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Alta ciência

Antonio A Alves

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A canábis não é propriamente nova. Convive com a espécie humana desde o início da história.
Na Sibéria, foram descobertas sementes carbonizadas em locais de sepultamento datados de 3.000 a.C. Os chineses utilizavam a canábis como remédio há mil anos. A marijuana também é, ao mesmo tempo, uma cultura profundamente americana. Durante a maior parte da história do país, a canábis foi legal e encontrava-se frequentemente em tinturas e extractos.
Foi então que apareceram filmes como “A Loucura da Erva”, “Marijuana, Assassina da Juventude” e “A Droga de Introdução”. Durante quase setenta anos, a planta passou à clandestinidade e, em grande parte, a investigação médica praticamente desapareceu. Em 1970, a administração federal norte-americana tornou ainda mais difícil o estudo da marijuana, classificando-a como droga de Plano I, uma substância perigosa sem objectivos médicos válidos e potencial de consumo abusivo – a mesma categoria da heroína. Nos EUA, na maioria dos casos, os interessados em alargar conhecimentos sobre ela eram, por definição, criminosos.



Agora, porém, um número crescente de pessoas procura esta droga como solução para tratar doenças e a ciência da canábis regista um renascimento. Estamos a descobrir surpresas ocultas no interior desta planta outrora proibida. Embora a marijuana se mantenha interdita, Vivek Murthy, responsável pela pasta da Saúde dos EUA, manifestou interesse no conhecimento que a ciência obterá sobre a marijuana, sublinhando que há dados preliminares comprovativos de que, “para alguns problemas médicos e sintomas”, ela pode ser “útil”.
Em 24 estados, a canábis é legal para algumas utilizações médicas e a maioria dos norte-americanos manifesta-se a favor da sua legalização para uso recreativo. Outros países repensam igualmente a sua relação com ela. O Uruguai aprovou a sua legalização. Portugal despenalizou-a. Israel, o Canadá e a Holanda têm programas de prescrição médica de canábis. Nos últimos anos, vários países liberalizaram as leis sobre a sua posse, quer descriminalizando-a, despenalizando-a ou regulamentando-a.
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Antonio A Alves

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Talvez por isso, o aroma da marijuana a pairar no ar passe cada vez mais despercebido. Continua a ser verdade que a sua inalação pode provocar doença temporária do riso, olhos esgazeados e amnésia quanto a acontecimentos sucedidos há dois segundos. Embora jamais tenha sido documentado qualquer caso de morte por consumo excessivo, a marijuana – em especial nas suas variantes robustas actualmente disponíveis – é também uma droga potente e, em algumas circunstâncias, nociva.
Para muitos indivíduos, porém, a canábis transformou-se também num tónico para mitigar a dor, ajudar a dormir, estimular o apetite e amortecer os aborrecimentos do quotidiano. Os seus paladinos afirmam que ela dissipa camadas sobrepostas de stress. Pensa-se também que é útil, entre outras coisas, como analgésico, antiemético, broncodilatador e anti-inflamatório. Alguns compostos presentes na planta, afirmam certos cientistas, podem ajudar a regular funções vitais do organismo, como a protecção do cérebro contra eventos traumáticos, o reforço do sistema imunitário e o contributo para a “eliminação de recordações” após eventos catastróficos.
Nesta aparente corrida destinada a generalizar a aceitação da marijuana no contexto social maioritário, tributando-a e regulando-a, legitimando-a e transformando-a numa mercadoria, surgem perguntas importantes. O que se passa dentro desta planta? Como afecta de facto os nossos corpos e os nossos cérebros? O que poderiam as substâncias químicas na planta revelar sobre a maneira como os nossos sistemas neurológicos funcionam? Poderiam essas substâncias químicas conduzir-nos a novos produtos farmacêuticos benéficos?

Se a canábis tem alguma coisa para nos dizer, o que está ela a dizer-nos?
 

