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A esperança brilha como um diamante

R@ul

GF Ouro
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A esperança brilha como um diamante
  • A menina escreve a giz no passeio:
  • Aqui é o inferno e lá o paraíso.


— Já não se vê a Sr.ª Bravoure ir comprar o jornal.

— A Sr.ª Bravoure tem um ar triste. Compreende-se. Depois do que passou nestes seis meses.

— A Sr.ª Bravoure não anda bem. Já não liga ao jardim.

Junto da casa tapada pela sebe, o coro da vizinhança aumenta o seu murmúrio de amizade. Mas a Sr.ª Bravoure não tem cura. Para falar a verdade: não se preocupa com nada. Juntamente com o seu velho, com o seu companheiro, enterrou o prazer de existir no dia-a-dia: a primeira chávena de café tomada lado a lado na varanda com a janela escancarada sobre o jardim, o jornal longamente comentado na cozinha iluminada por um ramo de chagas cor-de-laranja, as compras feitas em amena cavaqueira na mercearia, os serviços prestados a este e àquele, a expedição mensal à cidade próxima para se encontrarem com a neta recém-casada, o cheiro dos crepes à quarta-feira – um hábito herdado das merendas de antigamente, quando o pequeno (que tem agora cinquenta anos) partilhava da vida deles – a missa das seis da tarde na igreja matriz, o telejornal…

Já não tem gosto em nada. Ela, que atravessou com tanta valentia a doença prolongada de Paulo, o seu esposo – “Ainda tem mais três meses, no máximo” prevenira o médico do hospital. À força de cuidados, ela prolongou-os por seis meses – ela, que lhe deu a mão até ao último instante com um sorriso corajoso, não para lhe mentir, mas para ele se não sentir demasiado culpado por lhe tornar os dias pesados, por a deixar pelo caminho. E eis que agora se vai abaixo.

A Sr.ª Bravoure já nem se reconhece e preocupa-se em saber onde estará a energia, a sua diligência por todos conhecida. Um grande buraco negro. De noite, ela sonha: as suas mãos escorregam na parede a que tenta agarrar-se para subir. Não há nada a fazer. Nem as visitas calorosas, nem as cartas de encorajamento, nem as atenções com que uns e outros a rodeavam. Ouve as palavras deles, sim, mas como um murmúrio longínquo. Mordisca com a ponta dos lábios a tarte ainda quente, lê cada vez com mais dificuldade os postais enviados de Itália pelo filho. Tudo fica de fora sem a atingir.

“Desta vez desço um degrau da escada.”

Nunca esqueceu a representação da vida, observada no museu das artes populares por altura de uma visita com o marido (Há quanto tempo isso foi?)

— Sr.ª Bravoure, porque não se anima? Não devia ficar assim sozinha. Venha tomar o café a minha casa, é descafeinado.

— Muito obrigada, D.ª Lara, agora não. Ainda não acabei de separar os fatos do meu Paulo.

A Sr.ª Bravoure sabe muito bem que ainda não é hoje que vai realizar aquela tarefa superior às suas forças. Vai ficar sentada na penumbra e esperar, nem ela sabe bem o quê, e, com certeza, amanhã será igual.

Quem estará a tocar à campainha a esta hora?

“Depois das onze horas, não abra a porta a ninguém”, recomenda-lhe o filho em todas as cartas. “Há por aí pessoas mal-intencionadas”. Mas a campainha continua a tocar e a Sr.ª Bravoure não resiste. Pega no casaco à entrada, acende a luz do pátio e corre até à grade de madeira que já devia ter sido pintada. Uma silhueta um pouco volumosa… uma mulher.

— Maria!

Caíram nos braços uma da outra. Ao apertar Maria contra si, a Sr.ª Bravoure sentiu-lhe o ventre redondo de grávida.

— Maria! Bons olhos te vejam! Não contava contigo a esta hora… Vá, entra!

A Sr.ª Bravoure retomou a sua natural vivacidade para tirar o casaco da jovem, aquecer água, acender as luzes.

— Não tens frio? Posso aumentar o aquecimento.

Segura as perguntas impacientes.

— Comes uma sopinha de ervilhas?

— Dá-me licença que me deite um bocadinho?

— Estás em tua casa, Maria.

Paulo não suportava que nenhuma criança ou Maria se deitasse no canapé da sala de visitas.

— Isso não se faz — protestava ele.

— Mas, Paulo, não faz mal a ninguém e bem vês que ela está cansada!

A Sr.ª Bravoure dirigiu-se mentalmente ao ausente, como faz cada vez com mais frequência. Uma recordação de infância: a avó — que resmungava sozinha na cozinha. “Tenho de estar atenta. Vou acabar por ficar meio maluca.”

Deitada, Maria recompõe-se. Terá sido pela sopa com que se deleitava durante os meses em que partilhara a vida do casal?

