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Tribunal da Relação de Lisboa, Acórdão de 16 Nov. 2017, Processo 7840/16
Relator: FRANCISCA MENDES.
Processo: 7840/16
Texto
– Embora da ocupação de um lugar em classe económica em vez da ocupação em lugar de classe executiva não resulte perda de dignidade para as pessoas que ocupam tais lugares, importa considerar, a título de danos não patrimoniais, os notórios transtornos físicos resultantes da mudança, numa viagem aérea de Lisboa para o Brasil.(Sumário elaborado pela Relatora)
Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa.
I-Relatório:
A e B a presente acção declarativa comum contra C., pedindo a condenação da Ré a pagar aos Autores, a título de indemnização, valor não inferior a € 7500,00, acrescido de juros vencidos e vincendos, desde a data da citação até integral pagamento.
Para tal alegaram, em síntese:
- Os AA. viajaram de Portugal para o Brasil, onde residem, em voo da Ré, tendo reservado a sua viagem através do programa de milhas disponibilizado pela Companhia;
- Os AA. adquiriam dois bilhetes em classe económica;
- No dia da viagem e já no aeroporto, tendo verificado a existência de dois lugares vagos na classe executiva, solicitaram ao balcão o upgrade - alteração positiva - dos seus lugares para aqueles disponíveis, através da disponibilização das milhas necessárias para o efeito, o que a Ré aceitou, tendo-lhes entregue novos cartões de embarque;
- Sucede que, já instalados nesses lugares em executiva, os Autores foram surpreendidos pelos funcionários da Ré que os compeliram a regressar à classe turística - mas não aos lugares que originalmente detinham - numa situação injustificada e que causou aos Autores incómodos físicos, humilhação, vergonha e grave ofensa na sua honra e consideração, constituindo-os no direito de exigir uma compensação a título de danos não patrimoniais.
Na sua contestação, a Ré alegou, em síntese, que, tendo reconhecido a situação anómala, reembolsou o titular das milhas que estes haviam usado para fazer o upgrade e, perante a reclamação e para minimizar o incómodo causado, ofereceu a este último dois upgrades em viagem dentro da Europa. Explicou, ainda, que o upgrade para executiva foi vendido aos Autores no pressuposto, que se não veio a verificar, de que os dois lugares não iriam ser ocupados pelas reservas anteriores, provenientes de um voo de ligação.
Terminou, pedindo a sua absolvição do pedido.
Foi realizada audiência prévia.
Após a realização de audiência final, foi proferida sentença.
Pelo Tribunal a quo foram considerados provados os seguintes factos:
1.-No âmbito de um convite feito aos Autores para virem do Brasil a Portugal passar a quadra de Natal e Ano Novo, pelos seus cunhados, V. e mulher, estes últimos compraram as passagens aéreas em classe executiva Belo Horizonte-Brasil/Lisboa-Portugal e Lisboa-Portugal/Belo Horizonte-Brasil em voo da Ré, através do programa de milhas do Cartão V. tendo disponibilizado, para o efeito, um total de 170.000,00 milhas do acumulado que possuíam.
2.-No momento da compra daquelas passagens aéreas (Outubro de 2015), através do programa de milhas, a Ré não dispunha de lugares vagos, em classe executiva, no voo de regresso dos Autores ao Brasil, na data pretendida (03.01.2016).
3.-Pelo que os Autores fizeram a viagem Belo Horizonte/Lisboa em 12.12.2015 em classe executiva e o seu regresso ao Brasil, em 03.03.2016, ficou assegurado através da aquisição das respectivas passagens aéreas em classe económica, a que corresponderiam os lugares na aeronave com os n.[SUP]os[/SUP] 16A e 16B, mas inseridos na lista de espera por eventuais vagas na classe executiva.
4.-No dia da viagem de regresso, os Autores verificaram que, no sítio de internet da Ré, existiam referenciados dois lugares vagos em classe executiva, pelo que aqueles se deslocaram ao aeroporto de Lisboa, acompanhados dos seus familiares, onde, no balcão da Ré, procederam ao upgrade - alteração positiva - das passagens em classe económica de que eram portadores para a classe executiva, através da disponibilização das milhas necessárias para o efeito.
5.-Quando os Autores se apresentaram na porta de embarque, foi dada a confirmação informática do solicitado upgrade e foram entregues pelo funcionário da Ré os cartões de embarque correspondentes aos lugares 2J e 2H, da classe executiva do voo 101.
6.-Após o embarque dos Autores na aeronave e quando já estavam sentados nos lugares 2J e 2H, estes foram interpelados por um funcionário da Ré, que não puderam identificar, e foram conduzidos à classe económica, abandonando os lugares da classe executiva, com a indicação de que deveriam ocupar os lugares 21E e 21F da classe económica, com a justificação de que os lugares da classe executiva ocupados pelos Autores haviam sido vendidos a outros passageiros.
7.-Pelo mesmo funcionário da Ré, foram entregue aos Autores novos cartões de embarque, correspondentes aos lugares 21E e 21F, para onde os Autores se viram compelidos a passar, aí tendo realizado a viagem de regresso ao Brasil.
8.-A situação ora descrita foi presenciada pelos demais passageiros ocupantes da aeronave, quer da classe executiva, quer da classe económica, o que gerou vexame e vergonha aos Autores.