Antonio A Alves

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O QUÍMICO
Tesouro encontrado
Em meados do século XX, a ciência nada sabia sobre a marijuana. O que existia no interior da planta e a forma como ela funcionava permaneciam um mistério. A ilegalização e a sua repu-
tação maculada afastavam os poucos praticantes de ciência séria que quisessem estudá-la.
Certo dia de 1963, um jovem especialista em química orgânica de Israel, chamado Raphael Mechoulam, colaborador do Instituto Weizmann para a Ciência, nos arredores de Telavive, decidiu investigar a composição química da planta. Causava-lhe perplexidade que embora a morfina tivesse sido extraída do ópio em 1805 e a cocaína das folhas de coca em 1855, os cientistas não fizessem ideia de qual era o principal ingrediente psicoactivo da marijuana. “Era apenas uma planta”, diz Raphael, hoje com 84 anos. “Era uma confusão, uma mistura de compostos não identificados.”
Por isso, ele telefonou à polícia nacional israelita e conseguiu obter cinco quilogramas de haxixe libanês apreendido. Ele e a sua equipa de investigação isolaram – e, em alguns casos, também sintetizaram – um conjunto de substâncias, injectadas depois em separado em macacos. Apenas uma produziu efeitos observáveis. Quando injectados com este composto, os macacos acalmavam. “Sedados, diria eu”, recorda, com uma risada.
Ensaios mais aprofundados demonstraram aquilo que o mundo sabe hoje: este composto é o principal ingrediente activo da planta, a sua essência alteradora dos estados mentais. Raphael e outro colega tinham assim descoberto o tetrahidrocanabinol (THC). Ele e a sua equipa identificaram igualmente a estrutura química do canabidiol (CBD), outro ingrediente com numerosas utilizações médicas potenciais mas sem qualquer efeito psicoactivo nos seres humanos.
 

Antonio A Alves

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Por força destas e de muitas outras descobertas similares, Raphael é geralmente conhecido como o patriarca da investigação científica sobre a canábis. Nascido na Bulgária, este homem de ar respeitável é membro da Academia das Ciências e Humanidades de Israel e catedrático jubilado da Faculdade de Medicina Hadassah da Universidade Hebraica, onde ainda dirige um laboratório. Autor de mais de quatrocentos artigos científicos, este avô de modos suaves passou a vida a estudar a canábis, por si classificada como “precioso achado medicinal à espera de ser descoberto”. O seu trabalho fez proliferar uma subcultura de investigação em todo o planeta. Embora afirme nunca ter fumado a substância, é uma figura célebre neste mundo e recebe um volume prodigioso de correspondência de fãs.
“A culpa é toda sua”, digo-lhe, quando me encontro com ele no seu escritório forrado de livros e atulhado de prémios, para conversarmos sobre a explosão do interesse pelo trabalho científico acerca da marijuana.
“Mea culpa!”, responde com um sorriso.
Israel possui um dos programas de prescrição médica de canábis mais avançados do mundo. Raphael desempenhou um papel activo na sua criação e declara-se orgulhoso dos resultados. Mais de vinte mil doentes têm licença para consumir canábis como tratamento para o glaucoma, a doença de Crohn, a inflamação, a perda de apetite, a síndrome de Tourette e a asma.
Apesar de tudo, não se mostra particularmente favorável à legalização da canábis para consumo recreativo. Não defende que as pessoas devam ser presas pela sua posse, mas insiste que a marijuana “não é uma substância inócua”, em especial para os jovens. Lembra alguns estudos demonstrativos de que o consumo prolongado das estirpes de marijuana com elevado teor de THC podem alterar a maneira como o cérebro em crescimento se desenvolve. Observa que, em algumas pessoas, a canábis pode provocar crises graves e debilitadoras de ansiedade, mencionando estudos onde se sugere que a canábis pode desencadear o início da esquizofrenia em pessoas com predisposição genética para a doença.
Se lhe coubesse decidir, o cultivo da erva para uso recreativo daria lugar a um apoio sério à canábis, mas apenas como substância médica regulada com rigor e investigada de forma incansável. “Neste momento, o público não sabe o que está a consumir”, queixa-se. “Para que resulte no mundo da medicina, é preciso representatividade quantitativa. Se não se pode quantificar, não é ciência.”
Em 1992, Raphael Mechoulam e vários colegas protagonizaram uma descoberta extraordinária. Isolaram a substância química fabricada pelo organismo humano que se liga no cérebro ao mesmo receptor do THC. Raphael atribuiu-lhe o nome de anandamida, palavra que, em sânscrito, significa “alegria suprema”. Quando lhe perguntam por que razão não lhe deu um nome hebraico, responde: “Porque em hebraico não há muitas palavras para felicidade. Os judeus não gostam de ser felizes.”

