiros não estavam feridos mas sim agitados. Dei-lhes calmantes, via oral, e gastei o que me restava de ampolas de relaxante muscular.

Cerca de 25 homens foram levados de helicóptero para Luanda, um terço do destacamento. As munições começaram a escassear. Creio que estávamos nos primeiros meses de 1966, quando voltámos às matas, perto do rio Dange. Uma companhia do Exército viera juntar-se a nós. Uma tarde, uma granada defensiva (a tal que espalha estilhaços por todo o lado) explodiu mesmo à frente de um furriel dos Comandos, decepando-lhe os dois antebraços pelos cotovelos e queimando-o até aos testículos.

O relógio que ele tinha no pulso despedaçou-se com o antebraço e atingiu no rosto o 3º oficial do nosso destacamento, cegando-o. Pedi aos fuzileiros que agarrassem o furriel, pois ele corria e saltava, completamente descontrolado e alucinado. Não vertia uma pinga de sangue, pois a alta temperatura do explosivo estancou-lhe as hemorragias. E foi a bater com as pás nos ramos das árvores que um helicóptero, finalmente, baixou até poder aceitar o ferido. Entretanto, escrevi à pressa numa folha de bloco, para os médicos do Hospital de Luanda, a dose maciça que lhe havia injectado, pois a seguir o desfalecimento seria mortal.

Até no horror a luz brilha. Um dia, na floresta do Maiombe, em Cabinda, na lagoa do Tchiquinquati, com 9 km de largura e 14 de comprimento, vi-me, só com a minha bolsa de primeiros-socorros, cercado por 200 guerrilheiros da UPA. O meu bote de fuzileiro estava amarrado a uma pequena árvore, nas margens do lago. Ninguém lhe tocou.

A 24 de Junho de 1967, pelas 18 horas, largámos de Luanda. Eu, a minha mulher e a nossa filha, de cinco anos. A bordo do ‘Vera Cruz’, com o nosso destacamento, vinham mais 1200 militares.

PERFIL

Nome: Almiro Nobre Gregório

Comissão: Angola (1965/67)

Força: Destacamento nº 2 de Fuzileiros Especiais – Marinha de Guerra Portuguesa

Actualidade: Enfermeiro reformado. Casado, dois filhos (Ana Maria já falecida) e uma neta
Por: Almiro Nobre Gregório, Angola (1965-1967)​
 

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“Bombardeados de duas em duas horas”

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Coluna para Nova Lamego. Um momento de pausa antes. À frente, o motorista africano.

A operação mais complicada foi a ‘Duas Quinas’. Fomos atacados até ao raiar do sol. Mas, mais do que as memórias, são os amigos que perduram

A 8 de Janeiro fui forçado a abandonar os estudos em Coimbra para frequentar o 1º ciclo do Curso de Sargentos Milicianos, na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Tirei a Especialidade de Transmissões de Infantaria, em Tavira, mas fui parar ao RI 8, em Braga, para dar instrução a recrutas do contingente geral. Fui mobilizado em rendição individual para a Guiné. Embarquei já Furriel Miliciano no navio mercante ‘Arraiolos’, que transportava material de guerra.

Cheguei à Guiné nos primeiros dias do ano de 1970. Tinha por lema "viver um dia de cada vez e pensar que o dia seguinte seria certamente melhor do que o anterior". Ajudou-me nos dois anos e seis dias de comissão.

Ia para o Olossato, cabia-me a Companhia de Caçadores 2402, que estava próxima da mata do Mores – local perigoso.

No dia 6 de Fevereiro de 1970, às 18h50, tive o meu baptismo de fogo. Um grupo inimigo flagelou com morteiro 82 e armas ligeiras automáticas a povoação e o quartel do Olossato. Os militares escaparam ilesos, mas na povoação de etnia balanta, onde se realizava um casamento, morreram sete pessoas, 36 ficaram gravemente feridas e 55 tiveram ferimentos ligeiros.