9.- Os Autores sentiram-se ofendidos na sua honra.
10.-Na sequência da reclamação efectuada pelo familiar dos Autores, titular do Cartão Victoria, a Ré reembolsou-o das milhas cobradas no upgrade.
11.-A Ré propôs também, ao titular do Cartão V dois upgrades em viagem dentro da Europa.
12.-Os passageiros que vieram a ocupar os lugares 2J e 2H já tinham reserva no voo dos autos, mas a Ré previa atraso no voo Bruxelas/Lisboa, de ligação ao dos autos, pelo que o upgrade foi vendido no pressuposto do atraso nesse voo de ligação.
Pelo Tribunal a quo foi ainda consignado: «Não existem outros factos provados com relevância para a apreciação da causa, designadamente:
a)- Que o funcionário da Ré tenha agido de forma rude, arrogante e prepotente, tendo chegado a ameaçar os Autores de que a demora na aceitação da troca de lugares acarretaria elevados custos à companhia (artigo 15º da petição inicial).
A restante matéria dos articulados constitui um conjunto de alegações meramente instrumental, sem relevância para a apreciação da causa, ou de afirmações conclusivas e/ou de Direito.»
Com base nos factos provados acima indicados, foi proferida a seguinte decisão:
«Pelo exposto e ao abrigo das disposições legais supra citadas, o Tribunal julga a presente acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência, condena a Ré a pagar aos Autores a quantia total de € 4.000,00 (quatro mil euros) acrescida dos juros de mora vencidos desde o trânsito em julgado da presente acção até integral pagamento.
Custas por Autores e Ré na proporção do respectivo decaimento - artigo 527º do C.P.C..»
A R. recorreu desta sentença e formulou as seguintes conclusões:
1-Os AA. compraram passagens aéreas Brasil/Lisboa em classe executiva e Lisboa/Brasil em classe económica.
2-No regresso, aquando da viagem Lisboa/Brasil compraram upgrade de classe económica para executiva.
3- Só teriam a certeza do upgrade à porta de embarque;
4- Foi-lhes dado o cartão de embarque em executiva.
5-O upgrade tinha como pressuposto os passageiros desses lugares não irem no voo dos autos.
6-Os passageiros de voo em trânsito/ligação, detentores primitivos desses lugares, chegaram atempadamente ao voo dos autos, pelo que os lugares foram-lhe restituídos.
7-Os recorridos tiveram de regressar aos primitivos lugares em económica, onde viajaram.
8-Sentiram, segundo eles, vexame e vergonha e ofendidos na sua honra;
9- A sentença condenou a recorrente no pagamento de €2000 a cada recorrido.
10-A recorrente entende que a Mª Juíza ignorou as cláusulas gerais que compõem o contrato de transporte celebrado entre AA e R., nomeadamente no art. 5º, nº4 onde permite à recorrente mudar os passageiros de lugar;
11-Aplicando a aludida cláusula contratual, como deveria ter sido, pois a recorrente tem norma legal e contratual a sustentar o seu comportamento, o acontecimento dos autos não passou de mero transtorno para os recorridos.
12-O cumprimento do contrato de transporte verificou-se, pois os passageiros foram colocados no destino;
13-Não houve cumprimento defeituoso do contrato, não cabendo aqui qualquer aplicação do art. 799º, 494º e 496º do Código Civil.
14- Não houve violação das normas contratuais, em prejuízos, nem danos morais, pelo que não há direito a indemnização.
Terminou, requerendo a revogação da decisão requerida.
Os recorridos contra-alegaram e formularam as seguintes conclusões:
a)- A impugnação da matéria de facto, deve ser esgrimida nos precisos limites definidos pelo preceituado no artigo 640.º, n.[SUP]o[/SUP] 1, alíneas a) e b), e n.[SUP]o[/SUP] 2, do CPC;
b)- Todavia, constata-se que a recorrente limita-se a invocar argumentos que denotam uma mera discordância do sentido e alcance da sentença recorrida, mas que se revelam inidóneos a abalar de modo sério e profundo o teor da decisão propalada pelo Tribunal a quo, logo, insusceptíveis de fundamentarem a sua revogação ou alteração relativamente à factualidade material considerada provada;
c)- Em relação à interpretação e aplicação dos artigos 799.º, 494.º e 496.º do Código Civil, constata-se que o Tribunal a quo não incorreu em qualquer erro de interpretação e aplicação do direito, não assistindo qualquer razão à recorrente nas críticas que tece a este respeito;
d)- No quadro do princípio da tutela da confiança e com apelo ao sub-princípio da primazia da materialidade subjacente, facilmente se descortina a existência de um concreto e objectivo cumprimento defeituoso do contrato de transporte aéreo, na medida em que da "desconformidade" em causa, resulta patente uma não correspondência entre o serviço oferecido/contratualizado, com aquele que veio a ser, efectivamente prestado, como resultou provado;
e)- De resto, tendo ficado provado de modo inequívoco a violação de direitos de personalidade dos autores, mormente, da honra, direitos legalmente protegidos pela cláusula geral contida no artigo 70.º, n.[SUP]o[/SUP] 1, do Código Civil, sendo a sua violação sancionada através da responsabilidade indemnizatória, por se tratar de danos não patrimoniais de particular gravidade no contexto circunstancial relevante, nada obsta a aplicação do preceituado no artigo 496.º, n.[SUP]o[/SUP] 1, do Código Civil, à luz da jurisprudência e da doutrina maioritárias e consolidadas em torno desta temática;
f)- Destarte, e em apertada síntese, cumpre salientar que não assiste qualquer razão à recorrente, mostrando-se o arrazoado vertido nas suas conclusões, absolutamente irrelevante e anódino, insusceptível de sustentar qualquer alteração de sentido e alcance da sentença recorrida, não merecendo o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, qualquer censura.