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Desde então, têm sido identificadas várias substâncias conhecidas como endocanabinóides e os respectivos receptores. Os cientistas acabaram por descobrir que os endocanabinóides interagem com uma rede neurológica específica, de maneira muito semelhante à das endorfinas, serotonina e dopamina. Tem-se demonstrado que o exercício físico eleva os níveis dos endocanabinóides no cérebro, observa Raphael. “Isto explica provavelmente a sensação classificada pelos praticantes entusiastas de jogging como ‘pedra’ do corredor’.” Estes compostos, explica, desempenham aparentemente um papel importante em funções básicas como a memória, o equilíbrio, o movimento, a saúde imunitária e a neuroprotecção.
As empresas farmacêuticas que produzem fármacos baseados na canábis esforçam-se naturalmente por isolar compostos individuais a partir da planta. Mas Raphael tem fortes suspeitas de que, em alguns casos, essas substâncias químicas resultassem muito melhor em articulação com outros compostos presentes na marijuana. Ele chama a isto efeito de vizinhança, tratando-se apenas de um dos muitos mistérios da canábis que, no seu entender, exigem investigação mais aprofundada.
“Lamento muito não dispor de outra vida para dedicar a este domínio”, diz. “Talvez descobrisse que os canabinóides estão envolvidos em todas as doenças humanas, de uma forma ou de outra.”
O BOTÂNICO
Fez-se luz
O edifício de quatro mil metros quadrados agiganta-se do outro lado de uma esquadra de polícia numa zona industrial de Denver, ao longo de uma fieira envelhecida de armazéns reconvertidos que se tornou conhecida como Milha Verde. De fora, nada denuncia a natureza do negócio.
A porta abre-se, com um zumbido, e cumprimento o horticultor-chefe da Mindful, uma das maiores empresas produtoras de canábis do mundo. Com aspecto de druida, 38 anos e olhos azuis intensos, Phillip Hague apresenta-se vestido de camuflado e botas de caminhada, ostentando o sorriso incrédulo de quem encontrou a vocação exacta da sua vida através de uma conjugação de acontecimentos que nunca imaginou possíveis.


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Antonio A Alves

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Philip descreve-se a si mesmo como homem das plantas e jardineiro desde os 8 anos. Durante muitos anos, cultivou flores-de-natal, caládios, crisântemos e outras plantas na estufa da família, no Texas. Agora, porém, a sua atenção centra-se em botões muito mais lucrativos.
Conduz-me através da linha da frente da Mindful até aos corredores do interior. Em congeladores, a Mindful armazena sementes trazidas do mundo inteiro. Philip interessa-se pela biodiversidade histórica da planta e o seu banco de sementes constitui uma parte significativa da propriedade intelectual da Mindful. “É importante reconhecer que as sociedades humanas evoluíram na sua companhia praticamente desde a alvorada dos tempos”, diz. “É mais antiga do que a escrita. O uso da canábis faz parte de nós. Foi-se disseminando a partir da Ásia Central, após a última glaciação, e espalhou-se por todo o planeta ao lado do homem.”
Quando o Departamento de Justiça dos EUA anunciou, em 2009, que não insistiria em accionar judicialmente pessoas que cumprissem legislação sobre a marijuana para uso médico, ele decidiu mudar-se para Denver. Agora gere um dos centros mais importantes do mundo, onde prosperam mais de vinte mil plantas de canábis.

