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A Ciência na “Sociedade do Risco”

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A Ciência na “Sociedade do Risco”


por joão lobato


Vivemos numa era que tanto receia a ciência como depende dela. O desastre nuclear de Chernoby deixou claro que os novos perigos, além de brotarem do conhecimento humano, são globais e invisíveis. Entretanto, a certeza foi substituída pela incerteza e a interpretação dos fenómenos científicos deixou de ser um monopólio dos próprios cientistas, com os media e os cidadãos a lutarem pelo seu controlo. Para o sociólogo Ulrich Beck, estes são os tempos da “Sociedade do Risco”.


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Depois do acidente com a central nuclear, em 1986, Chernobyl tornou-se numa cidade fantasma (© Tim Suess).

Recuemos até 1986. No mesmo ano em que se dá o acidente de Chernobyl, na actual Ucrânia, o sociólogo alemão Ulrich Beck publica o livro A Sociedade do Risco: Rumo a uma nova Modernidade. A catástrofe, provocada pelo processo de fusão de um dos reactores da central nuclear soviética, ganha dimensões globais e incendeia o debate público, tanto mais porque se estava perante um acidente que deixava de respeitar as fronteiras das nações, em que o distanciamento (o quanto mais longe melhor) deixava de ser um factor de segurança.


Mais do que tudo, a humanidade parece finalmente despertar para o quão frágil é perante o conhecimento humano, nomeadamente o que brota da ciência e da tecnologia. A aura de inocência em torno de ambas já tinha sido quebrada com as bombas atómicas despejadas sobre o Japão, quatro décadas antes. Mas a impotência perante os ventos e a chuva, que carregam consigo a radioactividade de Chernobyl, acaba por colocar em causa a própria noção de progresso.

À luz deste cenário, e em conluio com as preocupações ambientais que a partir da década de 60 tinham começado a despontar, Beck vai propor a existência de uma “fractura” dentro da modernidade, uma ruptura que a desprendeu da sociedade industrial clássica e a levou em direcção a uma nova figura: a sociedade do risco.

Nesta nova era, o império da certeza cede lugar ao jogo da incerteza, com os peritos e os cientistas a perderem a sua imagem de infalibilidade. Só que, ironia das ironias, parece não haver dúvidas de que terá de ser a ciência a solucionar os riscos que ela própria ajudou a criar. Perante esta problemática, assiste-se a uma fuga para a frente, com as incertezas da ciência a tornarem-na num campo de batalha. Um campo de batalha no qual agem forças políticas, económicas e sociais, na tentativa de “manipular activamente” as interpretações científicas, de modo a tentar influenciar os processos de produção e aplicação dos resultados científicos, refere o sociólogo. Dito de outra forma: os cientistas deixaram de ter o monopólio e o controlo sobre o que eles próprios produzem.


Entretanto, os movimentos sociais de protecção do meio-ambiente passam a integrar novos fins e outros temas nos seus discursos de protesto. Já não se trata de lidar com problemas concretos e visíveis, como uma qualquer fuga de petróleo ou uma simples contaminação de rios por causa de uma determinada fábrica, mas sim com riscos invisíveis, capazes de ameaçar as gerações futuras. E aqui, mais uma vez, também será necessária toda uma panóplia de teorias, experiências e medições que só a própria ciência pode fornecer. Quer se queira, quer não, parece que estamos mesmo dependentes do que ela tem para nos oferecer.


Uma “mistura inflamável de ignorância”


Chega agora a vez de colocar uma questão crucial. Nesta era de riscos científicos iminentes e de incertezas, qual é, afinal, o papel a desempenhar pelos cidadãos?


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Em 1946, o atol de Bikini, no oceano Pacífico, foi palco de dois testes nucleares controversos. Ainda hoje, a capacidade para dominar e libertar a energia dos átomos é uma tecnologia bastante temida (© Wikicommons, United States Department of Defense / Victor Rocha).


“Criámos uma civilização global em que os elementos mais cruciais […] dependem profundamente da ciência e da tecnologia. Também criámos uma ordem em que quase ninguém compreende a ciência e a tecnologia. Podemos escapar ilesos por algum tempo, porém, mais cedo ou mais tarde, essa mistura inflamável de ignorância e poder vai explodir na nossa cara.” As palavras, quase proféticas, foram escritas pelo astrofísico e divulgador da ciência Carl Sagan, em Um Mundo Infestado de Demónios.


Este problema, que parece atormentar a sociedade moderna, reside na sua incapacidade para compreender a crescente complexidade e tecnicidade dos assuntos públicos e do mundo da ciência. Cada vez mais se recorre a especialistas e técnicos, o que implica que os cidadãos deixam de conseguir acompanhar e compreender muitas das decisões que são tomadas. Pior: usamos e abusamos de uma parafernália de tecnologias e pequenos gadgets que não compreendemos de todo. E quanto mais dependentes estamos deles, menos conseguimos compreender como é que tudo isso tem origem. Dito de outra forma, estamos embrenhados num jogo do qual desconhecemos a regras. O resultado final, tal como sentenciou Carl Sagan, não pode ser o melhor.