Terminaram, pugnando pela improcedência do recurso e pela confirmação da decisão recorrida.
Em 05.05.2017 foi proferido despacho pela relatora do presente Acórdão que não admitiu a junção aos autos de "parte de documento" (referente as cláusulas gerais de transporte).
II-Importa solucionar as seguintes questões:
- Se deve ser admitido o recurso quanto à matéria de facto;
- Se a decisão sobre a matéria de facto deverá ser objecto de alterações;
- Se os recorridos sofreram danos não patrimoniais que importe ressarcir.
III-Apreciação
Vejamos, agora, se deve ser admitido o recurso quanto à matéria de facto.
O art. 640º do CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto nos seguintes termos:
« 1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a)- Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b)- Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3- O disposto nos n[SUP]os[/SUP] 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº2 do art. 636º.»
Esta norma corresponde ao art. 685º-B do CPC de 1961 (na redacção dada pelo Dec-Lei n[SUP]o[/SUP] 303/2007), com o aditamento de mais um ónus a cargo do recorrente: o de especificar a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No caso concreto, a recorrente alude, no corpo das alegações à gravação da audiência, mas em sede de conclusões não delimita, como lhe compete, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
Conforme resulta do disposto nos arts. 639º e 640º do CPC e tem sido entendimento uniforme da jurisprudência, as conclusões das alegações delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem.
Assim e por não terem sido concretizados, nos termos acima indicados, em sede de conclusões, os pontos de facto controvertidos, não se admite o recurso quanto à matéria de facto.
Os factos provados são os acima indicados.
A sentença recorrida considerou que ocorreu cumprimento defeituoso do contrato por parte da ora recorrente e condenou a mesma a pagar aos recorridos uma indemnização no montante de €2000, para cada um, a título de danos não patrimoniais.
Os fundamentos da sentença foram os seguintes:
«Averiguemos, em primeiro lugar, se a Ré incorreu em alguma forma de incumprimento das obrigações assumidas para com os Autores, no âmbito do esquema contratual supra aludido.
A resposta parece-nos, claramente, positiva, pois que, com o ajustamento ocorrido com a entrega, aos Autores, de cartões de embarque correspondentes a lugares pertencentes à classe executiva, a Ré cumpriu defeituosamente a sua obrigação, ao acabar por proporcionar a estes seus passageiros a viagem em lugares pertencentes à classe turística. Apesar de esta poder não se tratar de uma obrigação essencial no contrato - o transporte, em si, não foi posto em causa, assim como não o foram qualquer dos elementos essenciais acima mencionados - trata-se de uma obrigação acessória a que, no contexto de uma viagem aérea de longo curso, os passageiros atribuem, normalmente, significativa relevância, como a Ré, através dos seus funcionários, não deveria deixar de conhecer.
É de assinalar que foi com o assentimento da própria Ré que os Autores lograram obter o desejado upgrade dos seus lugares, tendo essa operação sido feita voluntariamente, apenas não se tendo concretizado por motivo que apenas àquela pode ser imputado: foi a própria companhia que, erradamente, supôs que o voo de ligação dos primitivos titulares da reserva dos lugares em executiva não chegaria a tempo de estes poderem embarcar no voo para o Brasil, viabilizando, assim, a ocupação desses lugares pelos Autores com a entrega dos respectivos cartões de embarque, como afinal não veio a acontecer.
É de concluir, portanto, que houve cumprimento defeituoso por parte da Ré, sendo que a culpa desse deficiente cumprimento da obrigação se presume - artigo 799º do C.C.
Os danos invocados pelo cumprimento defeituoso são de natureza não patrimonial; a sua ressarcibilidade está, portanto, condicionada ao critério constante do artigo 496º do Código Civil - só serão indemnizáveis aqueles danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
É este um núcleo de danos que, pela sua própria natureza, traduzem perdas insusceptíveis de uma avaliação pecuniária, na medida em que atingem bens não integráveis no património da pessoa lesada. Do que se trata, na verdade, não é de quantificar este género de danos, nem tão pouco, afirmar "quanto" valem. Trata-se, sim, de atribuir um montante que possa servir de reparação ou satisfação por perdas que são irrecuperáveis . Assim, a nossa lei condicionou a responsabilidade por danos não patrimoniais apenas em relação àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, ganhando particular relevo a equidade, aliada às circunstâncias referidas no artigo 494º do mesmo Código e o restante circunstancialismo em que ocorreram os danos (n.[SUP]o[/SUP] 3 do citado artigo 496º); «a indemnização, tendo especialmente em conta a situação económica do agente e do lesado, é assim mais uma reparação do que uma compensação, mais uma satisfação do que uma indemnização .». Gravidade esta que, como também ensina o Prof. Antunes Varela, se deve medir por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos - em função, portanto, de um patrão médio de sensibilidade, e não da especial susceptibilidade do visado.
