(...)
Terceira questão: saber se a autora incorreu em justa causa de despedimento.
Conformando-se com a garantia constitucional da estabilidade no emprego e da proibição dos despedimentos sem justa causa decorrente do art. 53º da Constituição da República Portuguesa (CRP), prescreve o art. 338º CT/2009 que "É proibido o despedimento sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos.", estatuindo o n[SUP]o[/SUP] 1 do art. 351º do mesmo diploma que "Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho".
Por sua vez, no n[SUP]o[/SUP] 2 da mesma disposição legal, a título exemplificativo, o legislador concretizou alguns dos comportamentos do trabalhador que poderão constituir, eventualmente, justa causa de despedimento.
Os n[SUP]os[/SUP] 1 e 2 do art. 351º do CT/2009 correspondem, no essencial, aos n[SUP]os[/SUP] 1 e 3 do art. 396º do CT/2003, bem como aos n[SUP]os[/SUP] 1 e 2 do art. 9º da anterior Lei dos Despedimentos (DL 64-A/89, de 27/02), pelo que mantiveram actualidade a doutrina e jurisprudência anteriores, relativas à justa causa de despedimento.
Ora, segundo tem sido doutrina e jurisprudência pacíficas, a existência de justa causa de despedimento nos termos do citado preceito, exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
1) um, de natureza subjectiva, traduzido num comportamento ilícito "A exigência de ilicitude do comportamento do trabalhador não resulta expressamente do art. 351º, n[SUP]o[/SUP] 1, mas constituiu um pressuposto geral do conceito de justa causa para despedimento, uma vez que, se a atuação for lícita, ele não incorre em infração que possa justificar o despedimento." - Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, Parte II - Situações Laborais Individuais, 3ª edição, pp. 900/901; no mesmo sentido, Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, Abril 2002, pp. 851/852, António Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, 1994, pp. 820/821. e culposo do trabalhador, que não tem de ser praticado no local de trabalho Menezes Leitão, Direito do Trabalho, 2ª edição, p. 481., mas que tem de traduzir-se num incumprimento Não cumprimento definitivo, simples mora ou mero cumprimento defeituoso. grave dos deveres contratuais Principais, secundários ou meramente acessórios. do trabalhador;
2) outro, de natureza objectiva, que se traduz na impossibilidade de subsistência da relação de trabalho;
3) e, ainda, a existência de nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade de subsistência da relação laboral.
Assim, para que se esteja perante justa causa de despedimento torna-se necessário que haja um comportamento culposo do trabalhador e que a sua gravidade seja de tal ordem que torne impossível a subsistência da relação de trabalho.
A justa causa do despedimento pressupõe uma acção ou uma omissão imputável ao trabalhador a título de culpa Devendo aqui ser relevadas e valoradas, sendo o caso, as circunstâncias atenuantes e as causas de exclusão da culpa que no caso se tenham registado - v.g. o estado de necessidade desculpante, o erro, a falta de consciência da ilicitude do facto, a anomalia psíquica ou obediência desculpante., e violadora dos deveres principais, secundários ou acessórios de conduta a que o trabalhador, como tal, está sujeito, deveres esses emergentes do vínculo contratual, cuja observância é requerida pelo cumprimento da actividade a que se obrigou, pela disciplina da organização em que essa actividade se insere, ou, ainda, pela boa-fé que tem de registar-se no cumprimento do contrato.
Não basta, porém, aquele comportamento culposo do trabalhador. É que, sendo o despedimento a mais grave das sanções, para que o comportamento do trabalhador integre a justa causa é ainda necessário que seja grave em si mesmo e nas suas consequências Como escreve Maria Palma Ramalho, a gravidade pode ser reportada ao comportamento em si mesmo ou às consequências que dele decorram para o vínculo laboral - Direito do Trabalho, Parte II - Situações Laborais Individuais, 3ª edição, p. 902., de modo a tornar impossível a subsistência da relação laboral Não se trata aqui de uma impossibilidade material, estando em causa, ao invés, uma situação de inexigibilidade decorrente da inverificação das condições mínimas de suporte de uma vinculação duradoura, a ser aferida através de um juízo de probabilidade, de prognose, sobre a viabilidade da relação de trabalho..
