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Regresso às Seychelles

Antonio A Alves

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O atol de Saint Joseph, de propriedade privada, foi outrora explorado para fins comerciais, em negócios de peixe e coco, mas hoje é valorizado
pela sua biodiversidade marinha e colónias de aves marinhas. Em 2014, a ilha foi transformada em reserva natural, dispondo igualmente de uma
área marinha protegida. A sua conservação é gerida pela Fundação Save our Seas.


Nick Page, um amável neozelandês de rosto crestado pelo sol e cabelo preto encaracolado, exibe uma fotografia do animal mais procurado da ilha de Assunção: o tuta-de-faces-vermelhas, uma ave minúscula, de crista à moicano e um tufo de penas vermelhas cor de fogo por trás de cada olho. Desde 2013, uma equipa de vigilantes da natureza capturou com rede 5.278 tutas-de-faces-vermelhas nesta pequena língua de terra com 12 quilómetros quadrados, 400 quilómetros a norte da ilha de Madagáscar. Resta agora apenas uma última ave.

Nick já teve o alvo 5279 ao alcance da mira por duas vezes, mas o azar atrapalhou-lhe o disparo. Na primeira ocasião, um milhafre-preto atravessou-se no ar, assustando a presa; da segunda vez, caiu uma carga de água tempestuosa. Eis as provações por que passa o atirador furtivo. Mas Nick acredita que “com um pouco de sorte e muita perícia no jogo das escondidas”, atingirá o tuta. Estica o polegar, com um esgar sorridente, e diz: “Este é o tamanho do alvo.”
Os tutas-de-faces-vermelhas são aves alegres, com um canto jovial. Endémicas da Ásia, foram introduzidas como animais de estimação por mineiros na década de 1970. Não se sabe ao certo se foram deliberadamente libertados, mas a sua população cresceu e transformou-se numa praga. A razão que conduziu à sua erradicação não é a presença em Assunção, mas a proximidade de Aldabra, a 28 quilómetros de distância.
 

Antonio A Alves

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Aldabra é a mais ocidental das 115 ilhas e atóis que formam o arquipélago das Seychelles e constitui uma das mais importantes reservas naturais do mundo. Entre os seus tesouros biológicos, conta-se um tuta endémico. Os responsáveis pela conservação da natureza temem que, se o imigrante asiático colonizar a ilha, concorrerá com o tuta local e outras aves endémicas, privando-as de recursos alimentares escassos, escolhendo como presas os invertebrados endémicos e introduzindo sementes de plantas invasoras.

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Depois do sucesso alcançado na criação de parques e reservas em metade da área terrestre das Seychelles, o governo e os seus parceiros
desenvolvem actualmente colaboração para proteger 30% do território marítimo de 1,3 milhões de quilómetros quadrados do país.


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Para proteger as jóias, é preciso repelir os invasores, resume a líder do projecto de erradicação, Jessica Moumou. “Os tutas-de-faces-vermelhas já conseguiram entrar uma vez em Aldabra: podem consegui-lo de novo.”
 

Antonio A Alves

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A Fundação das Ilhas Seychelles, entidade gestora de Aldabra, não pode correr esse risco e, por isso, está a resolver o problema na sua origem, em Assunção, ponto de partida dessa colonização.
Os tutas não são os únicos alvos do programa. A foudia-vermelha, de um vermelho tão vivo que parece em chamas, também está a ser erradicada. A exemplo do tuta, também existe uma ave familiar em Aldabra. No início da década de 2000, a foudia introduzida criou uma colónia significativa em Aldabra, antes de ser detectada e de começarem os esforços de extermínio.
A eliminação de uma ave para salvar outra talvez pareça uma intromissão nos assuntos da natureza. A recuperação ecológica em ilhas é por vezes criticada pelas suas semelhanças com a interferência humana originalmente responsável pela destruição desses ecossistemas insulares. De certa forma, a nossa espécie brinca aos deuses com a natureza, tirando uma peça dali e devolvendo outra acolá.