Como refere Pessoa Jorge, «a lei não afirma expressamente que o prejuízo, para ser reparável, tenha de apresentar um mínimo de gravidade e valor, mas tal conclusão é imposta pelo bom senso e até pelo princípio da boa-fé: a exigência de reparação desses prejuízos só poderia explicar-se pelo propósito de vexar o lesante e, como tal, não merecia a tutela do direito».
No caso sub judice, demonstrou-se que, pelos factos descritos, os Autores sentiram tristeza e vexame. É de valorizar a circunstância de a Ré não se ter coibido de manter os Autores como únicos "sacrificados" com as consequências de um erro que só à própria transportadora é imputável: não só a Ré manteve a reserva dos passageiros provenientes do voo de ligação, mas também fez tábua rasa dos lugares que os Autores detinham anteriormente e haviam os próprios seleccionado, na classe económica, forçando-os a ocuparem outros quaisquer lugares em função do puro acaso. Este pormenor revela a desatenção e desmerecimento com que os Autores foram tratados, num contexto, já de si, muito inconveniente e desagradável, a que não é difícil atribuir um cenário de desqualificação e estigmatização, a que os demandantes foram sujeitos perante os demais passageiros, ao terem de passar da executiva para a turística, como se tivessem ilegitimamente "tentado a sua sorte" ao ocupar lugares a que não teriam direito.
Não podemos qualificar a ocorrência como um mero "incómodo", como pretende a Ré. Trata-se, cremos, de uma situação quase paradigmática em que a companhia aérea, através dos seus funcionários, se aproveita, em seu benefício e para solucionar situações apenas por si própria causadas, de algum natural ascendente ou posição de domínio que, no particular contexto do transporte aéreo de passageiros, é usual verificar-se - posto que, genericamente, o passageiro comum é pessoa menos familiarizada com os procedimentos e rotinas no aeroporto e dentro do avião, tendendo a aceitar, sem questionar, as instruções e comandos que lhe são dirigidos.
Ponderando, ainda, a distância e tempo da viagem em questão - um voo intercontinental, de longo curso, portanto - bem como o custo normal associado a esta concreta viagem, julga-se adequado, por conforme com um juízo de equidade, atribuir, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a cada um dos Autores, a quantia de € 2000,00 (dois mil euros), num total, a ambos os demandantes, de € 4.000,00 (quatro mil euros), sobre a qual se vencerão os juros de mora, calculados à taxa legal, a partir do trânsito em julgado da decisão até integral pagamento.»
A recorrente entende que a Mª Juíza ignorou as cláusulas gerais que compõem o contrato de transporte celebrado entre AA e R., nomeadamente no art. 5º, nº4 que permite à recorrente mudar os passageiros de lugar.
Ora, estamos perante matéria de facto que não foi oportunamente alegada e, como tal, não consta dos factos assentes.
Conforme resulta do despacho acima indicado de 05.05.2017, o documento referente a esta parte do contrato não foi admitido, por não estarem reunidos os pressupostos da admissão de documentos com as alegações.
Não cumpre, assim, conhecer da referida cláusula contratual.
Atenta a factualidade assente, verificamos que ocorreu cumprimento defeituoso do contrato.
Estabelece o art. 496º, nº1 do Código Civil que o Tribunal deverá atender aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
De acordo com o disposto no n[SUP]o[/SUP] 4 deste preceito legal, a fixação do montante indemnizatório deverá ser norteada por critérios de equidade.
Conforme refere o Acórdão do STJ de 24.01.2012,« (...)o princípio da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais do artº496º do CC, se não limita à responsabilidade extracontratual, antes se estende, também, ao domínio da responsabilidade contratual (...)
Na verdade, como já antes do actual Código Civil, maioritariamente, se entendia, a aplicação analógica à responsabilidade contratual daquele princípio expresso no capítulo da responsabilidade extracontratual há-de justificar-se pela necessidade de proteger de forma igual os contraentes que forem vítimas da inexecução contratual, igualmente, carecidos de tutela quando as consequências resultantes dessa inexecução assumirem gravidade bastante.
Como escreveu Vaz Serra "se o direito não deve tutelar somente os interesses económicos, mas, também, os espirituais, dos homens, é razoável que o dano não patrimonial, derivado da inexecução de uma obrigação, seja susceptível de satisfação, tal como o dano patrimonial que dela, eventualmente, resulte" (BMJ, 83º, 102 e ss).
Esta conclusão resulta, aliás, na opinião da maioria, da leitura dos artº 798º e 804º,1 do CC que, ao aludirem à reparação do prejuízo e à ressarcibilidade dos danos causados ao credor, não fazem qualquer distinção entre uma e outra categoria de danos ou a restringem aos danos patrimoniais».
Embora da ocupação de um lugar em classe económica em vez da ocupação em lugar de classe executiva não resulte perda de dignidade para as pessoas que ocupam tais lugares, importa considerar os notórios transtornos físicos resultantes da mudança numa viagem com a duração do caso em apreço e o alarde que a situação causou.
Entendemos, por isso, que ocorrem danos não patrimoniais que cumpre reparar.
Consideramos, no entanto, que a indemnização fixada, de acordo com critérios de equidade, é elevada.
Atendendo às horas de viagem e ao transtorno sofrido, julgamos adequada uma indemnização no montante de €1000 para cada lesado, o que perfaz o montante de €2000.