E a gravidade do comportamento do trabalhador não pode aferir-se em função do critério subjectivo do empregador, devendo atender-se a critérios de razoabilidade, considerando a natureza da relação laboral, o grau de lesão dos interesses da entidade empregadora, o carácter das relações entre as partes e demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes - n[SUP]o[/SUP] 3 do art. 351º do Código do Trabalho/2009.
Tanto a gravidade como a culpa hão-de ser apreciadas em termos objectivos e concretos, de acordo com o entendimento de um bom pai de família ou de um empregador normal, em face do caso concreto, e segundo critérios de objectividade e razoabilidade (cfr. art. 487º/2 CC), sendo certo que o comportamento culposo do trabalhador apenas constitui justa causa de despedimento quando determine a impossibilidade prática da subsistência da relação laboral.
Por isso se pode afirmar que existe justa causa de despedimento quando o estado de premência do despedimento seja de julgar mais importante que os interesses opostos na permanência do contrato, só se podendo concluir pela existência de justa causa, quando, em concreto e tendo em conta os factos praticados pelo trabalhador, seja inexigível ao empregador o respeito pelas garantias da estabilidade do vínculo laboral.
Assim, existirá impossibilidade prática de subsistência da relação laboral sempre que, nas circunstâncias concretas, a permanência do contrato e das relações pessoais e patrimoniais que ele importa, sejam de forma a ferir, de modo exagerado e violento, a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal, colocada na posição do empregador, ou seja, sempre que a continuidade do vínculo represente uma insuportável e injusta imposição ao empregador (cfr. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 8.ª edição, vol. I, págs. 461 e segs; Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, 1991, págs. 822; Lobo Xavier, Curso de Direito do Trabalho, 1992, págs. 488; Jorge Leite e Coutinho de Almeida, em Colectânea de Leis do Trabalho, 1985, págs. 249).
E porque o despedimento é sempre um facto socialmente grave por lançar o trabalhador no desemprego e atendendo a que tal sanção é a mais grave do elenco das sanções disciplinares previstas no CT/2009, a justa causa só deve operar quando o comportamento do trabalhador é de tal modo grave em si mesmo e nas suas consequências, que não permite, em termos de razoabilidade, a aplicação de sanção viabilizadora da manutenção da relação de trabalho, não esquecendo que a sanção disciplinar deve ser sempre proporcionada à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor (princípio da proporcionalidade - art. 330º/1 do CT/2009).
Este princípio da proporcionalidade Cfr. acórdão do STJ de 8/1/2013, proferido no processo 447/10.4TTVNF.P1.S1., que é comum a todo e qualquer direito punitivo, implica uma dupla apreciação: a determinação da gravidade da falta e a graduação das sanções.
A primeira resultará da apreciação do facto delituoso em si, das circunstâncias em que ocorreu a sua prática, das suas consequências, da culpabilidade e dos antecedentes disciplinares do arguido.
A segunda justifica-se na medida em que apenas se deverá aplicar uma sanção mais grave quando sanção de gravidade menor não for suficiente para defender a disciplina dentro da empresa - Pedro Sousa Macedo, Poder Disciplinar Patronal, págs. 55/ 56.
Cabe, agora, apreciar a situação em apreço.
Fazendo-o, diremos, desde já, que tal como decidido pelo tribunal recorrido, consideramos que assistia à ré o direito de despedir a autora com justa causa.
É sabido que no desempenho funcional a que se obriga o trabalhador está sujeito ao dever de cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho (art. 128º/1/e do CT/09), sendo absolutamente cristalino, em face do constante dos pontos 3.4, 3.5, 3.8 a 3.10, que a autora violou tal dever.
Por outro lado, naquele desempenho o trabalhador está obrigado a tratar com urbanidade todas as pessoas que se relacionem com a empregadora (art. 128º/1/e do CT/09), sendo absolutamente cristalino, em face do constante dos pontos 3.4, 3.8 e 3.9, que a autora violou tal dever.
