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O Mundo Oculto da Grande Guerra

Antonio A Alves

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O subterrâneo perdido de 1914-1918

A ENTRADA FAZ-SE por um buraco húmido na terra, pouco maior do que a toca de um animal, tapada por um arbusto espinhoso num bosque isolado do Nordeste de França. Vou no encalço de Jeff Gusky, um fotógrafo e médico do Texas que já explorou dezenas de subterrâneos como este. Escorregamos os dois pelo buraco lamacento, penetrando na escuridão. Pouco depois, a passagem abre-se e gatinhamos em frente, apoiados nas mãos e nos joelhos.

Grande_Guerra_Mapa.jpg


O fulgor das lanternas dos capacetes tremeluz ao longo das paredes calcárias empoeiradas do túnel centenário. O corredor afasta-se de nós numa vertente, mergulhando na sombra. Passada uma centena de metros, o túnel termina num pequeno cubículo escavado no calcário e que faz lembrar uma cabina telefónica.

Aqui, logo a seguir à deflagração da Primeira Grande Guerra (há precisamente 100 anos), os engenheiros militares alemães revezavam-se em turnos, mantendo-se em total silêncio e escutando com atenção o mais ténue som produzido pelos sapadores inimigos. Vozes abafadas, ou pás a raspar, significavam que uma equipa de minagem hostil poderia encontrar-se a poucos metros de distância, escavando um túnel de ataque que se encaminhava direito a eles. O perigo aumentava quando a escavação parava e se ouvia o som de sacos ou latas empilhados sem barulho. Sabia-se assim que o inimigo estava a instalar explosivos de grande potência no final do túnel. O mais enervante de tudo era o silêncio que se seguia. A qualquer momento, as cargas podiam detonar e desfazê-los em bocados ou enterrá-los vivos.


Ali perto, numa das paredes do túnel, as lanternas dos nossos capacetes iluminam as inscrições deixadas pelos engenheiros alemães. Cada graffito acompanhado do nome do autor e respectivo regimento encontra-se encimado por um lema: “Gott für Kaiser! [Deus pelo Kaiser!]”. As marcas do lápis ainda estão frescas. Com efeito, a rocha calcária macia da região francesa da Picardia revelou-se ideal não só para as operações de tunelação mas também para os soldados da Primeira Grande Guerra registarem a sua presença com assinaturas, esboços e caricaturas a lápis e, até, complexas esculturas em relevo. Esta arte subterrânea é relativamente desconhecida fora do círculo formado por estudiosos e entusiastas do conflito, bem como autarcas e proprietários de terra, com muitos dos quais Jeff demorou vários anos a tentar travar conhecimento.
 

Antonio A Alves

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As suas imagens trazem à luz do dia o mundo subterrâneo que os soldados foram obrigados a suportar para se protegerem dos bombardeamentos constantes. Deixaram ali nomes, imagens de mulheres, símbolos religiosos, bonecos desenhados e outros ícones

O conflito começou com a cavalaria montada e a confiança, por parte de todos os contendores, de que a guerra terminaria até ao Natal. Em finais de 1914, o avanço alemão estagnara, os exércitos assumiram posições fixas e uma extensa rede de trincheiras prolongou-se desde a costa do mar do Norte até à fronteira suíça. Uma corrida ao armamento conduziu ao primeiro uso generalizado de gás venenoso, guerra aérea e tanques. Na frente ocidental, milhões de combatentes morreram em ofensivas e contra-ataques maioritariamente fúteis.


Os alemães e os seus adversários franceses e ingleses recorreram a técnicas de guerra de cerco que pouco haviam mudado ao longo dos séculos. O objectivo consistia em escavar debaixo das posições fortificadas do inimigo e fazê-las explodir: os contra-ataques eram gorados instalando explosivos para destruir os túneis. No auge da guerra subterrânea, em 1916, as unidades de tunelação britânicas fizeram detonar cerca de 750 minas ao longo de um sector de 160 quilómetros na frente de combate. Os alemães reagiram, detonando quase 700 cargas. As colinas e cumeadas que serviam de pontos de vigilância decisivos ficaram esburacadas como queijo suíço, ao mesmo tempo que as minas de grande dimensão abriam enormes crateras.

No entanto, a guerra de infantaria não se confinou a túneis estreitos. Sob os campos e florestas da Picardia encontram-se pedreiras abandonadas, algumas das quais com capacidade para abrigar milhares de soldados. Numa manhã de névoa, exploramos um desses sítios, localizado ao longo do rebordo de uma falésia da qual se avista o vale do Aisne. Fomos conduzidos até lá pelo proprietário desta quinta ancestral, cujo nome concordámos em não mencionar para proteger a pedreira dos vândalos.