Vamos caminhando diante de salas de cura e por um corredor pulsando com bombas, ventoinhas, filtros, geradores e máquinas de aparar. Uma empilhadora mecânica passa por nós em movimento. Câmaras de vigilância captam tudo, enquanto jovens trabalhadores vestidos com batas caminham de um lado para o outro, de rostos iluminados pela pressão e pela promessa de um negócio nada ortodoxo que cresceu explosivamente, para além do que é compreensível. A Mindful fez planos para expandir-se, construindo instalações semelhantes noutros estados. “A erva é o que está a dar!”, brinca Philip, com uma gargalhada.
Abre de par em par uma porta e os meus olhos são encandeados por um halo de lâmpadas de plasma. Entramos numa enorme sala quente que cheira a cem concertos de rock. Depois de os meus olhos se adaptarem, consigo ver a plantação em todo o seu esplendor vibrante – aproximadamente um milhar de plantas fêmeas erguendo-se a dois metros de altura, com as raízes banhadas numa sopa de nutrientes e as folhas pontiagudas acenando sob ventoinhas oscilantes. Aqui estão mais de meio milhão de euros em erva artesanal.
Debruço-me para cheirar um dos botões floridos, castanho-arroxeado e raiado de riscas brancas. Destes minúsculos tricomas escorre alegremente uma resina rica em canabinóides. Esta estirpe tem o nome Highway Man e foi inspirada numa canção de Willie Nelson. Hibridizada por Philip Hague, trata-se de uma variedade carregada de THC. As melhores partes serão colhidas à mão, secas, curadas e embaladas para venda num dos dispensários da Mindful. “Esta sala inteira estará pronta para colheita dentro de poucos dias”, observa o botânico, com a subtileza expressiva de um criador competitivo que recebeu prémios internacionais pelas suas estirpes.
 

Antonio A Alves

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Philip, porém, quer mostrar outra coisa. Conduz-me a uma sala de propagação húmida, onde uma jovem safra está a criar raízes numa escuridão quase completa. Estas plantas-bebé, etiquetadas com rótulos amarelos, estão a ser cultivadas estritamente para fins médicos. Todas são clones, cortadas de uma planta-mãe. Philip mostra-se orgulhoso desta variedade, quase totalmente desprovida de THC mas rica em CBD e outros compostos que se mostraram (mais do que vagamente) promissores no tratamento de doenças e perturbações como a esclerose múltipla, a psoríase, a perturbação de stress pós-traumático, a demência, a esquizofrenia, a osteoporose e a esclerose lateral amiotrófica (ELA).
“São estas estirpes com baixo teor de THC que realmente me tiram o sono à noite, sonhando com o seu potencial”, afirma Philip, sublinhando que a marijuana contém numerosas substâncias (canabinóides, flavonóides e terpenos) que nunca foram investigadas de maneira aprofundada.
“Eu sei que pareço sentimental, mas creio que a canábis possui consciência”, diz. “Está cansada de ser perseguida. Está pronta para surgir à luz do dia.”
 