A minha estadia na Companhia foi curta, pois ao conferir a carga de material de transmissões verifiquei que havia faltas. Vim a Bissau, cumprindo as ordens de quem não soube ter o material à sua guarda.

Chegado a Teixeira Pinto, só com a boa vontade dos elementos das companhia locais foi possível recuperar a totalidade do material. Tive de ir sozinho, com um motorista, num jipe a Jolmete (local onde, em Abril de 1970, seriam degolados três majores e um alferes).

O MEU ‘PASSAPORTE’

Em 24 de Abril de 1970 regressei a Bissau com a Companhia de Caçadores 2402 em fim de comissão. Na informação prestada pelo Comandante ao Comando-chefe, ficou esquecida a minha odisseia em busca dos rádios perdidos. Perdidos por ele.

Tive ‘passaporte’ Canjadude Companhia de Caçadores 5, a C. Caç 5. Apanhei uma lancha particular do cais de Bissau com destino a Babadinca.

Já navegávamos pelo rio Geba quando o comandante da lancha disse aos militares para se esconderem debaixo de oleados. A coberto da noite, a lancha fazia descarga de mantimentos para o P.A.I.G.C.

Cheguei à C. Caç 5, Companhia dos Gatos Pretos (Justos e Valorosos). A Secção de Transmissões era constituída por 10 a 15 elementos. Comandei-a durante cerca de 19 meses.

‘DUAS QUINAS’

A operação mais complicada foi a ‘Duas Quinas’, em 17 de Abril de 1971, quando a C. Caç 5 retomou o aquartelamento do Ché-Ché com mais dois pelotões da C.Art. 3332. Chegados ao Ché-Ché, retiraram-se todas as armadilhas existentes no Cavalo de Frisa (porta móvel constituída por arame farpado e madeira) e a única viatura que entrou para dentro do aquartelamento foi a Mercedes Benz (viatura de Transmissões).

Estava a começar a escurecer e ainda se encontravam o Cabo Silva e o Cabo Viriato em cima das árvores a fixar as antenas para o emissor-receptor AN/GR-C9 – que iria ser o nosso meio de comunicação com Canjadude – quando se ouviram rajadas de metralhadora. Respondemos ao fogo com tiro de morteiro. Tudo voltou à normalidade. Duas horas depois, novo ataque. Desta feita, com armamento mais pesado e de duas em duas horas, até ao raiar do sol.

Saí de Canjadude, em fim de comissão, no dia 4 de Dezembro de 1971. Na noite de 6 de Janeiro cheguei a Figo Maduro.

Na Guiné fiz amizades que ainda hoje perduram.

PERFIL

Nome: Alberto Antunes

Comissão: Guiné (1970/72)

Força: Companhia de Caçadores 2402 e Companhia de Caçadores nº 5

Actualidade: Engenheiro aposentado do departamento de Física da Universidade de Coimbra. É casado, tem dois filhos e duas netas
Por:Alberto Antunes, Guiné (1970-1972)
 

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“Estivemos isolados durante dez meses”

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Junto à sala de convívio dos soldados, no quartel de Bafatá

“Quando me perguntam as diferenças [entre as zonas onde fiz a Guerra], costumo dizer: o Cachil seria o inferno e Bafatá o paraíso”

Soldado de transmissões mobilizado para a guerra da Guiné, embarquei em 27 de Novembro de 1963, integrado na C. Caç. 557, no navio mercante ‘Ana Mafalda’. Desembarquei no cais de Pidjiguiti, em Bissau, a 3 de Dezembro. Até ao princípio de Janeiro de 64, a C. Caç. 557 foi sendo deslocada por fracções para Catió, a fim de integrar as forças que iam participar na Operação Tridente.

No dia 23 de Janeiro de 1964, partiram de Catió uma lancha pequena de desembarque, uma lancha média e uma lancha de fiscalização, que rumaram ao Cachil, levando a bordo a C. Caç. 557 e o 7º destacamento de fuzileiros, de modo a ocuparem o sector do Cachil.

