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"E então nós, o que é que vamos tomar?"

florindo

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Passámos uma tarde atrás do carrinho do "serviço café com leite" de Maria Aurora, nos corredores do IPO do Porto. São letras que pesam muito. Há que sorrir.

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"Caiu-lhe o IPO em cima. Arranjei-lhe uma base!" Maria pára o carrinho do "serviço café com leite" num corredor pejado de gente, nos confins do IPO do Porto. E abraça-se a Manuela. Larga-a e esfrega o cabelo rapado da doente do lado. "É fixe não é?" É, ela ri-se. Quer um café com leite. "O abraço vale tudo!", lança Manuela, já Maria, ou "Mariquitas", virou costas e graceja com mais alguém, mais além. Arranca um gorro, "vamos lá arejar esse cabelo que o frio está lá fora!"

Maria também é Aurora. E voluntária da Liga Portuguesa Contra o Cancro, uma das cerca de 400 pessoas que tentam aligeirar o peso de um nome. "Uma pessoa que entra no IPO - a própria palavra é muito pesada - pensa logo que o mundo desabou. A primeira vez é um mundo de desconhecimento". De medo, de desespero. Maria usa a palavra misantropo. Não pela fobia ao ser humano que vai na alma de quem vê o significado de cancro desenhar-se-lhe no futuro. É pela melancolia que percorre as faces nas salas de espera. Para consultas, para exames, para tratamentos. É isto que Maria vê naqueles outros atirados para ali pelo azar.

Tem dias em que guia o carrinho. Com a entrada de Dezembro, colou-lhe enfeites. "Olá! Chegou o Pai Natal! Tenho vodka laranja, café com cheirinho..." "Só se for com bagaço." "Também há, mas só no café com leite." O jogo corre. "Quero a coisa mais forte que tenha aí!" "E umas bolachinhas, que fiz agora umas análises." Com sabor a presunto. "Perante o peso disto, temos que brincar."

Tem outros dias em que Maria está no "acolhimento". Quer isto dizer que anda à cata dos misantropos. Senta-se, muda e queda, na cadeira do lado. E espera. Até que a melancolia se quebre. Ou com um choro, ou com um olá. Só se adianta se vir que alguém parece "um pouco desordenado das ideias", perdido na kafkiana meca da falta de esperança. "Acolher é abraçar." E falar na primeira pessoa do plural. Para esta professora universitária de 52 anos, não há um "eu" e um "tu". Só um "nós". Ou melhor, um "eu" que não vive sem o "tu".

Gostar de si própria para gostar dos outros, conhecer esses outros colocando-se no lugar deles, dispensar o que tem de sobra. Sorrisos. "Chorar?, pergunto-lhes, para quê? Se ainda não sabemos o que vamos encontrar, por que partir da premissa mais negativa?" Fala assim a quem tem uma linguagem assim. A quem não tem, dialoga como eles. Pergunta das alheiras de Mirandela a um trasmontano, recorda Varadero com um cubano. Fala do que for preciso, menos do IPO. E, no fim, se alguém lhe pedir para chorar, mostra-lhe os ombros, sempre a sorrir. E a acumular.

Quando passa a porta, nos dois dias por semana que vive ali, suspira profundamente. E mete-se no mundo do metro e dos autocarros e da vida que não é a de cá de dentro. "É evidente que tenho que me libertar. Não sei responder como o faço." Guarda dias de intervalo entre as idas ao hospital. E recarrega baterias com o feedback que recebe dos doentes. Como daquele jovem cubano que, ainda hoje, lhe manda mails de Havana. "Olha, afinal, sem querer, respondi à sua questão!"

"Vamos, que estão a precisar do café com leite." Esgueira-se nos corredores, olá aqui e ali, naquele dia como sempre, desde há oito anos. "Sim, já sei, sai um café sem açúcar e uma bolachinha Maria para a nossa irmã!"

JN
 
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