Relator: FRANCISCA MENDES.
Processo: 7840/16
Texto
– Embora da ocupação de um lugar em classe económica em vez da ocupação em lugar de classe executiva não resulte perda de dignidade para as pessoas que ocupam tais lugares, importa considerar, a título de danos não patrimoniais, os notórios transtornos físicos resultantes da mudança, numa viagem aérea de Lisboa para o Brasil.(Sumário elaborado pela Relatora)
Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa.
I-Relatório:
A e B a presente acção declarativa comum contra C., pedindo a condenação da Ré a pagar aos Autores, a título de indemnização, valor não inferior a € 7500,00, acrescido de juros vencidos e vincendos, desde a data da citação até integral pagamento.
Para tal alegaram, em síntese:
- Os AA. viajaram de Portugal para o Brasil, onde residem, em voo da Ré, tendo reservado a sua viagem através do programa de milhas disponibilizado pela Companhia;
- Os AA. adquiriam dois bilhetes em classe económica;
- No dia da viagem e já no aeroporto, tendo verificado a existência de dois lugares vagos na classe executiva, solicitaram ao balcão o upgrade - alteração positiva - dos seus lugares para aqueles disponíveis, através da disponibilização das milhas necessárias para o efeito, o que a Ré aceitou, tendo-lhes entregue novos cartões de embarque;
- Sucede que, já instalados nesses lugares em executiva, os Autores foram surpreendidos pelos funcionários da Ré que os compeliram a regressar à classe turística - mas não aos lugares que originalmente detinham - numa situação injustificada e que causou aos Autores incómodos físicos, humilhação, vergonha e grave ofensa na sua honra e consideração, constituindo-os no direito de exigir uma compensação a título de danos não patrimoniais.
Na sua contestação, a Ré alegou, em síntese, que, tendo reconhecido a situação anómala, reembolsou o titular das milhas que estes haviam usado para fazer o upgrade e, perante a reclamação e para minimizar o incómodo causado, ofereceu a este último dois upgrades em viagem dentro da Europa. Explicou, ainda, que o upgrade para executiva foi vendido aos Autores no pressuposto, que se não veio a verificar, de que os dois lugares não iriam ser ocupados pelas reservas anteriores, provenientes de um voo de ligação.
Terminou, pedindo a sua absolvição do pedido.
Foi realizada audiência prévia.
Após a realização de audiência final, foi proferida sentença.
Pelo Tribunal a quo foram considerados provados os seguintes factos:
1.-No âmbito de um convite feito aos Autores para virem do Brasil a Portugal passar a quadra de Natal e Ano Novo, pelos seus cunhados, V. e mulher, estes últimos compraram as passagens aéreas em classe executiva Belo Horizonte-Brasil/Lisboa-Portugal e Lisboa-Portugal/Belo Horizonte-Brasil em voo da Ré, através do programa de milhas do Cartão V. tendo disponibilizado, para o efeito, um total de 170.000,00 milhas do acumulado que possuíam.
2.-No momento da compra daquelas passagens aéreas (Outubro de 2015), através do programa de milhas, a Ré não dispunha de lugares vagos, em classe executiva, no voo de regresso dos Autores ao Brasil, na data pretendida (03.01.2016).
3.-Pelo que os Autores fizeram a viagem Belo Horizonte/Lisboa em 12.12.2015 em classe executiva e o seu regresso ao Brasil, em 03.03.2016, ficou assegurado através da aquisição das respectivas passagens aéreas em classe económica, a que corresponderiam os lugares na aeronave com os n.[SUP]os[/SUP] 16A e 16B, mas inseridos na lista de espera por eventuais vagas na classe executiva.
4.-No dia da viagem de regresso, os Autores verificaram que, no sítio de internet da Ré, existiam referenciados dois lugares vagos em classe executiva, pelo que aqueles se deslocaram ao aeroporto de Lisboa, acompanhados dos seus familiares, onde, no balcão da Ré, procederam ao upgrade - alteração positiva - das passagens em classe económica de que eram portadores para a classe executiva, através da disponibilização das milhas necessárias para o efeito.
5.-Quando os Autores se apresentaram na porta de embarque, foi dada a confirmação informática do solicitado upgrade e foram entregues pelo funcionário da Ré os cartões de embarque correspondentes aos lugares 2J e 2H, da classe executiva do voo 101.
6.-Após o embarque dos Autores na aeronave e quando já estavam sentados nos lugares 2J e 2H, estes foram interpelados por um funcionário da Ré, que não puderam identificar, e foram conduzidos à classe económica, abandonando os lugares da classe executiva, com a indicação de que deveriam ocupar os lugares 21E e 21F da classe económica, com a justificação de que os lugares da classe executiva ocupados pelos Autores haviam sido vendidos a outros passageiros.
7.-Pelo mesmo funcionário da Ré, foram entregue aos Autores novos cartões de embarque, correspondentes aos lugares 21E e 21F, para onde os Autores se viram compelidos a passar, aí tendo realizado a viagem de regresso ao Brasil.
8.-A situação ora descrita foi presenciada pelos demais passageiros ocupantes da aeronave, quer da classe executiva, quer da classe económica, o que gerou vexame e vergonha aos Autores.
9.- Os Autores sentiram-se ofendidos na sua honra.