Começavam os contratempos. No desembarque no rio Cumbijã, com maré baixa, sai, em primeiro, lugar uma secção de fuzileiros, homens treinados a andar no lodo. Os primeiros três ou quatro conseguiram alcançar terra, mas os dois seguintes ficaram atolados. Quase submersos, foram puxados com uma corda para um bote de borracha (zebro). Os fuzileiros em terra cortaram e partiram vários ramos de árvores e conseguiram fazer um improvisado cais, onde todos os militares desembarcaram.

Percorridos cerca de 500 metros, seguiu-se uma bifurcação. O capim era muito alto e, para não sermos surpreendidos pelo inimigo e de modo a facilitar a nossa progressão, os fuzileiros atearam lume ao capim. Foram ouvidos alguns disparos, mas notava-se que eram tiros de aviso. A noite aproximava-se, mas alcançou-se a zona da mata do Cachil. No local onde o capim ardeu, cavámos os abrigos e lá pernoitámos duas noites.

A 26 de Janeiro, ocupámos a pequena mata do Cachil, onde construímos o quartel, e lá permanecemos, naquele isolamento, dez meses e uma semana. O resto da comissão foi passada em Bissau e Bafatá. Quando me perguntam as diferenças, costumo dizer: o Cachil seria o Inferno e Bafatá o Paraíso. A 29 de Janeiro, sofremos a única baixa em combate: o soldado João A. Bicho, natural de Fortios, Portalegre, que hoje repousa no cemitério de Bissau, talhão militar campa 670. A C. Caç. 557 passou 55 dias contínuos, entre 23 de Janeiro de 1964 e 17 de Março, tendo como alimentação apenas a ração de combate.

O regresso também teve uma marca de guerra. É que três dias antes do embarque, e depois de se ter feito todo o espólio do material de guerra, recebemos uma ordem para participar numa última operação.

A nossa revolta foi um não unânime. O capitão mandou formar a companhia para nos dizer: "meus amigos e camaradas, que tive a honra de comandar ao longo destes dois anos. Vós sois, ainda, neste momento, militares. E a recusa a uma ordem do CTIG resulta em que todos, sem excepção, vão para o forte de Elvas ou coisa parecida. Mas se até aqui não fomos heróis, não é agora que o vamos ser. Sigam já e em ordem e levantem o vosso material." A ordem foi acatada e cumprida por todos. A missão foi de apoio. Era mais para dar força moral aos novos camaradas, que chegavam.

O regresso a Bissau foi rápido. Em Bambadinca, embarcámos no barco ‘A Bor’ para Bissau. Nem ordem tivemos para nos despedirmos dos amigos. Enfiados no Niassa, atracámos no cais da ferrugem, em Lisboa, a 3 de Novembro de 1965, onde os meus dois sobrinhos e as minhas duas irmãs me esperavam e felicitaram, abraçaram, beijaram e abonaram.

PERFIL

Nome: José Botelho Colaço

Comissão: Guiné (1963/65)

Força: Companhia de Caçadores 557

Actualidade: Casado, com uma filha. Tem 67 anos. Trabalhou como técnico metalúrgico na indústria açucareira e está reformado.
Por: José Botelho Colaço, Guiné (1963-1965)
 

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“Vivia-se em estado permanente de alerta”

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No Destacamento do Cheche, na distribuição do correio: os famosos aerogramas, que traziam notícias de familiares e amigos

O dia mais marcante foi quando assisti ao rebentamento de uma mina que tirou a vida ao senhor major de engenharia pedra e a dois furriéis

Concluído, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, no 1º trimestre de 1967, o Curso de Oficiais Milicianos, e após ministrar uma recruta no Regimento de Infantaria de Viseu ( RI 14), fui mobilizado, em Junho desse ano, para uma comissão de serviço na Guiné-Bissau, em rendição individual. Nos primeiros dias de Agosto, embarquei no navio ‘Alfredo da Silva’.