Antonio A Alves

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O BIOQUÍMICO
Cura milagrosa?
Neste momento, há poucos indivíduos que não tenham ouvido falar no papel paliativo que a canábis pode desempenhar junto dos doentes com cancro, em particular como forma de aliviar alguns efeitos colaterais mais desagradáveis da quimioterapia. Não há dúvida de que a erva pode atenuar a náusea, melhorar o apetite e ajudar nas dores e no sono. Mas poderá curar o cancro? Na Internet, descobrirá centenas, senão mesmo milhares, de reivindicações desse tipo.
A maioria destas reivindicações divide-se entre a constatação de um caso isolado, na melhor das hipóteses, ou fraudulento, na pior. Mas também há referências de provas laboratoriais indicativas de que os canabinóides podem ser agentes anticancerígenos e muitas destas informações conduzem a um laboratório em Espanha dirigido por um homem pensativo e circunspecto chamado Manuel Guzmán.
Este bioquímico dedica-se ao estudo da canábis há 20 anos. Visitei-o no seu gabinete da Universidade Complutense de Madrid. Fala velozmente com uma voz suave que obriga o ouvinte a inclinar-se na sua direcção. “Quando os cabeçalhos dos jornais gritam: ‘Cancro do Cérebro Curado com Canábis!’, estão a fugir à verdade”, afirma. “Há muitas reivindicações na Internet, mas são muitíssimo débeis.”
De seguida, vira-se para o computador. “Ainda assim, deixe-me mostrar-lhe uma coisa.” No ecrã, aparecem, num clarão, duas IRM do cérebro de um ratinho. No animal, encontra-se uma grande massa alojada no hemisfério direito, causada por células de tumor cerebral humano injectadas pela equipa de Manuel Guzmán. Este ratinho, pensei eu, já bateu a bota. “Este animal em particular foi tratado com THC durante uma semana”, prossegue. “Eis o que aconteceu depois.” As duas imagens que enchem agora o ecrã estão normais. A massa não se limitou a encolher: desapareceu. “Como pode ver, não há qualquer tumor.”
 

Antonio A Alves

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No seu estudo, Manuel Guzmán e os seus colegas, que há 15 anos tratam animais afectados por cancro com compostos de canábis, descobriram que os tumores presentes num terço dos ratinhos tinham sido erradicados e os tumores noutro terço estavam reduzidos.

Este é o tipo de descobertas que entusiasmam o planeta e Manuel Guzmán preocupa-se constantemente que a sua investigação avançada possa dar falsas esperanças aos doentes de cancro e alimente as reivindicações capciosas na Internet. “O problema é o seguinte: os ratinhos não são humanos”, explica. “Não sabemos sequer se isto pode ser extrapolado para os seres humanos.”
Manuel concentra-se não só no cancro mas também nas doenças neurodegenerativas e na maneira como os canabinóides afectam o desenvolvimento inicial do cérebro. Quanto a este derradeiro tópico, a investigação do grupo de Guzmán apresenta resultados inequívocos: os ratinhos nascidos de mães que foram administradas regularmente com doses elevadas de THC durante a gravidez mostram problemas graves. São pouco coordenados, têm interacções sociais difíceis e possuem um baixo limiar de ansiedade. Ficam frequentemente paralisados pelo medo perante certos estímulos que não perturbam ratos jovens.
O laboratório também tem estudado a forma como as substâncias químicas presentes na canábis, bem como canabinóides como a anandamida produzidos pelo nosso organismo, protegem o nosso cérebro contra vários tipos de agressões, como os episódios traumáticos físicos e emocionais. “O nosso cérebro precisa de lembrar-se das coisas, evidentemente, mas precisa também de se esquecer de outras – episódios traumáticos, desnecessários”, afirma Manuel. “É muito semelhante à memória do computador: é preciso esquecer aquilo que não é necessário. E as pessoas precisam de esquecer-se daquilo que não é bom para a sua saúde mental – uma guerra, um trauma, uma recordação aversiva de alguma espécie. O sistema dos canabinóides é fundamental para nos ajudar a expulsar as más recordações.”
A investigação de Manuel Guzmán sobre tumores cerebrais tem conquistado os cabeçalhos dos jornais e o interesse das companhias farmacêuticas. Ao longo da investigação, ele tem podido confirmar que determinada combinação de THC, CBD e temozolomida (uma droga convencional moderadamente bem sucedida) resulta melhor no tratamento dos tumores cerebrais em ratinhos. Uma mistura destes três compostos parece atacar as células cerebrais com cancro de várias formas, impedindo a sua propagação e também impelindo-as, com efeito, a cometer suicídio.
 