10.-Na sequência da reclamação efectuada pelo familiar dos Autores, titular do Cartão Victoria, a Ré reembolsou-o das milhas cobradas no upgrade.
11.-A Ré propôs também, ao titular do Cartão V dois upgrades em viagem dentro da Europa.
12.-Os passageiros que vieram a ocupar os lugares 2J e 2H já tinham reserva no voo dos autos, mas a Ré previa atraso no voo Bruxelas/Lisboa, de ligação ao dos autos, pelo que o upgrade foi vendido no pressuposto do atraso nesse voo de ligação.
Pelo Tribunal a quo foi ainda consignado: «Não existem outros factos provados com relevância para a apreciação da causa, designadamente:
a)- Que o funcionário da Ré tenha agido de forma rude, arrogante e prepotente, tendo chegado a ameaçar os Autores de que a demora na aceitação da troca de lugares acarretaria elevados custos à companhia (artigo 15º da petição inicial).
A restante matéria dos articulados constitui um conjunto de alegações meramente instrumental, sem relevância para a apreciação da causa, ou de afirmações conclusivas e/ou de Direito.»
Com base nos factos provados acima indicados, foi proferida a seguinte decisão:
«Pelo exposto e ao abrigo das disposições legais supra citadas, o Tribunal julga a presente acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência, condena a Ré a pagar aos Autores a quantia total de € 4.000,00 (quatro mil euros) acrescida dos juros de mora vencidos desde o trânsito em julgado da presente acção até integral pagamento.
Custas por Autores e Ré na proporção do respectivo decaimento - artigo 527º do C.P.C..»
A R. recorreu desta sentença e formulou as seguintes conclusões:
1-Os AA. compraram passagens aéreas Brasil/Lisboa em classe executiva e Lisboa/Brasil em classe económica.
2-No regresso, aquando da viagem Lisboa/Brasil compraram upgrade de classe económica para executiva.
3- Só teriam a certeza do upgrade à porta de embarque;
4- Foi-lhes dado o cartão de embarque em executiva.
5-O upgrade tinha como pressuposto os passageiros desses lugares não irem no voo dos autos.
6-Os passageiros de voo em trânsito/ligação, detentores primitivos desses lugares, chegaram atempadamente ao voo dos autos, pelo que os lugares foram-lhe restituídos.
7-Os recorridos tiveram de regressar aos primitivos lugares em económica, onde viajaram.
8-Sentiram, segundo eles, vexame e vergonha e ofendidos na sua honra;
9- A sentença condenou a recorrente no pagamento de €2000 a cada recorrido.
10-A recorrente entende que a Mª Juíza ignorou as cláusulas gerais que compõem o contrato de transporte celebrado entre AA e R., nomeadamente no art. 5º, nº4 onde permite à recorrente mudar os passageiros de lugar;
11-Aplicando a aludida cláusula contratual, como deveria ter sido, pois a recorrente tem norma legal e contratual a sustentar o seu comportamento, o acontecimento dos autos não passou de mero transtorno para os recorridos.
12-O cumprimento do contrato de transporte verificou-se, pois os passageiros foram colocados no destino;
13-Não houve cumprimento defeituoso do contrato, não cabendo aqui qualquer aplicação do art. 799º, 494º e 496º do Código Civil.
14- Não houve violação das normas contratuais, em prejuízos, nem danos morais, pelo que não há direito a indemnização.
Terminou, requerendo a revogação da decisão requerida.
Os recorridos contra-alegaram e formularam as seguintes conclusões:
a)- A impugnação da matéria de facto, deve ser esgrimida nos precisos limites definidos pelo preceituado no artigo 640.º, n.[SUP]o[/SUP] 1, alíneas a) e b), e n.[SUP]o[/SUP] 2, do CPC;
b)- Todavia, constata-se que a recorrente limita-se a invocar argumentos que denotam uma mera discordância do sentido e alcance da sentença recorrida, mas que se revelam inidóneos a abalar de modo sério e profundo o teor da decisão propalada pelo Tribunal a quo, logo, insusceptíveis de fundamentarem a sua revogação ou alteração relativamente à factualidade material considerada provada;
c)- Em relação à interpretação e aplicação dos artigos 799.º, 494.º e 496.º do Código Civil, constata-se que o Tribunal a quo não incorreu em qualquer erro de interpretação e aplicação do direito, não assistindo qualquer razão à recorrente nas críticas que tece a este respeito;
d)- No quadro do princípio da tutela da confiança e com apelo ao sub-princípio da primazia da materialidade subjacente, facilmente se descortina a existência de um concreto e objectivo cumprimento defeituoso do contrato de transporte aéreo, na medida em que da "desconformidade" em causa, resulta patente uma não correspondência entre o serviço oferecido/contratualizado, com aquele que veio a ser, efectivamente prestado, como resultou provado;
e)- De resto, tendo ficado provado de modo inequívoco a violação de direitos de personalidade dos autores, mormente, da honra, direitos legalmente protegidos pela cláusula geral contida no artigo 70.º, n.[SUP]o[/SUP] 1, do Código Civil, sendo a sua violação sancionada através da responsabilidade indemnizatória, por se tratar de danos não patrimoniais de particular gravidade no contexto circunstancial relevante, nada obsta a aplicação do preceituado no artigo 496.º, n.[SUP]o[/SUP] 1, do Código Civil, à luz da jurisprudência e da doutrina maioritárias e consolidadas em torno desta temática;
f)- Destarte, e em apertada síntese, cumpre salientar que não assiste qualquer razão à recorrente, mostrando-se o arrazoado vertido nas suas conclusões, absolutamente irrelevante e anódino, insusceptível de sustentar qualquer alteração de sentido e alcance da sentença recorrida, não merecendo o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, qualquer censura.
