• Olá Visitante, se gosta do forum e pretende contribuir com um donativo para auxiliar nos encargos financeiros inerentes ao alojamento desta plataforma, pode encontrar mais informações sobre os várias formas disponíveis para o fazer no seguinte tópico: leia mais... O seu contributo é importante! Obrigado.

Um namorado demasiado bom para ser verdadeiro

kokas

GF Ouro
Entrou
Set 27, 2006
Mensagens
40,723
Gostos Recebidos
3
Algumas semanas mais tarde, a minha avó faleceu no hospital com a minha mãe e a minha tia ao lado dela. Para as vítimas da doença de Alzheimer, vidas inteiras desaparecem. Para os seus entes queridos, a fé é testada e a perseverança posta à prova
ng5505044.jpg


Enquanto lutava contra a doença de Alzheimer, a avó de Deenie Hartzog-Mislock inventa uma história maluca e a família aprende a amar um homem imaginário chamado Nick Stephanopoulos. Há oito anos, a minha mãe recebeu um telefonema invulgar da mãe dela. "Tens um minuto?", perguntou a minha avó com a sua voz levemente arrastada. Depois disse que a minha tia, de 60 anos, irmã da minha mãe, andava a sair com alguém. A minha mãe ficou incrédula. "A não ser que ela ande a sair pela janela à noite, tenho dúvidas que ela ande a ter esses encontros. Ela vive comigo e com o Rickey", disse a minha mãe. A minha tia, depois de ter sido submetida a uma dupla cirurgia de substituição das ancas, estava a recuperar sob os cuidados dos meus pais. A minha avó continuou: "Bom, a verdade é que este novo cavalheiro está apaixonado pela tua irmã desde o jardim-infantil. Só tem estado à espera que o Ronnie saísse de cena". Ronnie tinha sido o marido da minha tia durante 40 anos. Tinha-a deixado recentemente, mas não da maneira que alguém pudesse esperar. Deixem-me retroceder. As últimas décadas não tinham sido amáveis para a minha tia. Ela tinha-se debatido com o fim do seu longo casamento com Ronnie, que era uma alma perturbada. Ele não era má pessoa, mas lutava contra a dependência, uma situação que consegue moldar-nos, com mãos pegajosas, numa outra pessoa. Com a notícia da sua iminente cirurgia, a minha tia sabia que não seria capaz de cuidar de si própria, assim, depois de muito ponderar, prometeu-lhe que lhe encontraria uma nova casa, ganhou coragem e saiu. Não muito tempo depois, no dia em que o meu tio deveria dar entrada numa comunidade de reabilitação, ele pôs uma arma dentro da boca e matou-se. Agora, ao telefone com a minha avó, a minha mãe disse: "Acho mesmo que estás a imaginar tudo isso. Tens visto demasiada televisão." Mas a minha avó, uma mulher com paciência de Job, ficou irritada com a recusa da minha mãe em acreditar que a minha tia tinha um pretendente. Embora isto possa parecer o enredo de uma telenovela, o fio condutor da história não era fora do normal para a minha avó. Nesta época da vida dela preenchia os seus dias a reler livros e a ver televisão, envolvendo-se nas histórias como se estas fossem escândalos tirados da sua própria vida. Era duplamente difícil saber quando as suas histórias eram verdadeiras devido ao Alzheimer. A doença preservara muitas das suas memórias antigas, ao mesmo tempo que lhe roubara muita da sua capacidade para reter as novas. Por muito estranha que fosse a sua história do homem inventado, era notável o facto de que, num estado tão adiantado da doença, a minha avó se lembrasse de que o meu tio já tinha "saído de cena". Ela tinha-se esquecido de que a minha mãe era uma sobrevivente de cancro, que eu vivo em Nova Iorque e que o meu irmão está casado, apesar da fotografia do casamento exposta no quarto dela. No entanto, a morte do meu tio estava tão fresca na sua cabeça como se tivesse sido ela própria a imaginá-la. Cerca de uma semana mais tarde, a minha avó telefonou com mais pormenores sobre aquele empresário rico. Ele agora tinha um nome: Nick Stephanopoulos. Era grego, um paralelo conveniente com o meu avô libanês. Ela gabava-se de que Nick ia levar a minha tia a Paris, Roma e Londres e que planeava comprar-lhe presentes luxuosos. Era louco por ela, já para não falar de que era um romântico internacional. Os telefonemas para a minha mãe continuaram e tornou-se claro que, apesar de a minha avó não se conseguir sequer lembrar se tinha comido dez minutos depois de lhe tirarem o prato da frente, Nick tinha-se tornado uma figura permanente nas nossas vidas. Ele era tão real para ela como a luz do dia. Chega uma altura em que os cuidadores e a família dos doentes de Alzheimer podem ser aconselhados a adotar a realidade do doente como sua. Isso pode ajudar a estabelecer um sentido de normalidade para o doente, a diminuir a confusão potencial e a acalmar a agitação. Assim, como qualquer outra família compreensiva, trouxemos o Nick para as nossas vidas. Em breve a minha avó começou a perguntar-nos por ele. Ao almoço, enquanto nos púnhamos a par da vida uns dos outros, ela dirigia-se à mesa com grande expectativa: "Então, como está o Nick?" A princípio fazíamos uma pausa, agitávamo-nos nas cadeiras e questionávamo-nos sobre quem seria o primeiro a aceitar as ilusões da minha avó como sendo a nossa realidade. Por fim, a minha tia comentava, "O Nick está... ótimo". Tentávamos manter as respostas curtas, porque para nós