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As plantas carnívoras alimentam-se de insectos retidos nos seus receptáculos. Esta espécie endémica sobrevive apenas em duas ilhas das Seychelles.

Os ecologistas especializados no tema têm uma perspectiva diferente e invocam o princípio da obrigatoriedade moral por parte de quem originalmente deteriorou um sistema. Foram os seres humanos que introduziram as espécies exóticas e essas espécies alteraram os ecossistemas insulares, abalando-os para além da possibilidade de auto-regulação.

Isto é especialmente válido quando os recém-chegados são mamíferos. Em arquipélagos como as Seychelles, a vida evoluiu sem mamíferos à vista. Aqui, os únicos mamíferos terrestres endémicos são mesmo os morcegos. As espécies insulares não conseguem aguentar a predação de mamíferos e a concorrência tal como sucede no continente. A recuperação esforça-se por equilibrar as regras do jogo ecológico. E, por vezes, a única maneira é afastar os bullies da ilha.


 

Antonio A Alves

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Dez dias depois de me encontrar com Nick Page, ele conseguiu finalmente abater a tiro o último tuta-de-faces-vermelhas.

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Introduzidos como animais de estimação, os periquitos-rabijuncos fugiram para as florestas bravias e agora ameaçam a
ave nacional, um papagaio negro que se concentra na ilha de Praslin. Caçadores contratados tentam abater os intrusos.


Alguns cientistas acreditam que está em curso a sexta extinção em massa, um movimento de desaparecimento acelerado de espécies, desta vez induzido pelos seres humanos. De vários ângulos, é um processo de reescrita do guião da vida no planeta. Como podemos inverter essa trajectória? Podíamos começar por citar as palavras de abertura da Constituição das ilhas Seychelles: “Nós, Povo das Seychelles, GRATOS a Deus Todo-Poderoso por habitarmos um dos países mais belos do mundo; SEMPRE CONSCIENTES da singularidade e fragilidade das Seychelles … [declaramos o nosso compromisso] em ajudar a preservar um ambiente seguro, saudável e funcional para nós próprios e para a posteridade.”
 

Antonio A Alves

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O documento soa como um manifesto conservacionista e, na verdade, ele é exactamente isso, uma vez que há muito a conservar nas Seychelles, em especial nas ilhas graníticas do Leste do arquipélago. Estas ilhas, habitadas pela maioria dos 93 mil ilhéus locais, são os cumes montanhosos de uma massa terrestre submersa que se separou do supercontinente de Gonduana, juntamente com a Índia e Madagáscar, há 125 milhões de anos, transportando consigo uma biota antiga.
Milhões de anos de evolução em isolamento, aliados a injecções esporádicas de novo capital genético, geraram um leque de especificidade no qual merecem destaque rãs mais pequenas do que a unha do dedo humano e cágados gigantes que pesam um quarto de tonelada. Há também uma palmeira que produz um fruto de tal maneira enorme que esmagaria o crânio do indivíduo que repousasse à sua sombra se lhe caísse em cima. E não esqueçamos os caranguejos terrestres grandes como gatos.
 

Antonio A Alves

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A ilha granítica mais oriental chama-se Frégate, de propriedade privada, com uma unidade turística de luxo e várias criaturas para as quais a ilha funciona como último refúgio. Uma dessas espécies é o pisco das Seychelles, cuja elegante plumagem e disposição curiosa o transformaram num dos companheiros favoritos dos habitantes locais. Antigamente, era comum em todo o arquipélago, mas em meados da década de 1960 havia menos de 15 animais sobreviventes, todos nesta ilha com pouco mais de dois quilómetros quadrados. Os conservacionistas lançaram então um programa de recuperação. Os felinos selvagens foram erradicados. Foram disponibilizadas aos piscos caixas de nidificação e alimentos suplementares. À medida que o número de animais crescia, as aves foram transferidas para outros santuários insulares livres de predadores para distribuir o risco e, actualmente, a população foi aumentada para várias centenas de exemplares.

