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O amor vence sempre. Mesmo para uma mãe solteira

kokas

GF Ouro
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A minha filha não pensava no seu pai ausente em todos os recitais de dança e reuniões de pais, como eu fazia. Ela limitava-se a viver o momento. Nunca me tinha ocorrido que podia seguir-lhe o exemplo. A minha missão não era tentar restaurar uma vida que tinha desaparecido.

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O sentimentalismo que existe em mim sempre me fez apreciar a ideia de uma realidade alternativa. Tal como a quinta mítica para onde os pais dizem ter mandado o cão da família depois de este ter conhecido um destino trágico, a realidade alternativa é um lugar onde os finais menos felizes têm uma segunda oportunidade.Quando era uma mãe recente que chorava a perda do meu casamento igualmente recente costumava fantasiar sobre uma dimensão paralela na qual tudo acabava de maneira diferente. O nosso paraíso doméstico podia ter implodido, mas em algum lugar, a apenas um salto quântico de distância, ele corria como previsto.Vislumbrei essa dimensão paralela num fim de tarde de verão em que tinha saído com a minha filha, com 8 anos na altura, para jantar fora. Quando nos encaminhávamos para o carro de mãos dadas no fim da refeição, avistei uma cara familiar no parque de estacionamento. Levantei a cabeça, mas os meus joelhos fraquejaram ao descer o passeio e quase caímos as duas no chão.Era o meu ex-marido, o pai que a minha filha apenas conhecia de fotografias. Por vezes, nas conversas que mantinha comigo mesma ainda me referia a ele como "o inglês". Era bom ter um substituto para o nome que em tempos pronunciava com uma admiração romântica. Tinha o cabelo cortado muito curto. Usava umas calças de ganga justas e uma T-shirt sem mangas que exibia as curvas dos braços esculpidos. Estava igual a quando nos tínhamos visto pela primeira vez: um ninja viril pronto para a ação.Ele olhou para mim por cima do ombro enquanto mudava a fralda do seu bebé no banco de trás da carrinha. Eu esforcei-me por digerir aquilo. Era o género de cena do quotidiano que eu tinha tentado sonhar que existia muitas e muitas vezes durante os meses difíceis depois da partida dele.As memórias regressaram aos solavancos. Lembrei-me das lágrimas que lhe corriam pelo rosto quando partiu para a sua cidade natal do outro lado do oceano, prometendo que nos mandaria ir quando encontrasse um sítio adequado para vivermos. E das lágrimas que correram pelo meu quando, meses mais tarde, ele anunciou que tinha havido uma mudança de planos. De um qualquer cibercafé do outro lado do mundo mandou um e-mail a dizer duas coisas: que não era o momento certo para ser casado nem para ser pai. Enquanto a primeira foi indizivelmente dolorosa para mim, a última foi insuportável.A nossa vida em comum desvaneceu-se num número de telefone descontinuado, numa conta bancária fechada e em várias despedidas no ciberespaço. Li-as vezes sem conta, na esperança de que as palavras se transformassem em alguma coisa que eu conseguisse entender. Isso não aconteceu e nós nunca mais o vimos.Durante a noite, com a nossa bebé a dormir nos meus braços, andava às voltas na sala até de madrugada, a tentar identificar o momento exato em que deveria ter percebido. Enchi um diário com nostalgia, sabendo que, para o bem ou para o mal, a nossa filha não teria qualquer memória daquilo.Naquela noite quente de verão, a porta da nossa hamburgueria local tinha-se transformado num portal para a vida que em tempos tinha imaginado. Estava ali, à minha frente, cruel na sua simplicidade: o inglês, pai feliz e perito, a mudar fraldas. Era uma realidade feita de acordo com as minhas especificações, oito anos atrasada.Entreolhámo-nos em silêncio. Lembrei-me da altura, no início do nosso processo de divórcio, em que ele regressou ao meu país por algumas semanas. Ele queria o resto das suas coisas que ainda estavam no roupeiro do nosso quarto. Embalei-as e guiei até à cidade para entregar as últimas provas físicas da nossa coabitação. Ainda em negação parcial, não conseguia suportar ter de bater à porta do sítio onde ele estava, por isso fiquei aliviada quando a minha melhor amiga se ofereceu para ajudar.Ela encontrou-se comigo na esquina da rua e eu entreguei-lhe os sacos cheios de roupa. Enquanto ela os arrastava pelo passeio fora, eu chorei debaixo do toldo de um café. Caíram as primeiras gotas de chuva e eu senti-me como a protagonista angustiada de um filme, à espera de que o sol aparecesse juntamente com uma mudança no argumento para provar que o amor vence no final. O aroma familiar do perfume do meu ex-marido permanecia no ar, enquanto a minha amiga desaparecia dentro do prédio e o peso da verdade fervilhava no meu estômago com a subtileza de uma maçã envenenada.Pensei ter detetado o aroma daquele mesmo perfume a flutuar na minha direção anos mais tarde, enquanto a minha filha e eu percorríamos o parque de estacionamento. A minha perturbação era