À chegada, tinha à espera um representante da Companhia Geral de Adidos, posteriormente Depósito Geral de Adidos, que me conduziu ao respectivo Aquartelamento, localizado em Brá. Fui substituir um Alferes Miliciano, de Coimbra, que, quando regressou à Metrópole, desempenhava as funções de Oficial de Justiça. Embora fosse de Infantaria e não tivesse qualquer formação académica em Direito, julgo que, com trabalho e muitas trocas de impressões com camaradas, desempenhei, durante três meses, com rigor e competência as funções.

Neste período, a adaptação foi relativamente fácil, pois, apesar das agruras do clima e da ausência dos entes queridos, as privações eram quase nulas. Chamo a esse período "a guerra da caneta". Como não foi possível a minha permanência definitiva em Bissau, em Dezembro de 1967 fui colocado na CCAÇ 5 (Companhia de Caçadores 5), uma Unidade constituída, essencialmente, por africanos. Embora houvesse tabancas, feitas de madeira e capim, as instalações eram subterrâneas (os chamados abrigos), cavadas no solo e com cobertura à base de troncos de madeira. Vivia-se em estado permanente de alerta, pois, quase diariamente, o sítio era fustigado com tiros de morteiro, provenientes da margem esquerda do rio Corubal.

PALCO DE GUERRA

Felizmente, o rio, em frente ao Destacamento, era largo, pelo que os ataques redundaram em fracasso. As missões militares, incumbidas ao Destacamento, além de patrulhamentos na zona, limitavam-se a patrulhar e a "picar" a estrada em terra até Canjadude, no sentido de detectar minas anticarro, aquando das colunas de reabastecimento ao Cheche e/ou a Madina do Boé, e a participar, como reforço, nas deslocações a este último Aquartelamento.

Após ter cumprido uma comissão de serviço, no mato, de mais ou menos 13 meses, repartida pelo Cheche (mais ou menos 11 meses) e por Canjadude (o restante), voltei a Bissau, novamente ao Depósito Geral de Adidos, como responsável pela organização de transportes de regresso dos militares às respectivas Unidades.

Embora não consiga precisar a data, o dia mais marcante, durante a permanência no teatro de guerra, foi quando assisti ao rebentamento de uma mina anticarro, que tirou a vida ao sr. Major de Engenharia Pedra (Oficial de Carreira) e a dois Furriéis Milicianos, também de Engenharia, que se deslocavam ao Cheche, já em fim de comissão, para estudar a possibilidade de uma alternativa à jangada de madeira na travessia do rio Corubal.

Embora ainda tivessem sido transportados com vida, mas muito maltratados, acabaram por falecer a bordo do helicóptero, a caminho do hospital. Um dos furriéis, com as duas pernas quase desfeitas, enquanto lhe prestava, juntamente com o enfermeiro, apoio, virou-se para mim e suplicou: "Estás a ver o estado em que me encontro! Se és meu amigo peço-te que utilizes a tua arma e ponhas fim a este sofrimento." Com o coração desfeito e banhado em lágrimas, tentei confortá-lo e incutir-lhe esperança. Não foi nada fácil.

Regressei à Metrópole, a bordo do navio ‘Uíge’, no início de Setembro de 1969. Cumpri uma comissão de serviço de 25 meses.

PERFIL

Nome: Armando de Oliveira Alves

Comissão: Guiné-Bissau (1967/69)

Força: Companhia de Caçadores nº 5

Actualidade: Reformado da Banca, em 2006, com a categoria profissional de Director. Tem dois filhos, ambos a residir no Brasil, e uma neta
Por: Armando de Oliveira Alves, Guiné-Bissau (1967-1969)​
 

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“Havia mortos e feridos. Só eu estava bem”

A minha guerra

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A plantar alfaces, por brincadeira. Um dos ‘agricultores’ era regente agrícola

No início da década de 70 vi a guerra de perto na Guiné. Em terra muito pobre, de gente mais pobre ainda, vi matar e vi morrer.