Antonio A Alves

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Está actualmente em curso um ensaio clínico inovador, baseado nos trabalhos de Manuel Guzmán, no Hospital da Universidade St. James, em Leeds. Os neuro-oncologistas estão a tratar doentes que padecem de tumores cerebrais agressivos com temozolomida e Sativex, um pulverizador oral com THC-CBD desenvolvido pela empresa GW Pharmaceuticals.
O especialista espanhol adverte contra o excesso de optimismo, mas congratula-se com o início dos estudos em seres humanos. “Temos de ser objectivos”, afirma. “Pelo menos, as mentalidades estão a abrir-se em todo o mundo e os organismos de financiamento sabem agora que a canábis, enquanto droga, tem seriedade científica, é terapeuticamente promissora e clinicamente relevante.”
Será que a canábis ajudará a combater o cancro? “Tenho a intuição de que talvez o possa fazer”, diz.
O PRESTADOR DE CUIDADOS
Migrante médico
As convulsões começaram em Maio de 2013, aos 6 meses de idade. Chamaram-lhes espasmos infantis. Parecia um reflexo provocado por susto: braços rígidos ao lado do corpo, rosto numa máscara gelada de medo, olhos girando de um lado para o outro. O pequeno cérebro de Addelyn Patrick acelerava e entrava em crise, como se uma tempestade electromagnética o percorresse de cima a baixo. “É o pior pesadelo que uma pessoa pode ter”, diz a mãe, Meagan. “É simplesmente horrível ver a nossa filha em sofrimento, com medo, e não haver nada que possamos fazer para travar a situação.”
Partindo da sua cidade no Sudoeste do estado do Maine, Meagan e o marido, Ken, levaram Addy até Boston para consultas com neurologistas. Estas crises de epilepsia, concluíram eles, resultavam de uma malformação congénita do cérebro denominada esquizencefalia. Um dos hemisférios cerebrais de Addy não se desenvolvera por completo no útero, deixando uma fenda anómala. Padecia igualmente de um problema médico associado, a hipoplasia do nervo óptico, que lhe causava movimentação constante dos olhos. Testes posteriores revelaram que ela esteve quase cega. No Verão, Addy sofria 20 a 30 crises diárias. De seguida, 100 por dia. Por fim, 300. “Tínhamos medo de a perder”, afirma Meagan.
 

Antonio A Alves

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O casal Patrick seguiu as instruções recebidas e manteve Addy fortemente medicada com anticonvulsivos. Os medicamentos potentes reduziam-lhe as convulsões, mas também a faziam dormir durante quase todo o dia. “Addy desapareceu”, conta Meagan. “Ficava deitada, todo o dia a dormir. Como uma boneca de trapos.”
Meagan deixou o emprego, como professora do 3.º ano, para cuidar da filha. Ao longo de nove meses, Addy foi hospitalizada em 20 ocasiões.
Quando os sogros de Meagan sugeriram que estudasse o uso de marijuana para fins médicos, ela reagiu horrorizada. “Era uma droga declarada ilegal pelo direito federal”, lembra-se de ter pensado. Mesmo assim, fez pesquisa. Uma boa parte das provas isoladas demonstra que as estirpes de canábis com elevado teor de CBD possuem um potente efeito anticonvulsivo. A bibliografia médica, embora escassa, permite recuar no passado de maneira surpreendente.
Em Setembro de 2013, o casal Patrick reuniu-se com a neurologista pediátrica Elizabeth Thiele, do Hospital Geral de Massachusetts, em Boston, onde decorre um estudo sobre o uso da CBD no tratamento da epilepsia infantil refractária. Legalmente, Elizabeth não podia receitar canábis, nem sequer recomendá-la. Mas aconselhou vivamente os Patrick a ponderarem todas as opções médicas.
Sentindo-se encorajada, Meagan viajou até ao Colorado e travou conhecimento com pais cujos filhos epilépticos estavam medicados com uma estirpe de canábis chamada Charlotte’s Web, baptizada com o nome de uma rapariga, Charlotte Figi, que reagira surpreendentemente bem ao óleo com baixo nível de THC e elevado teor de CBD produzido perto de Colorado Springs.
Aquilo que Meagan viu no Colorado deixou-a impressionada: a crescente base de conhecimentos dos produtores de canábis, a solidariedade de outros pais lidando com problemas semelhantes, a qualidade dos dispensários e a especialização dos laboratórios de ensaios, capazes de garantir formulações consistentes de óleo de canábis. Colorado Springs transformara-se na meca de uma notável migração para fins médicos. Mais de cem famílias com crianças padecendo de problemas médicos potencialmente mortais separaram-se das suas raízes noutros lugares e mudaram-se para ali. Estas famílias, muitas das quais ligadas a uma organização sem fins lucrativos denominada Realm of Caring, consideram-se “refugiados por razões médicas”. Na sua maioria, não podiam medicar os filhos com canábis nos estados de origem por correrem o risco de detenção por tráfico ou mesmo abuso infantil.
 