Terminaram, pugnando pela improcedência do recurso e pela confirmação da decisão recorrida.
Em 05.05.2017 foi proferido despacho pela relatora do presente Acórdão que não admitiu a junção aos autos de "parte de documento" (referente as cláusulas gerais de transporte).
II-Importa solucionar as seguintes questões:
- Se deve ser admitido o recurso quanto à matéria de facto;
- Se a decisão sobre a matéria de facto deverá ser objecto de alterações;
- Se os recorridos sofreram danos não patrimoniais que importe ressarcir.
III-Apreciação
Vejamos, agora, se deve ser admitido o recurso quanto à matéria de facto.
O art. 640º do CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto nos seguintes termos:
« 1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a)- Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b)- Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3- O disposto nos n[SUP]os[/SUP] 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº2 do art. 636º.»
Esta norma corresponde ao art. 685º-B do CPC de 1961 (na redacção dada pelo Dec-Lei n[SUP]o[/SUP] 303/2007), com o aditamento de mais um ónus a cargo do recorrente: o de especificar a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No caso concreto, a recorrente alude, no corpo das alegações à gravação da audiência, mas em sede de conclusões não delimita, como lhe compete, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
Conforme resulta do disposto nos arts. 639º e 640º do CPC e tem sido entendimento uniforme da jurisprudência, as conclusões das alegações delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem.
Assim e por não terem sido concretizados, nos termos acima indicados, em sede de conclusões, os pontos de facto controvertidos, não se admite o recurso quanto à matéria de facto.
Os factos provados são os acima indicados.
A sentença recorrida considerou que ocorreu cumprimento defeituoso do contrato por parte da ora recorrente e condenou a mesma a pagar aos recorridos uma indemnização no montante de €2000, para cada um, a título de danos não patrimoniais.
Os fundamentos da sentença foram os seguintes:
«Averiguemos, em primeiro lugar, se a Ré incorreu em alguma forma de incumprimento das obrigações assumidas para com os Autores, no âmbito do esquema contratual supra aludido.
A resposta parece-nos, claramente, positiva, pois que, com o ajustamento ocorrido com a entrega, aos Autores, de cartões de embarque correspondentes a lugares pertencentes à classe executiva, a Ré cumpriu defeituosamente a sua obrigação, ao acabar por proporcionar a estes seus passageiros a viagem em lugares pertencentes à classe turística. Apesar de esta poder não se tratar de uma obrigação essencial no contrato - o transporte, em si, não foi posto em causa, assim como não o foram qualquer dos elementos essenciais acima mencionados - trata-se de uma obrigação acessória a que, no contexto de uma viagem aérea de longo curso, os passageiros atribuem, normalmente, significativa relevância, como a Ré, através dos seus funcionários, não deveria deixar de conhecer.
É de assinalar que foi com o assentimento da própria Ré que os Autores lograram obter o desejado upgrade dos seus lugares, tendo essa operação sido feita voluntariamente, apenas não se tendo concretizado por motivo que apenas àquela pode ser imputado: foi a própria companhia que, erradamente, supôs que o voo de ligação dos primitivos titulares da reserva dos lugares em executiva não chegaria a tempo de estes poderem embarcar no voo para o Brasil, viabilizando, assim, a ocupação desses lugares pelos Autores com a entrega dos respectivos cartões de embarque, como afinal não veio a acontecer.
É de concluir, portanto, que houve cumprimento defeituoso por parte da Ré, sendo que a culpa desse deficiente cumprimento da obrigação se presume - artigo 799º do C.C.
Os danos invocados pelo cumprimento defeituoso são de natureza não patrimonial; a sua ressarcibilidade está, portanto, condicionada ao critério constante do artigo 496º do Código Civil - só serão indemnizáveis aqueles danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
É este um núcleo de danos que, pela sua própria natureza, traduzem perdas insusceptíveis de uma avaliação pecuniária, na medida em que atingem bens não integráveis no património da pessoa lesada. Do que se trata, na verdade, não é de quantificar este género de danos, nem tão pouco, afirmar "quanto" valem. Trata-se, sim, de atribuir um montante que possa servir de reparação ou satisfação por perdas que são irrecuperáveis . Assim, a nossa lei condicionou a responsabilidade por danos não patrimoniais apenas em relação àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, ganhando particular relevo a equidade, aliada às circunstâncias referidas no artigo 494º do mesmo Código e o restante circunstancialismo em que ocorreram os danos (n.[SUP]o[/SUP] 3 do citado artigo 496º); «a indemnização, tendo especialmente em conta a situação económica do agente e do lesado, é assim mais uma reparação do que uma compensação, mais uma satisfação do que uma indemnização .». Gravidade esta que, como também ensina o Prof. Antunes Varela, se deve medir por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos - em função, portanto, de um patrão médio de sensibilidade, e não da especial susceptibilidade do visado.