Fui mobilizado em rendição individual para uma companhia de nativos. Cheguei no dia 21 de Julho de 1970. Guiné era uma província muito pobre. Bissau, a capital, era uma cidade esburacada, suja e para qualquer lado que olhasse só via fardas militares.

No dia 2 Agosto estava em Canjadude e, no dia 3, uma viatura que integrava uma coluna militar para Nova Lamego ( Gabu), fez explodir uma mina anticarro da qual resultaram dois mortos e vários feridos. De entre os feridos, destaco o ex-furriel Moura, que tinha chegado comigo na véspera. Foi um choque terrível. Mas este não foi o único dia trágico.

DIAS TERRÍVEIS

A noite de 15 de Novembro desse ano, quando me encontrava em Nova Lamego, destacado com o pelotão, foi muito violenta. A nível de tropa e população civil tivemos alguns mortos e imensos feridos. Recordo que acompanhei à enfermaria um soldado e só deparava com feridos deitados no chão. Também não posso esquecer quando me encontrava em operação no Chéche.

Por volta das 20 horas fomos atacados com armas ligeiras e roquetes. Por pouco tempo. Mas próximo da meia-noite tivemos fogo intenso, agora com morteiros e canhões. As granadas rebentavam por todo o lado. Perto encontrava-se uma viatura com combustível. Receei que se fosse atingida. Seria uma catástrofe. Felizmente não aconteceu nada. Neste ataque, apesar de fortíssimo, tivemos apenas um morto. Por volta das quatro horas da manhã sofremos novo ataque, em tudo semelhante ao da meia-noite.

Meses mais tarde, em Agosto de 1971, quando nos preparávamos para entrar no aquartelamento, sofremos uma emboscada. Salifo Embaló, o soldado africano que ia à minha frente, levou um tiro na cabeça e caiu como se fosse uma cobra – enroscado. Atrás de mim, outros dois soldados gritavam com dores. Tinham sido atingidos pelo inimigo. Só havia mortos e feridos. Eu era o único que estava bem.

Via na minha frente, a escassos metros, as balas do inimigo. Calei a minha arma. Queria que o inimigo pensasse que me tinha abatido. Precupava-me também em não me deixar apanhar, corpo a corpo, podia ser esfaqueado. A noite estava clara. Podia ser surpreendido pelo inimigo. Os primeiros minutos foram difíceis. Para me proteger e proteger os outros tive de manter a calma.

Recordo que, na noite de 11 de Fevereiro de 1971, no ataque da meia-noite, caiu próximo de mim uma granada de morteiro. Encheu-me de terra. Larguei a arma e percorri o corpo com as mãos para me certificar se tinha sido atingido por algum estilhaço. Com toda a sorte do mundo, saí ileso.

A guerra é o escárnio da vida. O ódio está sempre presente. Mata--se sem se saber bem porquê.

AMIZADES

Lembro estas situações sem rancor ou ódio, embora não concordasse com a guerra. Tive até momentos que lembro com alguma saudade. Lembro os soldados africanos, de quem gostei muito. Ao que parece, a maioria foi morta após a saída dos portugueses.

Fazem-se irmãos? Talvez. Há uma aproximação muito grande. Em Canjadude, onde estive, vivíamos um clima de verdadeira amizade fraterna. Aqui quero realçar o comandante da companhia, capitão Arnaldo Costeira – militar de carreira, humano e interessado pelos problemas dos outros. Lembro-me de que permitiu que um furriel mecânico, castigado numa outra companhia e colocado na CCaç. 5, recebesse a visita da esposa.

A minha guerra terminou no dia 14 de Julho de 1972. Regressei num avião do exército.

PERFIL

Nome: Alberto Pereira Caetano

Comissão: Guiné (1970/72)

Unidade: Companhia Caçadores nº 5

Actualidade: 62 anos, residente em Marco de Canaveses, reformado da Banca. Continua a elaborar pareceres na sua área profissional. É casado e com dois filhos.
Por: Alberto Pereira Caetano, Guiné (1970-1972)​
 

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“Ficava sempre um rasto de tristeza e revolta”

A minha guerra

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Éramos uma família de cerca de trinta pessoas. Aprendi a rir e a chorar quando estava em causa só valores humanos. Fiquei um homem melhor.