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Aldabra possui uma das mais saudáveis populações de caranguejos-dos-coqueiros do Índico Oeste. Noutros lugares, o maior artrópode
terrestre do mundo, com uma envergadura de pata que pode medir um metro, tem sido devorado até à extinção pelos seres humanos.

Igualmente importantes no panteão de relíquias de Frégate são os miriápodes gigantes: artrópodes negros brilhantes, com a grossura de dedos e 15 centímetros de comprimento, que se amontoam aos molhos e se pavoneiam impunemente pela ilha. Como estes magníficos rastejantes são mais activos de noite, acompanho Tanya Leibrick, responsável de conservação da unidade hoteleira, num passeio nocturno pela floresta. A caminhada é lenta, com passos bem medidos para evitar esmagamentos. Segundo cálculos dos cientistas, um quinto das folhas caídas em cada 24 horas é consumido por miriápodes esfomeados.
 

Antonio A Alves

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Varrendo um tronco nas redondezas, a luz da lanterna do nosso capacete poisou sobre um solitário escaravelho. Castanho-cinza, tem protuberâncias no abdómen como signos em Braille e dois minúsculos ganchos na extremidade de cada pata. Eu sonhara com a possibilidade de encontrar um único destes insectos, um dos maiores tenebrionídeos, ou escaravelhos escuros do mundo. Só existem em ambiente selvagem em Frégate.
É um milagre que este plácido gigante (que pode medir três centímetros) tenha sequer sobrevivido. Em 1995, aconteceu um dos piores pesadelos de um conservacionista insular: chegaram ratazanas a Frégate. Nas Seychelles, este grande escaravelho tem o nome de bib armé, aranha couraçada, mas nenhuma blindagem rígida teria conseguido protegê-lo — nem aos escorpiões-chicote, nem aos caracóis, nem a outros invertebrados endémicos — dos dentes dos roedores. Em escassos quatro anos, a população de escaravelhos diminuiu 80%.
Depois de lançado um apelo urgente internacional para evitar uma catástrofe ecológica, a desratização de Frégate decorreu em 2000 com sucesso. A memória desse êxito obtido por um triz, misturada com as trevas sufocantes da floresta, os assobios e grasnidos das viuvinhas e dos garajaus no alto das árvores, o roçagar dos miriápodes nas folhas secas do solo e o escaravelho solitário, iluminado, pareceu-me uma graça divina

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Uma noivinha move-se rapidamente no meio da floresta autóctone em regeneração de Cousine, uma ilha privada ao largo da costa de Praslin
e um dos sucessos de restauração ecológica das Seychelles. Uma unidade turística de luxo ajuda a pagar os projectos de conservação da ilha.

Uma cobra fina, de um tom pálido de azul, apareceu-nos aos pés e Tanya afastou algumas folhas. Revelou-se afinal, não uma cobra, mas um anfíbio sem membros – a cecília, outra singularidade das Seychelles. O animal de cabeça pontiaguda deu chicotadas com o corpo, retorcendo-se com violência, e recuou para a segurança do ninho. Segundo se crê, as cecílias fazem parte da carga original das Seychelles, as criaturas que fizeram a viagem ancestral a partir de Gonduana. Essas espécies são conhecidas como profundamente endémicas, uma vez que a sua linhagem genética retrocede a eras muito antigas.
 

Antonio A Alves

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“Poucos arquipélagos possuem o que as Seychelles têm”, afirma o ecologista Christopher Kaiser-Bunbury. “As Galápagos gozam de grande fama devido a Darwin, mas as Seychelles não são inferiores.” Andava a escalar na companhia de Christopher em busca das árvores água-viva em Mahé, a ilha principal das Seychelles. Como acontece em muitas ilhas ecologicamente danificadas, para descobrir espécies-relíquia é preciso trepar ao cume das montanhas, fora do alcance da agricultura e do urbanismo. Escalávamos um dos afloramentos rochosos graníticos a que os cientistas chamam inselbergs e que os habitantes das Seychelles designam por glacis, montes-ilha de rocha cinzenta-avermelhada, esculpidos pela precipitação ao longo dos milénios, espreitando nus acima da floresta verdejante.