Como refere Pessoa Jorge, «a lei não afirma expressamente que o prejuízo, para ser reparável, tenha de apresentar um mínimo de gravidade e valor, mas tal conclusão é imposta pelo bom senso e até pelo princípio da boa-fé: a exigência de reparação desses prejuízos só poderia explicar-se pelo propósito de vexar o lesante e, como tal, não merecia a tutela do direito».
No caso sub judice, demonstrou-se que, pelos factos descritos, os Autores sentiram tristeza e vexame. É de valorizar a circunstância de a Ré não se ter coibido de manter os Autores como únicos "sacrificados" com as consequências de um erro que só à própria transportadora é imputável: não só a Ré manteve a reserva dos passageiros provenientes do voo de ligação, mas também fez tábua rasa dos lugares que os Autores detinham anteriormente e haviam os próprios seleccionado, na classe económica, forçando-os a ocuparem outros quaisquer lugares em função do puro acaso. Este pormenor revela a desatenção e desmerecimento com que os Autores foram tratados, num contexto, já de si, muito inconveniente e desagradável, a que não é difícil atribuir um cenário de desqualificação e estigmatização, a que os demandantes foram sujeitos perante os demais passageiros, ao terem de passar da executiva para a turística, como se tivessem ilegitimamente "tentado a sua sorte" ao ocupar lugares a que não teriam direito.
Não podemos qualificar a ocorrência como um mero "incómodo", como pretende a Ré. Trata-se, cremos, de uma situação quase paradigmática em que a companhia aérea, através dos seus funcionários, se aproveita, em seu benefício e para solucionar situações apenas por si própria causadas, de algum natural ascendente ou posição de domínio que, no particular contexto do transporte aéreo de passageiros, é usual verificar-se - posto que, genericamente, o passageiro comum é pessoa menos familiarizada com os procedimentos e rotinas no aeroporto e dentro do avião, tendendo a aceitar, sem questionar, as instruções e comandos que lhe são dirigidos.
Ponderando, ainda, a distância e tempo da viagem em questão - um voo intercontinental, de longo curso, portanto - bem como o custo normal associado a esta concreta viagem, julga-se adequado, por conforme com um juízo de equidade, atribuir, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a cada um dos Autores, a quantia de € 2000,00 (dois mil euros), num total, a ambos os demandantes, de € 4.000,00 (quatro mil euros), sobre a qual se vencerão os juros de mora, calculados à taxa legal, a partir do trânsito em julgado da decisão até integral pagamento.»
A recorrente entende que a Mª Juíza ignorou as cláusulas gerais que compõem o contrato de transporte celebrado entre AA e R., nomeadamente no art. 5º, nº4 que permite à recorrente mudar os passageiros de lugar.
Ora, estamos perante matéria de facto que não foi oportunamente alegada e, como tal, não consta dos factos assentes.
Conforme resulta do despacho acima indicado de 05.05.2017, o documento referente a esta parte do contrato não foi admitido, por não estarem reunidos os pressupostos da admissão de documentos com as alegações.
Não cumpre, assim, conhecer da referida cláusula contratual.
Atenta a factualidade assente, verificamos que ocorreu cumprimento defeituoso do contrato.
Estabelece o art. 496º, nº1 do Código Civil que o Tribunal deverá atender aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
De acordo com o disposto no n[SUP]o[/SUP] 4 deste preceito legal, a fixação do montante indemnizatório deverá ser norteada por critérios de equidade.
Conforme refere o Acórdão do STJ de 24.01.2012,« (...)o princípio da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais do artº496º do CC, se não limita à responsabilidade extracontratual, antes se estende, também, ao domínio da responsabilidade contratual (...)
Na verdade, como já antes do actual Código Civil, maioritariamente, se entendia, a aplicação analógica à responsabilidade contratual daquele princípio expresso no capítulo da responsabilidade extracontratual há-de justificar-se pela necessidade de proteger de forma igual os contraentes que forem vítimas da inexecução contratual, igualmente, carecidos de tutela quando as consequências resultantes dessa inexecução assumirem gravidade bastante.
Como escreveu Vaz Serra "se o direito não deve tutelar somente os interesses económicos, mas, também, os espirituais, dos homens, é razoável que o dano não patrimonial, derivado da inexecução de uma obrigação, seja susceptível de satisfação, tal como o dano patrimonial que dela, eventualmente, resulte" (BMJ, 83º, 102 e ss).
Esta conclusão resulta, aliás, na opinião da maioria, da leitura dos artº 798º e 804º,1 do CC que, ao aludirem à reparação do prejuízo e à ressarcibilidade dos danos causados ao credor, não fazem qualquer distinção entre uma e outra categoria de danos ou a restringem aos danos patrimoniais».
Embora da ocupação de um lugar em classe económica em vez da ocupação em lugar de classe executiva não resulte perda de dignidade para as pessoas que ocupam tais lugares, importa considerar os notórios transtornos físicos resultantes da mudança numa viagem com a duração do caso em apreço e o alarde que a situação causou.
Entendemos, por isso, que ocorrem danos não patrimoniais que cumpre reparar.
Consideramos, no entanto, que a indemnização fixada, de acordo com critérios de equidade, é elevada.
Atendendo às horas de viagem e ao transtorno sofrido, julgamos adequada uma indemnização no montante de €1000 para cada lesado, o que perfaz o montante de €2000.
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