Como sublinha o relatório Rumo às Sociedades do Conhecimento, publicado em 2005 pela UNESCO: “A ciência confronta-nos com questões completamente novas que, com frequência, deixam as autoridades tradicionais (quer sejam governamentais, científicas, religiosas, comunitárias ou cívicas) sem conseguir compreender o significado ou a direcção destas transformações e as suas consequências éticas e sociais. Esta incerteza explica, incontestavelmente, uma parte das dúvidas expressas pela opinião pública a respeito da ciência, tais como as consequências que os seus avanços poderão ter no ambiente e no futuro da nossa espécie. Tal desconfiança é um fenómeno relativamente recente.”


Neste capítulo, o físico português Carlos Fiolhais, no ensaio Ciência em Portugal, de que é autor, descreve com fidedignidade este preciso dilema que enfrentamos: “Se há um século o problema das sociedades menos desenvolvidas era o simples analfabetismo, hoje um problema grave é o analfabetismo científico, que radica na falta de uma boa escola mas tem que ver com o ambiente social. Um cidadão hoje e, ainda mais amanhã, para poder viver melhor, tem de possuir um conhecimento mínimo do mundo e ter uma ideia, ainda que rudimentar, do modo como se adquire esse conhecimento. A cultura científica, que é não só a posse de alguns factos e métodos da ciência mas também o reconhecimento do papel e do valor da ciência, é uma necessidade inalienável das sociedades modernas. Só com a sua ajuda poderá a sociedade, por exemplo, lidar com alguns dos riscos que a atormentam.”


Por outras palavras, o que se pede é que não se use a ciência como bode expiatório para todos problemas que surgem, pois cada um de nós deve ter uma palavra (sensata) a dizer sobre como deve ser usado e aplicado o conhecimento científico que vai sendo adquirido. E para isto suceder, é fulcral uma cultura científica. Todavia, haverá sempre uma dúvida a perseguir-nos, sobre se seremos capazes de acompanhar o constante e desenfreado desenvolvimento científico, com toda a sua rede de complexidades. A resposta ainda não é evidente.


Os holofotes dos media


Outra das constatações a que Ulrich Beck chega prende-se com o papel dos meios de comunicação social em todo este jogo. Estes, ao apontarem os holofotes mediáticos sobre os desastres ambientais e as catástrofes causadas pelos avanços científico-tecnológicos, e ao fazerem dessa exposição um espectáculo, um drama e um entretimento – devido à busca por mais audiências –, acabam por se tornar em agentes de denúncia.


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Um dos maiores feitos científicos de sempre. Em 1969, o módulo lunar da missão Apolo 11 regressa da Lua, levando a bordo os primeiros humanos que pisaram a sua superfície (© Wikicommons, Nasa).

Ou seja, os media acabam por assumir, no contexto da sociedade do risco, um papel crítico de vigilância. No entanto, e para enfrentar esta função de vigilância e alerta, surge igualmente todo um exército de técnicos de relações públicas, peritos e artesãos argumentativos, prontos a desenvolver estratégias de gestão da informação. O fito de tudo isto é somente o de limitar (tendo em conta a opinião pública) os efeitos destrutivos do conhecimento científico.


Ocorre ainda que nem todos os riscos científicos conseguem activar uma mesma ressonância cultural ou uma igual exposição mediática, com o mesmo a poder ser diferente entre países, regiões ou culturas diferentes. O desastre de Chernobyl constitui, aliás, um exemplo dessa diferenciação no tratamento mediático, nomeadamente no modo como os media norte-americanos expuseram a ocorrência. Neste último caso, a culpa pelo acidente estava, acima de tudo, nas deficiências científicas da União Soviética e não na própria ciência, nos riscos que o seu desenvolvimento intrinsecamente comporta.


Entretanto, à medida que os processos de globalização se acentuam, e com os meios de comunicação social globais a integrarem em força esse fenómeno, estes vão possibilitar que os indivíduos (seja onde for que estejam), participem em questões globais, como é o caso dos problemas ambientais. Ou seja, os problemas exteriores vão tornar-se em problemas da esfera privada, do próprio indivíduo. Como frisa o académico Simon Cottle, começamos a entrar no campo da “subpolítica”, com os media a suscitarem todo um conjunto de percepções individuais relativamente aos riscos globais da ciência. Daqui resulta que esses mesmos indivíduos podem vir a exercer uma influência decisiva a nível político, como por exemplo através da participação activa em movimentos sociais de defesa do ambiente, gerando e fomentando uma opinião e uma percepção pública que vai influenciar (pressionar) os decisores políticos, nomeadamente no que concerne às decisões de âmbito científico.