Mostra-nos, com orgulho, uma escultura monumental de Marianne, o símbolo francês da Liberdade, montando guarda à pedreira. Mais à frente, no ambiente lúgubre da caverna artificial, observamos um conjunto de emblemas e memoriais gravados em lembrança dos regimentos franceses que aqui se alojaram. E deparamos com capelas elaboradamente esculpidas e pintadas com símbolos religiosos, insígnias militares e nomes de famosas vitórias dos franceses. O dono da terra leva-nos até uma escadaria de pedra que servia de ligação entre uma das capelas e as linhas da frente de combate, lá no alto. “O meu coração agita-se só de pensar nos homens que trepavam por estes degraus para nunca mais voltarem”, diz ele.
 

Antonio A Alves

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A vida nas pedreiras era, de longe, preferível ao inferno lamacento das trincheiras mais acima. Um jornalista de visita a uma das cavernas, em 1915, observou que “um abrigo seco, palha, alguns móveis e uma lareira são luxos para aqueles que regressam das trincheiras”. Em contrapartida, um soldado francês, numa carta enviada para casa, contava: “Somos devorados por pragas; há piolhos, pulgas, ratazanas e ratos por todo o lado. E o pior é que é muito húmido, o que leva à doença de muitos homens.” Imagens de mulheres proliferam nas paredes da pedreira, incluindo numerosos retratos sentimentais e idealizados.

Ambos os contendores transformaram as maiores pedreiras em cidades subterrâneas, muitas das quais ainda se encontram admiravelmente intactas. Perto da propriedade do dono desta terra, atravessamos os batatais da quinta de um primo seu. Este jovem de pouco mais de 20 anos recuperou a terra para ser usada recolhendo pessoalmente dezenas de morteiros, granadas e munições por deflagrar.


Debaixo do seu batatal, descobrimos um labirinto impressionante, uma pedreira medieval com mais de onze quilómetros, com corredores serpenteantes e tectos altos. Em 1915, os alemães uniram este vasto dédalo às trincheiras da sua linha da frente. Instalaram iluminação eléctrica e telefones, uma padaria e um talho, uma oficina de maquinaria, um hospital e uma capela. Embora cobertos por uma espessa camada de ferrugem, o gerador a gasóleo e as defesas de arame farpado ainda estão no local. Também é possível ver dezenas de sinais de trânsito, pontos de referência essenciais na desorientação deste labirinto de corredores. Sobre as paredes das cavernas, os soldados alemães inscreveram os seus nomes e regimentos, símbolos religiosos e militares, retratos e caricaturas laboriosamente esculpidos.

Entre os mais prolíficos decoradores das cidades subterrâneas conta-se a 26.ª Divisão “Ianque”, uma das primeiras unidades americanas a chegar à frente de combate, depois da entrada dos EUA na guerra em Abril de 1917. Para visitarmos a pedreira onde se aboletaram, em Chemin des Dames, descemos por dois lanços de escadas desconjuntadas até uma caverna nove metros mais abaixo. Passamos horas a explorar o complexo de 40 hectares. As lanternas dos nossos capacetes revelam uma extraordinária cápsula temporal da guerra: corredores juncados de garrafas, sapatos, invólucros de munições de artilharia, capacetes e, até, um conjunto completo de vasilhame de cozinha, com as panelas e os tachos ainda no lugar.
 

Antonio A Alves

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A partir de Fevereiro de 1918, durante seis semanas, estes corredores encheram-se com os sons e cheiros de centenas de soldados. Na sua maioria recrutas inexperientes, entravam e saíam na sua primeira experiência de combate nas trincheiras situadas em cima.

Os homens passaram muitas horas a decorar algumas paredes, não deixando um centímetro quadrado por preencher. Há dezenas de símbolos religiosos e patrióticos. No meio dos nomes escritos a lápis, os meus olhos detêm-se em “Earle W. Madeley”, um cabo oriundo de Connecticut que afirma ter “20 anos de idade”. Segundo os registos, Earle morreu no dia 21 de Julho de 1918, juntando-se aos restantes dois mil mortos sofridos pela Divisão Ianque antes do armistício de Novembro.

Protegidos no subterrâneo, os soldados deixaram expressões pessoais de identidade e sobrevivência. Mas este património que ficou da guerra encontra-se ameaçado. Quando os vândalos tentaram serrar a imagem de Marianne, o proprietário indignado instalou barras metálicas em todas as pedreiras. Na pedreira da Divisão Ianque, um mecânico de automóveis reformado que se dedicou à preservação destas representações construiu pesados portões de metal e instalou cadeados. No entanto, muitos outros locais continuam em risco.

O mecânico fecha o cadeado e caminhamos de regresso ao carro. Pergunto-lhe por que razão uma pedreira cheia de nomes americanos é tão importante. Ele responde: “Quando lemos os nomes daqueles homens, lá em baixo, fazemo-los de novo viver, por um momento.”


 
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