palpável e a mãozinha dela reforçou a pressão."O que se passa, mamã?", perguntou ela, fazendo-me cair na realidade.O sentimento horrível e recorrente de que tinha falhado com a minha filha ao não lhe ter proporcionado uma família nuclear, reapareceu com a sua pungência usual de culpa e de mágoa. Não tinha sido culpa minha, eu sabia isso, mas os sentimentos têm a estranha capacidade de se sobreporem ao pensamento racional.Não me sentia mais preparada para responder à pergunta da minha filha do que me sentia para a conduzir abruptamente para cumprimentar o pai dela e o seu novo bebé. Sustive a respiração enquanto examinava o rosto e o corpo dele como se eles me fossem revelar uma resposta.Recordei a maneira cuidadosa como ele embalava a nossa bebé recém-nascida quando voltámos para casa do hospital e como ele saltava pelo quarto como um macaquito contente, contando piadas que me faziam desmanchar a rir. Ele era capaz de dominar uma sala como um veterano do vaudeville, mas não tinha sido capaz de conquistar o mundo com uma mulher e uma filha.Teria ele realmente assentado? Se sim, porquê aqui, na mesma cidadezinha onde se tinha sentido tão sufocado? Para ele, esta era uma terra estranha e a vida que ela representava era totalmente incongruente com os seus sonhos.Ali, no parque de estacionamento, não tinha a certeza se pela passagem do tempo ou por um lapso da memória, alguma coisa estava diferente. Detetei-a no contorno do lábio superior, na postura dele, na curva das suas costas. Havia uma ligeira curiosidade nos seus olhos quando se encontraram com os meus, mas não havia reconhecimento.De repente, percebi. Observei-o mais um pouco para ter a certeza.A minha filha olhava para mim numa expectativa tranquila."Nada de importante", sussurrei.Ela pestanejou e ficou à espera de mais, exibindo as longas pestanas iguais às do pai."Fui apanhada de surpresa", expliquei. "Aquele homem é muito parecido com o teu pai."Ela parou, observando o homem."Mas não é ele", disse-lhe gentilmente. "Eu estava enganada."Arrependi-me imediatamente de ter dito alguma coisa. Pus o braço em redor dos ombros dela e puxei-a para mim. Ela aconchegou--se, mas manteve a cabeça virada na direção dele. Eu desejava poder dar-lhe o mundo.O homem arrumou as coisas na carrinha, sentou-se ao volante e afastou-se, e a minha realidade alternativa afastou-se com ele.Entrámos no carro e arrancámos. Todas as conversas que, ao longo dos anos, tinha tido com a minha filha sobre a ausência do pai dela pairavam à nossa volta, enchendo o carro como espirais de fumo de uma fogueira recém--acendida. Tinha sempre escolhido cuidadosamente as palavras, consciente de que a perceção de uma pessoa pode ser muito facilmente construída em cima dos fundamentos de outra, obscurecendo para sempre uma verdade imparcial.Eu não podia mudar a decisão do pai dela, mas podia trazer o amor e a honestidade ao nosso diálogo sobre o assunto. Apresentei factos digeríveis e esperei que fossem o suficiente. Mas naquele momento, enquanto o carro do homem desaparecia de vista, um facto em que nunca tinha pensado veio à tona e tomou precedência sobre todos os outros: a minha realidade alternativa era só minha.A minha filha não pensava no seu pai ausente em todos os recitais de dança e reuniões de pais, como eu fazia. Ela limitava-se a viver o momento. Nunca me tinha ocorrido que podia seguir-lhe o exemplo. Eu tinha-me refugiado no que poderia ter sido, mas a minha missão não era tentar restaurar uma vida que tinha desaparecido. A minha função era estar totalmente presente na vida que tínhamos pela frente e ver essa estrada não como uma rota alternativa, mas como um caminho digno e viável em que poderíamos confiar.Nunca disse conscientemente a mim mesma que a nossa família de dois membros era incompleta, mas tinha acreditado nisso. A visão radiosa do homem com o seu bebé não refletia a maneira como era suposto ser o nosso mundo, apenas a maneira como eu esperava que ele fosse muitos anos antes.A minha filha e eu sorrimos uma para a outra. Senti a consistência do mundo que nos rodeava e a solidez da nossa família. Pensei em como nos tínhamos rido ao jantar, em como nos iríamos aninhar em casa com um filme de sexta-feira à noite e dançar com os nossos pijamas vestidos. A nossa jornada como família monoparental é rica e gratificante e muito mais real do que uma fantasia de Norman Rockwell.A minha filha, agora com 10 anos, sabe que os pais são importantes e ouve histórias sobre o seu próprio pai, mas também sabe que nem todas as famílias têm um. Os seus desenhos de infância podem não mostrar uma menina com um pai e uma mãe, mas as figuras coloridas e sorridentes presentes nas páginas mostram um forte sentido de família. Tias, tios, primos, avós, amigos queridos e uma mãe peculiar que a ama mais do que tudo na vida. São estas as suas raízes, e são fundas.Acontece que o amor sempre vence no fim, apenas não é da maneira que eu imaginei em tempos.


Eeditora e escritora

Exclusivo DN

 
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