O director da escola tinha anunciado, pouco à vontade:

— O Sr. e a Sr.ª Bravoure podiam prestar-me um serviço? Acolher por seis meses uma professora provisória, assegurar-lhe estadia e alimentação. Como sabem, não há hotel na aldeia e eu ficava tranquilo se ela ficasse em vossa casa. É muito jovem.

Disseram sim sem hesitar: o quarto do filho continuava vazio.

Assim surgira Maria: as suas saias floridas, o seu entusiasmo, as buzinadelas, as pilhas de cadernos para corrigir.

— Sr. Paulo, o senhor, que tem uma boa caligrafia, será que podia dar uma olhadela a estes ditados? Ainda tenho uma aula para acabar de preparar para amanhã.

Enquanto preparava a refeição da noite, a Sr.ª Bravoure regozijava-se ao ver Paulo pôr os óculos, munir-se de uma caneta Bic vermelha e consultar o dicionário. Ela sorria quando o ouvia indignar-se:

— Não é possível! Eles estão a fazer de propósito! No meu tempo…

— Ainda têm de aprender, Sr. Paulo. É para isso que vêm à escola. E depois gostam mais de ver a telenovela do que estudar a gramática.

Seis meses, tinha dito o director. Os Bravoure desejavam que a substituição se prolongasse, mas o professor, já curado, retomara o seu posto e Maria, sem trabalho, tinha aceite um compromisso em África.

Tinham-na acompanhado à estação. Riam, mas nenhum dos três se sentia à vontade.

— Escrevo-lhes já amanhã, prometo! — gritava Maria pela janela, enquanto o comboio ia ganhando velocidade.

Cumprira o que prometera durante um ano. Envelopes aéreos chegaram à caixa do correio e mantiveram-nos ao corrente das actividades de Maria. De facto, ela quase não tinha outra família a não ser eles, visto que, depois da morte da mãe, o pai se afastara lentamente dela para se dedicar aos filhos pequenos nascidos de um segundo casamento.

Depois, o correio começou a rarear. Uma breve mensagem pelo Natal “Tenho-vos presentes no meu pensamento”. Talvez tenha uma paixão, sugerira Paulo, com os olhos postos no mapa detalhado da região onde Maria exercia os seus talentos.

— Está sempre ao fogão! — exclamou Maria, ao vê-la na cozinha. — Tinham-me dito numa carta que iam seguindo os locais por onde eu andava, mas eu não…

A Sr.ª Bravoure lembra-se daquela rapariga, de cabeleira loura a esvoaçar quando corria “Vou chegar atrasada! Até ao meio-dia…” e o portão já estava a bater.

Estes jovens são incapazes de acordar a horas – dizia Paulo mal-humorado.

— É porque esteve a trabalhar até à meia-noite com os preparativos para o dia da mãe, Paulo.

A Sr.ª Bravoure pergunta:

— Quando é que a criança vai nascer?

— No princípio de Janeiro. Estou com medo…

É a mesma Maria ousada e sem medo que disse aquilo? A Sr.ª Bravoure observa o rosto marcado pelas manchas da gravidez sob o tufo de cabelos macios, presos por um elástico.

— De que tens medo, Maria?

E é o dilúvio, as lágrimas tanto tempo contidas. Vem tudo arrastado pela corrente: em África, o enfermeiro admirado, amado, desaparecido, o período atrasado, a suspeita de gravidez, o diálogo com esta criança que já mexe e que nada pedira, a anemia e o regresso forçado ao país, a desorientação e, de repente, a esperança “O Sr. e a Sr.ª Paulo”. Na estação, o empregado reconhecera-a e informara-a da morte do Sr. Bravoure. Demasiado tarde para recuar caminho.

— Está-se bem em sua casa.

A Sr.ª Bravoure olha para a sala de visitas aquecida pelas três lâmpadas. Amanhã tenho de substituir o ramo das flores secas. Não, vou ao mercado comprar ásteres.

— Queres crepes para a noite?

— Como é que adivinhou? — Maria admira-se. — A criança vai sentir o cheirinho. É um rapaz. A ecografia é nítida. Posso voltar a ocupar o meu quarto?

*

— A Sr.ª Bravoure recuperou o ânimo desde que a filha — bem, é como se fosse — regressou. Já voltou ao que era.

— Eu reparei. Maria está quase no fim do tempo, não?

— Estou a tricotar um casaquinho para o menino.

*

Murmúrios. Vozes conhecidas. Fadas à volta de um berço.

Na noite de Natal, quando começava com os preparativos para a ceia a duas, Maria perdeu as águas. A Senhora Bravoure acompanhou-a na ambulância até à maternidade da cidade.

— O seu companheiro não está presente para a acompanhar na sala de parto? — perguntou a parteira de serviço.

— É a minha avó que vai ficar ao meu lado — soprou Maria entre duas contracções.

À meia-noite, a Sr.ª Bravoure, extenuada, tem nos braços um minúsculo Paulo aos berros.

Natal. Nasceu-nos um menino.


fonte:contadoresdestorias
 
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