eram mentiras. E, apesar de sabermos que fingir era a melhor solução, continuávamos a não nos sentirmos confortáveis em inventar uma vida para o homem. No entanto, a vida dele parecia ser excitante. Uma tarde, quando a minha tia visitou a mãe na residência sénior onde ela vivia, a minha avó disse-lhe, num tom de voz grave: "Tenho de te contar uma coisa sobre o Nick." "O que é?", perguntou a minha tia. "No comboio para Nova Orleães, na semana passada, ele encontrou o Sr. McDaniel, sabes, o revisor." "Mmm." "O Sr. McDaniel acha que tu devias saber que o Nick está envolvido em alguns negócios pouco escrupulosos", disse ela olhando atentamente para a minha tia à espera de uma resposta. "Fico muito contente por me teres dito", respondeu a minha tia. "Não quero estar envolvida com alguém que não seja de confiança e vou falar com ele sobre o assunto." A minha avó ficou satisfeita. A crise tinha sido evitada. Não interessa que hoje em dia a maior parte das pessoas faça aquele trajeto de carro e que o Sr. McDaniel - bom, esse morreu há 40 anos. Estas histórias loucas continuaram mês após mês com cada vinheta a tornar-se uma fonte de divertimento entre nós. Ficávamos maravilhados com a mente da minha avó, que estava restringida pela memória mas liberta pela imaginação. Quando a minha mãe e eu falávamos, eu perguntava-lhe sempre pelo Nick. Ela ria-se e respondia: "Ah, deixa-me contar o que o Nick fez desta vez." Na minha família sempre tivemos muito orgulho em termos a nossa própria linguagem íntima, felizes por sermos uma tribo. Sempre apreciámos a companhia uns dos outros e sempre nos rimos juntos desde que eu me lembro. Mas o Alzheimer tentou roubar-nos isso. A minha avó tinha uma maneira própria de respirar, ofegante, quando algum dos netos entrava no quarto. Era como se tivéssemos entrado para lhe oferecer uma taça da melhor porcelana com os chocolates mais deliciosos. Sentava-se direita, com os olhos brilhantes e inspirava rapidamente como se estivesse tão encantada que nem sequer conseguia expirar. Apenas uma vez é que entrei no quarto e vi a falta de reconhecimento nos seus olhos. Ela simplesmente olhou para mim, sem qualquer sobressalto de alegria. E eu pude ver, por trás dos olhos mortiços, a sua busca pelos cantos do cérebro. Senti que uma mão me apertava o coração e que me tinham dado um murro no estômago. Uma manhã, ao visitar a minha família no Mississippi, acordei ao som de vidros partidos e de uma explosão de soluços profundos. A minha mãe tinha alcançado o ponto de rutura. Ela estava na cozinha, curvada, com os joelhos encostados ao peito, ao lado de uma poça de azeite e vidros partidos. Quando lhe perguntei se estava bem, ela mandou-me, entre gemidos, ficar longe dos vidros enquanto continuava a chorar. O que pode uma filha dizer num momento daqueles? Amo-te? Vai ficar tudo bem? Mas não iria ficar tudo bem. Há anos que a minha mãe e a minha tia observavam a mãe delas a murchar e a transformar-se numa estranha. Elas tinham afixado sorrisos nos rostos e choravam juntas em privado. Mas tinham ficado privadas, despojadas de anos de memórias íntimas entre mãe e filhas. Nick Stephanopoulos ofereceu-nos alguma coisa a que nos agarrarmos. Ele era o riso nascido do nosso sofrimento. Mais de dois anos após ter inventado Nick, a minha avó deu uma queda e partiu o braço. Aos 88 anos, ela não conseguiu recuperar e foi definhando ao longo de cinco semanas. Mas enquanto fazia a sua lenta saída do mundo, ela continuou a contar-nos histórias sobre o Nick. Ela revelou-nos que Nick adorava o filho da minha tia, o meu único primo, e que tinha decidido deixar-lhe uma grande quantia de dinheiro. Segundo a minha avó, o meu primo sabia que um dia precisaríamos de fontes alternativas de energia e o Nick queria ajudá-lo a investir em plantações de soja. Uma tarde, no hospital, perto do fim da vida da minha avó, a minha tia estava escondida atrás de uma televisão, a mexer em cabos. De repente, a minha avó disse: "Fiquei triste ao saber do Nick." A minha tia parou de mexer nos fios e olhou para ela atrás da televisão. "O que se passa com o Nick?" "Ouvi dizer que ele só tem três meses de vida", disse a minha avó. "Lamento." A minha tia, chocada e dececionada, sentou-se calmamente, a calcular o que aquilo significava. Depois de dois anos e meio seria mesmo o fim? Algumas semanas mais tarde, a minha avó faleceu no hospital com a minha mãe e a minha tia ao lado dela. Para as vítimas da doença de Alzheimer, vidas inteiras desaparecem. Para os seus entes queridos, a fé é testada e a perseverança posta à prova. Mas ver a vida ficcional de Nick a desenrolar-se diante de nós como uma tela parcialmente pintada provou que nem mesmo a perda de memória conseguia abalar a esperança da minha avó de que a minha tia iria receber tudo o que merecia. Ao alinharmos no jogo da minha avó mantivemo-nos perto dela, mesmo que ela nos estivesse a ser roubada. Era mais fácil para nós viver uma mentira. Mas com a morte do Nick descobrimos a nossa força como família. Já não éramos fingidores. Éramos crentes. É de amor que se fala nesta coluna, a mais lida do the New York Times. Histórias verdadeiras, contadas pelos leitores. Leia-as no DN aos domingos.


dn

 
Topo