Mas afinal, quem tem razão?


Este incremento participativo do público nem sempre é bem visto pelos cientistas. A controvérsia em torno da biotecnologia, como são exemplos os organismos geneticamente modificados (OGM), as plantas transgénicas e as plantas geneticamente modificadas, acentua esta desconfiança por parte da comunidade científica, dado que estas tecnologias, nomeadamente na União Europeia, sofrem uma grande oposição por parte dos grupos ambientalistas e de uma boa proporção da população, indo em contra-corrente com a opinião prevalecente entre os especialistas da área. A crer no Eurobarómetro de 2010, relativo à área da biotecnologia, a percentagem de cidadãos europeus que acreditam que as suas tecnologias podem trazer efeitos positivos para o futuro cifra-se apenas nos 53 por cento. Em Portugal, o valor desce para os 43 por cento.



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As energias renovóveis e limpas, como é caso da produção geotérmica (na imagem), são as alternativas tecnológicas que temos para substituir a nossa dependência pelos combustíveis fósseis (© Wikicommons, Gretar Ívarsson).

Para juntar ao caldo, as investigações no campo do jornalismo, como as que foram feitas por Walter Lippman e Maxwell McCombs, revelam que os media, ao dar prioridade a determinados assuntos sobre outros, podem influenciar as agendas públicas e decidir sobre aquilo que se pode tornar um problema importante para uma comunidade. Para tornar o caso mais complexo, em muitos países existem camadas da população cuja única forma de obter conhecimentos sobre a ciência provem dos media, o que torna toda a influência por partes destes ainda mais vincada.


Quando estala a controvérsia junto de um assunto científico, os jornalistas procuram relatar os pontos de vista dos diferentes lados da barricada, colocando, normalmente, uma divisória entre o grupo dos cidadãos preocupados e das organizações ambientais e o grupo dos cientistas e peritos. Contudo, esta forma de delinear um conflito é demasiado simplista. Assim sendo, há que ter em conta visões como a da socióloga argentina Ana Maria Vara, a qual chegou à conclusão que “na realidade, as controvérsias públicas por temas científicos não são, como muitos supõem, uma discussão entre peritos e não-peritos, mas sim entre peritos que têm distintas visões sobre o fenómeno em questão, dado que também há conhecimento especializado do lado dos que protestam”.


Ou seja, no fundo, quem parece ter sempre razão é a ciência, estando tudo dependente das opções que se tomem dentro ou através dela. Estamos, portanto, dentro de um teia de pressões e influências em que entram, além dos cientistas, os cidadãos, as organizações não governamentais, os media e outros profissionais da comunicação, os agentes económicos e os políticos, estes últimos enquanto decisores finais.


O melhor mesmo, no entender do químico Jorge Calado, é “não fazermos como as avestruzes e enterrar a cabeça na areia”. Actualmente, ocorrem desastres ecológicos tremendos e, “para os resolver, é preciso estar cientificamente muito bem preparado, pois só a ciência os pode solucionar”. Além do mais, “temos de alimentar as pessoas, temos de lhes dar melhores condições de vida, e para isso vamos correndo alguns riscos”.


Dito de outra forma, há muitas alternativas a seguir, mas nunca haverá caminhos fáceis e isentos de perigos. A ambivalência será, porventura, a sina das sociedades modernas, obrigadas a ter de conviver, em simultâneo, com a sensação de risco e o bem-estar produzidos pelo conhecimento humano. A melhor solução passa por estar atento, por compreender melhor a ciência e as questões que ela suscita, e participar, de forma informada, nos processos de decisão a ela ligados. O silêncio e o ficar de fora nunca foram boas soluções.


É verdade que uma alternativa sem a ciência é sempre possível. Mas, a ser assim, quem nos defenderá dos meteoritos que circulam pelo Universo, semelhantes aos que extinguiram espécies como a dos dinossauros? Quem nos livrará do potencial assassino de pandemias como a gripe espanhola de 1918-19, em que só o vírus influenza foi responsável pela morte, a nível global, de 50 a 100 milhões de pessoas? E a que tipos de ferramentas será necessário recorrer para fazer face às alterações climáticas que se avizinham, naquele que será, porventura, o maior desafio que a humanidade terá de enfrentar nos próximos tempos? Por agora, a melhor resposta continua a ser o conhecimento científico.


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A belíssima e enorme Cratera de Barringer, no deserto do Arizona, nos EUA, tem um quilómetro de diâmetro e foi causada por um impacto ocorrido há 50 mil anos. Actualmente, já estão a ser elaborados alguns planos que permitam evitar, no futuro, este tipo de impactos (© Wikicommons, Shane Torgerson).

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