A violação desses deveres não pode deixar de qualificar-se como grave, tendo em conta a natureza pessoal dos bens jurídicos lesados com as condutas da apelante, os quais são dignos de tutela constitucional e convencional internacional (arts. 25º/1 e 69º/1/2 da CRP; art. 19º/1/2 da Convenção sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova Iorque a 26 de Janeiro de 1990, aprovada para ratificação pela Resolução da AR 20/90, de 12 de Setembro, ratificada pelo Decreto do Presidente da República 49/90, da mesma data), a intencionalidade das condutas da apelante que lhes esteve subjacente, as consequências físicas decorrentes para a menor Mara da agressão a que foi sujeita, a indemonstração de qualquer circunstancialismo que permita enquadrar a actuação da autora à luz de qualquer causa justificadora ou de atenuação, a circunstância da autora não ser titular de qualquer direito de correcção em relação à menor, bem assim como o facto de a visada com a conduta ilícita da autora ser uma criança de 4 anos, com a fragilidade própria de uma criança dessa idade, para mais institucionalizada em organização de protecção de crianças em risco.
Além e disso mais grave ainda, ao actuar daquela descrita forma, a autora minou irremediavelmente a confiança sem a qual não pode subsistir uma relação de trabalho e, por essa via, violou o dever de lealdade a que estava obrigada para com a ré.
Com efeito, tendo presente o dever de lealdade a que a autora estava adstrita para com a ré (art. 128º/1/f do CT/2009), é sabido que no âmbito das relações jurídicas de trabalho subordinado, o trabalhador deve proceder de boa-fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento dos seus deveres [arts. 126º/1 CT/2009 e 762º/2 CC - com a ideia de boa-fé estão relacionadas, como é sabido, as ideias de fidelidade, lealdade, honestidade e confiança na realização e cumprimento dos negócios jurídicos (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, Coimbra Editora, 1968, p. 2)], estando sujeito à obrigação de cumprir um conjunto de deveres que estão enunciados no art. 128º/1 do CT/2009, alguns principais, como por exemplo o de realizar o trabalho com zelo e diligência (alínea C), outros secundários, como por exemplo o de velar pela conservação e boa utilização dos bens relacionados com o seu trabalho (alínea G), e ainda outros que são acessórios de conduta, deduzidos do princípio geral da boa-fé supra referido, como por exemplo o de guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios (alínea F) - Maria do Rosário Palma Ramalho qualifica o referido dever de lealdade e outros, como por exemplo os de respeito e urbanidade e de custódia, como deveres acessórios autónomos, os quais, não dependendo propriamente da prestação principal (a actividade laboral), surgem com a celebração do contrato, mantêm-se ao longo da sua execução, subsistem nas situações de não prestação do trabalho e/ou de suspensão do contrato e perduram mesmo para além da cessação do vínculo (Direito do Trabalho, Parte II, 2010, p. 412).
Por outro lado, é sabido que a confiança entre o empregador e o trabalhador desempenha um papel essencial nas relações de trabalho, tendo em consideração a forte componente fiduciária daquelas; com efeito, a relação juslaboral pressupõe a integridade, lealdade de cooperação e absoluta confiança da/na pessoa contratada.
Do mesmo modo, sabe-se que a subsistência daquela confiança pressupõe a observância do mencionado dever de lealdade do trabalhador para com o empregador, pois que aquela será sempre afectada, podendo mesmo ser irremediavelmente destruída, quando se fere o mencionado dever, sendo que a observância deste é fundamental para o correcto implemento dos fins prático-económicos a que o contrato se subordina.
"Em geral, o dever de fidelidade, de lealdade ou de "execução leal" tem o sentido de garantir que a actividade pela qual o trabalhador cumpre a sua obrigação representa de facto a utilidade visada, vedando-lhe comportamentos que apontem para a neutralização dessa utilidade ou que, autonomamente, determinem situações de "perigo"(-) para o interesse do empregador ou para a organização técnico-laboral da empresa(-)...", sendo que "...o dever geral de lealdade tem uma faceta subjectiva que decorre da sua estreita relação com a permanência de confiança entre as partes (nos casos em que este elemento pode considerar-se suporte essencial de celebração do contrato e da continuidade das relações que nele se fundam)..." e que, encarado de um outro ângulo, "... apresenta também uma faceta objectiva, que se reconduz à necessidade do ajustamento da conduta do trabalhador ao princípio da boa-fé no cumprimento das obrigações...", "... com o sentido que lhe é sinalizado pelo art. 119.º/1 CT...", donde promana, "... no que especialmente respeita ao trabalhador, o imperativo de uma certa adequação funcional - razão pela qual se lhe atribui um cariz marcadamente objectivo - da sua conduta à realização do interesse do empregador, na medida em que esse interesse esteja "no contrato", isto é, tenha a sua satisfação dependente do cumprimento (e do modo do cumprimento) da obrigação assumida pela contraparte." - Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 12.ª edição, Almedina, pp. 231 a 234.
