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Otelo, de Shakespeare, em cena no Teatro da Trindade

florindo

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Out 11, 2006
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O cheiro a queimado é intenso nos corredores que dão acesso aos camarins. Ao entrar-se num deles percebe-se porquê. Rita Lello está a fazer caracóis no cabelo, com um ferro de frisar. Prepara-se para mudar de pele: daqui a menos de uma hora será Desdémona, uma das personagens principais de Otelo, tragédia de Shakespeare em cena no Teatro da Trindade, até dia 27, pela Academia Contemporânea do Espectáculo/ Teatro do Bolhão - companhia do Porto que agora apresenta em Lisboa a peça encenada pelo japonês Kuniaki Ida.

«O Kuniaki queria uma imagem que levasse a personagem para o ideal de heroína clássica, ao mesmo tempo que fizesse sobressair o seu lado divino. Pensámos na Vénus de Botticelli, com os seus cabelos ondulados», explica Rita Lello, enquanto vai frisando o cabelo com o babyliss.

O processo é moroso, e a actriz aproveita para conversar. Conta que hoje já esteve em palco, a fazer o Felizmente Há Luar durante a tarde. Nada que a atrapalhe. Está habituada a estas mudanças de personalidade. A concentração começou logo de manhã.

Mas não passa por nenhum tipo de mantra ou amuleto. «Libertei-me rapidamente desses rituais, que se transformam muitas vezes em prisões. Não devemos depender disso. Se o trabalho que antecede o espectáculo for feito com rigor, não há risco de nos baralharmos».

Rita veste o grande vestido de Desdémona. São três camadas sobrepostas, todas brancas. «Na ideia do encenador, eles nunca chegam a consumar o casamento. Ela morre virgem, coitadinha, depois daquela desgraça toda».

Entretanto, bate à porta do camarim António Capelo. Será Otelo, marido de Desdémona. Quer passar umas linhas de texto antes de subir ao palco. A boa disposição reina. Brincam um com o outro, usam nomes carinhosos no trato. Já se conhecem há muitos anos, e a camaradagem e respeito mútuos são evidentes. «Conheço o António desde os tempos em que ele trabalhava na Barraca, ainda era eu apenas uma menina que ia assistir aos ensaios», lembra Rita (que é filha de Maria do Céu Guerra, directora de A Barraca). «Depois fomos trabalhando juntos em teatro e televisão».

Se Rita Lello recusa rituais antes de entrar em palco, António Capelo segue alguns à risca. «Chego sempre uma hora e meia antes, para me aclimatar à casa. Gosto de viajar pelo palco, habituar-me ao espaço. Faço-o todas as noites», confessa. «Vir aqui fazer um espectáculo é quase como ir para um ringue de boxe lutar. É preciso aquecer no palco», vai explicando enquanto enche a cara de uma base escura.

A sua personagem, Otelo, é mouro. Apesar de António ter pele escura, uma ajuda à caracterização nunca é demais. Ao seu lado está José Pinto, que vai pintando os olhos de negro. «Já o faço há muitos anos, dá-me intensidade ao olhar», explica. José entra apenas nas primeiras cenas. Mas depois não vai para casa, fica a assistir ao resto do espectáculo. «É mesmo muito bom. Gosto de o ver. Além disso, estamos sempre a aprender. Aprendemos com os mais novos, com os mais velhos... É um privilégio fazer parte desta peça».

Aliás, o mote desta companhia é mesmo a aprendizagem. A Academia Contemporânea do Espectáculo/Teatro do Bolhão é também uma escola, pela qual passaram muitos dos actores que hoje integram o elenco de Otelo. Por isso é tão importante fazer este teatro de reportório, que é também de formação.

Otelo é uma das peças mais representadas de Shakespeare. Escrita há quatro séculos, permanece actual, pelos temas que aborda: traição, ciúme, amor, homicídio, poder, racismo. Desdémona e Otelo são casados e tornam-se alvos de inveja de Iago. O alferes decide plantar a semente da desconfiança na mente de Otelo, sugerindo-lhe que Desdémona o trai com Cássio, jovem tenente de confiança do casal. Otelo fica louco de ciúmes e acaba por matar Desdémona para, minutos depois, descobrir que a mulher nunca lhe tinha sido infiel. É então que, desesperado, acaba com a sua própria vida.

Estão aqui todos os ingredientes de uma autêntica telenovela mexicana. Mas pelas palavras de um dos mais importantes dramaturgos de sempre.

É tempo de entrar em palco. Rita Lello pede a António Capelo que lhe aperte o vestido. Estão, enfim, preparados para mais uma noite de uma tragédia. Todos os dias morrem em palco. E nada lhes dá tanto prazer.

SOL
 
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