Ao fim de 15 meses de serviço militar cumpridos na Metrópole, e quando menos esperava - pois não era normal para um atirador de Infantaria com esse tempo ser mobilizado -, surgiu a notícia... o furriel Penha fora ‘sacado' para cumprir comissão em rendição individual no território da Guiné. Destino: Companhia de Caçadores 5, localizada na zona leste, em Canjadude.

Embarquei no navio ‘Niassa' no dia 25 de Março de 1970. As primeiras impressões quando desembarquei foram de curiosidade e solidão, pois fiquei sozinho em pleno cais com uma mala de cada lado, e se não fosse a boa vontade de um lº cabo delegado em Bissau que me levou ao quartel-general no seu jipe penso que ainda lá estaria. Senti-me a Linda de Suza, aquela da malinha de cartão.

Até chegar a Nova Lamego, vulgo Gabu, foi um turbilhão de emoções, tais como a minha estreia de voo a bordo de um imponente Dakota que ao começar a trabalhar deitava pelos motores chispas de fogo e muito fumo. Por fim lá cheguei ao Gabu, onde teria que aguardar por uma coluna da minha Companhia para me escoltar até ao destino dos meus próximos dois anos.

Nessa mesma noite, na companhia do alferes Martins, fomos beber umas cervejas enquanto ele me inteirava daquilo que me esperava. De repente um estrondo enorme, era o primeiro ataque de foguetões a Nova Lamego. Pela primeira vez, senti o verdadeiro sentido da guerra.

No dia seguinte lá chegou a coluna que me iria levar ao meu destino. Assustei-me ao vê-los chegar cobertos de pó, armados até aos dentes, embrulhados em mosquiteiros camuflados e no meio de uma algazarra constante, mas depois percebi que aquela euforia era porque eles vinham à cidade ver familiares e falar com as suas ‘bajudas'. Lá nos pusemos a caminho, onde, ao fim de 25 km, fui recebido por uma tabuleta com a inscrição ‘Termas de Canjadude', o que me levou a questionar se não se tinham enganado no caminho.

Os tempos seguintes foram de conhecimento do ambiente e dos usos e costumes. Hoje, sinto-me gratificado por ter aprendido tanto da vida em tão pouco tempo. Éramos uma família de cerca de trinta pessoas. Acho que fiquei um homem melhor.

Vivíamos o dia-a-dia sem projectos de futuro. Os dias iam correndo, uns melhores outros piores e outros sem classificação. Estes aconteciam quando tínhamos contacto directo com aquilo que não queríamos, a guerra.

Eram as minas, eram as emboscadas, eram os ataques ao aquartelamento e, aí sim, ficava sempre um rasto de tristeza e revolta porque às vezes se perdiam vidas e outras ficavam inapelavelmente afectadas. Mas as rotinas voltavam, como voltavam os jogos de futebol, as noites loucas no Chat Noir (uma espécie de pub que nós tínhamos construído e decorado). Era aí que nós consolidávamos a nossa união e a nossa amizade recorrendo a petiscos e a uns bons whiskies que por vezes faziam daquele espaço um improvisado dormitório.

No dia 31 de Março de 1972 regressei. Sem sequelas mas com uma revolta que questionava o porquê de tudo aquilo. Talvez o dia mais marcante deste percurso tenha sido o dia do meu embarque, o dia em que vi aquela figura pequena e aparentemente insensível chorar pela primeira vez... era o meu pai.

PERFIL

Nome: Germano Penha

Comissão: Guiné (1970/72)

Unidade: Companhia de Caçadores 5

Actualidade: Tem 62 anos e é bancário. Casado, tem uma filha com 31 anos e um neto com 1 mês
Por: Germano Penha, Guiné (1970/72)​
 
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