O "... dever de lealdade manifesta-se hoje, basicamente, nos deveres de não concorrência e de sigilo profissional, sendo expressão da boa-fé contratual e significando que o trabalhador não deverá aproveitar-se da posição funcional que ocupa na empresa em detrimento do empregador (desviando a sua clientela, revelando segredos à concorrência, etc.)" - Leal Amado, Contrato de Trabalho, 2.ª edição, Coimbra Editora, p. 386.
Trata-se, conforme o exposto, de um dever que numa vertente objectiva se traduz na necessidade do trabalhador ajustar o seu comportamento ao princípio da boa-fé no cumprimento do contrato, e numa vertente subjectiva se reconduz à relação de confiança entre as partes que impõe que a conduta do trabalhador não seja susceptível de abalar tal confiança e, assim, criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura do comportamento do trabalhador - cfr. acórdãos do STJ de 14/4/1999, Acs Dout. do Supremo Tribunal Administrativo, Ano XXXVIII, N.[SUP]o[/SUP] 456, p. 1653, de 17/04/1996 e de 14/01/1998, proferidos, respectivamente, nos processos 4429 e 110/1997.
Como assinala Joana Vasconcelos, em artigo que publicou sobre "O conceito de justa causa de despedimento", é necessário fazer "um juízo de prognose, de probabilidade sobre a viabilidade futura da relação de trabalho" - Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, Vol. II, Almedina, pp. 33/34.
Naturalmente que esse dever de lealdade não apresenta, sempre, o mesmo conteúdo; ao invés, este varia em função da natureza das funções do trabalhador, sendo mais acentuado quanto mais qualificadas forem as funções desempenhadas pelo trabalhador na organização técnico-laboral do empregador; coerentemente com o acabado de afirmar, o juízo de censura dirigido ao trabalhador não tem de ser sempre igual, devendo ser tanto mais severo quanto mais elevado for o grau de confiança estabelecido entre as partes, objectivado nas funções confiadas ao trabalhador na respectiva estrutura organizativa da empresa.
Atente-se, no entanto, em que dado o carácter absoluto do dever de lealdade e a consequente impossibilidade de gradações na perda da confiança A confiança existe ou deixa de existir. Deixando de existir, não há o suporte psicológico mínimo para o desenvolvimento da relação laboral. (v.g., acórdãos do STJ de 22/1/1992, Ac. Dout. 373º, p.108, de 20/3/1996, Ac. Dout. 416º-417º, p.1069, e de 18/12/1991, BMJ 412, p. 342, acórdãos da Relação do Porto de 10/6/1997, CJ, 1997, T. 4, p. 256, de 5/12/11, proferido na apelação 513/10.6TTMAI.P1, de 12/9/2011, proferido na apelação 787/10.2TTPRT.P1, de 21/5/2012, proferido no âmbito da apelação 1212/09.7TTGMR.P1, da Relação de Lisboa de 8/2/2012, proferido no âmbito da apelação 3061/03.7TTLSB.L1-4, de 26/9/2012, proferido no âmbito da apelação 1004/10.0TTLRS.L1, de 15/1/03, proferido no processo 7777/02; na doutrina pode consultar-se, por exemplo, Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, pp. 826 a 828, Lobo Xavier, Da Justa Causa de Despedimento no Contrato de Trabalho, p. 19, e José Andrade Mesquita, Direito do Trabalho, 2ª edição, 2004, p. 556), a diminuição de confiança resultante da violação deste dever não está dependente da verificação de prejuízos materiais, nem da existência de culpa grave do trabalhador: por isso, a simples materialidade desse comportamento lesivo do dever em apreço, aliado a um moderado grau de culpa do trabalhador pode, em determinado contexto, levar a um efeito redutor das expectativas de confiança (acórdão do STJ de 11/10/1995, publicado na CJ, tomo III, p. 277).
Como decidiu o STJ no acórdão de 03/04/1987, "Ainda que o prejuízo da entidade patronal seja pequeno, mais que isso releva a quebra de confiança que o comportamento do trabalhador provoca." (BMJ, n.[SUP]o[/SUP] 366, p. 425).