Antonio A Alves

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Meagan experimentou o óleo com elevado teor de CBD. As convulsões quase pararam por completo. Desmamou Addy de outros medicamentos e foi como se ela saísse de um estado de coma. “Parece pouco, mas quando se vê uma filha a sorrir pela primeira vez em muitos meses, o nosso mundo muda por completo”, diz Meagan.
O casal Patrick mudou-se para o Colorado e aderiu ao movimento. “Se cultivassem algo em Marte que pudesse ajudar a Addy, eu iria para o quintal construir uma nave espacial.”

Quando me encontro com os Patrick em finais de 2014, eles já se tinham fixado na sua nova casa, na zona norte de Colorado Springs. Addy está óptima. Desde que tomou o óleo com CBD pela primeira vez, nunca mais voltou a ser hospitalizada. Ainda sofre convulsões esporádicas (uma ou duas por dia), mas são menos intensas. Os seus olhos agitam-se menos. Ouve mais. Ri-se com mais frequência. Aprendeu a dar abraços e descobriu o poder das suas cordas vocais.
Segundo algumas vozes críticas, os pais do Realm of Caring estão a usar os filhos como cobaias, pois não foram feitos estudos em número suficiente e muitas – senão mesmo a maioria — das melhorias reivindicadas podem ser ignoradas devido ao efeito de placebo. “É verdade: não conhecemos os efeitos de longo prazo do CBD e devíamos estudá-lo”, afirma Meagan. “Mas uma coisa vos garanto. Sem ele, a nossa Addy seria uma saca de batatas.” Ninguém faz perguntas, observa ela, acerca dos efeitos de longo prazo de um produto farmacêutico de consumo generalizado que foi receitado de forma rotineira para a sua filha de 2 anos. “O nosso seguro cobre os seus custos e ninguém faz perguntas”, afirma. “Mas é altamente viciante, altamente tóxico, transforma a pessoa num zombie e pode efectivamente matar-nos.
E, no entanto, é perfeitamente legal.”
Segundo Elizabeth Thiele, os resultados inicialmente obtidos pelo estudo do CBD são encorajadores. “O CBD não é uma solução mágica para tudo, não resulta em todos os doentes”, previne. “Mas sinto-me impressionada. Não há qualquer dúvida de que pode ser um tratamento muito eficaz para muitas pessoas. Tenho várias crianças no estudo que há mais de um ano deixaram de ter convulsões.”
Agora, o casal Patrick sente-se numa boa situação. Está mais feliz do que andou durante muitos anos. “Temos outra vez a Addy connosco”, diz Meagan. “Se eu não tivesse vivido tudo isto, não sei se acreditaria. Não acho que a canábis seja uma cura milagrosa. Mas acho que deveria ser um instrumento disponível na caixa de ferramentas de todos os neurologistas, no país inteiro.”
 
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