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O Velho Senhor

helldanger1

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por:Carlos Castanha

Decididamente hoje não estava nos seus melhores dias. Aliás nos últimos tempos tinha tido vários destes acessos de má disposição e mau humor, juntos com uma melancolia que não conseguia bem explicar. Mas, desde a Lua de há dois meses, quando lhe haviam morto o seu fiel escudeiro, que assim tinha ficado. Sofrera o desgosto da perda de um dedicado companheiro, a quem tinha ensinado quanto sabia da vida e tentado preparar para lhe suceder no domínio dos arredores. Depois, encontrara, por chaparros e matos velhos, marcas evidentes de machos novos, dispostos a contestar-lhe os direitos de padreação na próxima época de cio, o que o tinha deixado alarmado. Não que se sentisse velho, mas na verdade ia para os nove anos, o que, para a família, era já uma idade respeitável. Mesmo o pai, que não conhecera, não tinha atingido tanto ano. Contara-lhe a mãe, que o criara com tanto desvelo e sapiência, que o pai tinha sido entalado num gancho clandestino, fora de época, aos cinco anos.

Desde que se emancipara fora sempre um vagueante solitário, percorrendo os vales e serranias de muitos quilómetros em redor, sem procurar constituir família certa, nem coberto para mais que alguns dias. É claro que tinha uma vasta descendência povoando as terras, mas deixava os cuidados da criação às fêmeas que escolhia para mães dos seus filhos. Na altura própria, aparecia reclamando o seu harém, tratava e cortejava todas quantas podia favorecer com os seus genes de boa casta, e depois adeusinho até para o ano, que cá o rapaz vai à vida. Bastava saber-se que ele voltara, e mais não era preciso para afastar qualquer candidato a substituto. Nunca tinha necessitado mais do que entreabrir a boca e deixar adivinhar um susto de navalhas respeitosas ou o retorcido poderoso das amoladeiras, para manter nos seus lugares os possíveis competidores.

Nem valia a pena lembrar aquela escaramuça desapropriada de gente de bem, no cio de há dois anos. Aquele arôcho metido a barrasco que lhe tentara denegrir pergaminhos...! Bem levara para o tabaco que nem se atrevera a aparecer de novo pela clareira da mata. E o maganão sabia da poda, que aquela estocada baixa que lhe tinha atirado ao pescoço e lhe abrira a pele, se não fossem os muitos anos de mato poderia ter sido mais grave, e tinha mesmo levado um tempão imenso para sarar. Ainda hoje, em certas voltas do codilho, sentia arreganhar a cicatriz do ferimento.

 

helldanger1

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Fora então que decidira tomar companhia de serviçal, chamando para escudeiro um novato bem constituído de osso e carnes que encontrara chafurdando num lameiro, e que de pronto e respeitosamente lhe dera lugar no banho. Depois começara a seguir-lhe os passos de longe, imitando-lhe os modos e cuidados com que se esgueirava por entre as estevas, ou copiando-lhe as manhas com que entrava num milheiral para uma ceia de milho fresco e leitoso. Parecia ser mais esperto do que saíra, e acabara por ser tempo perdido ensinar um imbecil daqueles. À primeira esparrela caíra que nem um patinho... Verdade seja que o oponente era de respeito e muito saber, mas bem o tinha treinado para apertos desses. Ora se tinha dado com o caçador de tocaia, embora com a sorte do golpe de vento que lhe levara odores às ventas, e tendo na outra noite entrado tão bem a vento que nem preciso fora chegar-se muito para o saber à coca, para quê fazer asneira grossa logo de seguida? Estava mesmo a ver-se que na noite seguinte o inimigo não estaria no mesmo sítio, e sem saber ao certo onde andaria, não era de se ter precipitado assim..! O resultado fora ter ficado seco com um único tiro, que nem soubera donde partira. Paciência..! Agora, de novo só como tinha vivido a maior parte da vida, assim continuaria até ao fim dos seus dias. Aprendizes, nunca mais...!

E pronto, lá estava de novo o velho solitário, melancólico e rezingão, pateando por entre os matos à toa. A lua só mais tarde apareceria, e o calor que todo o dia se fizera sentir mais a carga de carrapatos que lhe tinham atacado o ninho, davam-lhe uma vontade imensa dum banho fresco. Despreocupado, a vaguear no escuro, fora sem rumo até aquela poça lamacenta, agora quase seca, esfregar-se na lama avermelhada que muito o livrava de parasitas. Dali para o chaparro costumado, numa delícia de coceira, em passos tanta vez repetidos. Hoje nem mesmo com o tratamento habitual se vira livre da bicharada importuna. Era um daqueles dias em que só mesmo uma boa esfregadela com gasóleo daria algum alívio. Mas nesta altura do ano não havia tractores esquecidos pelos campos, em cujos depósitos se pudesse consolar.

 

helldanger1

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De repente sentiu fome. Se bem que ultimamente se tivesse contentado com pouca coisa, o ar da noite, agora já mais fresco, abrira-lhe o apetite. O acaso levara-o ao vale fatídico de há dois meses, e, numa volta da vereda, sentira o cheiro do combustível que tanto apreciava na limpeza. A noite ainda sem lua dava-lhe cobertura para indagar do forte aroma, e quando encontrou uma cova de lama remexida e gordurenta do óleo queimado foi a felicidade suprema. Rebolado, esfregado e recoberto com o acre odor, por ali se quedou tempos esquecidos a gozar a noite.

Sem quase dar por isso, chegara à borda do mato num claro em que pastavam, regaladas, duas fêmeas com meia dúzia de crias. A fome de há bocado voltara. Quando apareceu, tudo parara a comezaina e se chegara para o canto mais afastado da clareira, num silêncio respeitoso para com o senhor que, de ouvido apurado, escutara por algum tempo os rumores da noite. Tudo era silêncio e calma. Os primeiros raios de luar mal davam para iluminar a fiada de grãos de trigo espalhados pelo chão. De nariz no ar ventejara os ares nocturnos, mas apenas as emanações do cereal lhe tinham enchido os sentidos. Só muito tempo passado se decidira a participar da ceia comunitária. Quando começou a comer foi como se tivesse convidado os riscados que avançaram gulosos para a comida. As suas silhuetas rasteiras contrastavam com a mole imensa do patriarca. Estava tão desinteressado de tudo que nem assoprara aos pequenos um assomo de boa educação, e quando o estrondo do tiro fizera fugir toda a bicharada, ele não dera por nada...

Teria continuado a mastigar as suas recordações se o coração, varado pela bala, não lhe tivesse dito que estava morto...!!

 
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