As plantas agarram-se a fendas e fissuras do granito e muito do que aqui vive é endémico, incluindo a árvore água-viva, ou Medusagyne. Menos de duas dezenas de exemplares em idade reprodutora foram contados aqui. Elas precisam do granito, do contacto com o sol abrasador e com a chuva bravia. Por razões incertas para todos, é raro a sua semente germinar em ambiente bravio, uma enorme desvantagem para uma planta em sério risco de extinção. O espécime por nós encontrado parecia saudável, mas possuía apenas um punhado das vagens características que pendem, como minúsculas alforrecas, entre as folhas verdes e brilhantes. O caminho da recuperação será longo para esta espécie ameaçada que aqui vemos sobre o glacis, uma ilha dentro da ilha, memória de tempos muito antigos.

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As tartarugas gigantes de Aldabra fogem ao calor escaldante diurno refugiando-se em cavernas no interior dos rochedos coralíferos
da ilha de Grande Terre. Trata-se de uma viagem lenta e laboriosa entre as cavernas e as zonas de alimentação das tartarugas.
 

Antonio A Alves

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Descendo a montanha, mais abaixo onde o glacis faz fronteira com a floresta tropical, encontrámos uma equipa que extraía a vegetação invasora e arrancava plantas jovens de abajeru, goiaba e canela para permitir que espécies endémicas como as plantas carnívoras recuperassem terreno. Segundo a explicação de Christopher Kaiser-Bunbury, a meta da recuperação consiste em reconstruir a integridade e funcionalidade do ecossistema e não induzir uma paisagem que existia há cem, mil ou dez mil anos. Importa deixar que as peças vivas de um sistema fragmentado possam voltar a ligar-se entre si e recuperar a sua trajectória histórica. “Ajudamos o sistema a retomar o caminho certo”, afirmou. “Não andamos só a fazer jardinagem.”
Há quase 25 anos, o biólogo E. O. Wilson, “pai da biodiversidade”, afirmou que este século seria a “era da restauração em ecologia”. Esta ideia também está a captar a imaginação dos cidadãos das Seychelles. À medida que a consciência da riqueza biológica do país se vai cimentando, o entusiasmo pela protecção aumenta. Os clubes de vida selvagem germinam nas escolas. “A geração mais nova vai aderindo com entusiasmo”, contou Terence Vel, coordenador dos clubes. “Há 20 anos que trabalhamos com as escolas para transmitir essas mensagens. Levamos os alunos a fazer mergulho e a saídas de campo para lhes mostrar que temos um ecossistema frágil que precisa de ser cuidado para a próxima geração.”
Alguns habitantes mais velhos das Seychelles já percorrem o caminho da recuperação há bastante tempo. Nas lajes graníticas de Mahé, o vigilante da natureza Terence Valentin contou: “Já estou há 19 anos com o ambiente, mano. Sim, eu estou ligado à Terra!”
Em Aldabra, a população vive essa ligação todos os dias. Aliás, aqui há mais tartarugas do que seres humanos. Tudo o que lhes diz respeito parece ancestral, começando pelo som dos seus movimentos, semelhante ao rangido de uma sela de cabedal. Aves endémicas conhecidas como drongos apanham boleia nos seus dorsos, espreitando o voo dos insectos perturbados pela lenta passagem dos gigantes. De noite, ouvi o mar a respirar nas rochas e as tartarugas a ressonar sob as pranchas de madeira dos soalhos. “Este sítio muda a vida de qualquer pessoa”, afirmou um dos meus interlocutores.
Numa encosta de Victoria, o centro histórico de Mahé, ergue-se um invulgar relógio de igreja que toca duas vezes - uma à hora certa, outra poucos minutos depois. Para mim, ele representa uma metáfora das Seychelles: um segundo toque para uma segunda oportunidade, reclamando o salvamento dos piscos, dos escaravelhos, das plantas carnívoras e das palmeiras e festejando uma natureza restaurada.
 
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