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O roquinho dos Açores.

Satpa

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Uma história de evolução. O roquinho dos Açores.

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O Roquinho (Oceanodroma castro), também conhecido por Angelito ou Painho-da-Madeira, é uma ave marinha, que passa a maior parte da vida no mar. Voa, alimenta-se e descansa nas águas do oceano, vindo a terra para se reproduzir em cavidades e falésias, de ilhas no meio do Atlântico e do Pacífico.

É de facto uma espécies com uma distribuição geográfica impressionante: dos Açores e Madeira às Galápagos e ao Japão. Durante a reprodução, as crias, uma por ninho, esperam, num jejum que pode durar dez dias, que um dos progenitores regresse com alimento para elas, revelando uma impressionante resistência física.

Há duas décadas, um biólogo português procurava compreender os efeitos da poluição sobre as espécies de aves marinhas, para a realização da sua tese de doutoramento. Mas, ao trabalhar de perto com as populações do roquinho nas várias ilhas e ilhéus dos Açores, Luis Monteiro apercebeu-se de que a espécie tinha duas populações nidificantes: uma iniciando a reprodução em Maio (população quente) e a outra em Outubro (população fria), e que elas se segregavam, revelando importantes diferenças morfológicas e comportamentais. Isso levou-o a sugerir que poderiam tratar-se de duas espécies diferentes.

Infelizmente, um fatídico e terrível acidente áereo, ocorrido a 11 de Dezembro de 1999, na crista vulcânica da ilha de S. Jorge, que vitimou todos os ocupantes, impediu Luis Monteiro de continuar o seu estudo sobre as duas populações do roquinho.

Mas, a sua grande dedicação à investigação e a forma extremamente empática e generosa com que interagia com todos os que com ele lidavam, deixaram uma marca indelével. A sua perda foi profundamente sentida. O Governo Regional dos Açores instituiu mesmo o Prémio Luis Rocha Monteiro em homenagem à sua memória.

Eu tive o privilégio de conhecer o Luis Monteiro e de iniciarmos uma colaboração que não chegou a prosseguir. Mas, vários colegas e colaboradores decidiram dar continuidade às suas investigações sobre as duas populações de Roquinho que nidificam nos ilhéus da praia e da vila (Graciosa).

Há poucos meses surgiu um artigo na revista de ornitologia Ibis, assinado por Mark Bolton, Andrea Smith, Elena Gómez-Dias, Vicki Friesen, Renata Medeiros, Joel, Bried, Jose Roscales, e Robert Furness, apresentando argumentos muito sólidos de que a população quente é uma espécie diferente da população fria. E propõem uma nova espécie: Oceanodroma monteiroi (roquinho-de-monteiro), um bonito gesto que é também justa homenagem ao Luis Monteiro.

O estudo compara as duas populações em termos de morfologia – a população quente, proposta como nova espécie, é mais leve, tem asas maiores, cauda furcada em ‘v’ e bico mais curto -, época de reprodução – quase não há sobreposição entre as duas populações – e comportamentais – as vocalizações das aves das duas populações são claramente distintas -, concluindo por uma clara diferenciação que justifica considerá-las espécies distintas.

Um artigo de 2007, publicado nos Proceedings of the National Academy of Sciences (USA), já havia mostrado, por análise genética, que não há troca de indivíduos entre as duas populações e, que elas terão divergido há mais de 73 000 anos.

Ainda um outro estudo de 2007 comparou as vocalizações das populações dos Açores, Cabo Verde e Galápagos, e realizou testes no terreno, mostrado que as aves da população quente só respondiam a vocalizações dessa população e não às das restantes, e vice-versa, mostrando que elas se diferenciam muito claramente.

Estes dados indicam existir um isolamento pré-reprodutivo, de natureza comportamental, fundamental para manter as duas populações isoladas reprodutivamente, apesar de ocorrerem no mesmo local.

Estou convencido de que o estatuto de espécie virá a ser reconhecido a esta população, recebendo a bonita designação de Oceanodroma moteiroi. Esta espécie parece apenas reproduzir-se nas ilhas do grupo ocidental dos Açores, não tendo mais do que 250-300 pares, o que faz dela também uma das espécies de aves mais raras do mundo.

A história do roquinho é muito interessante pelo facto de ser muito difícil encontrar exemplos de especiação simpátrica, isto é, da formação de espécies habitando o mesmo local, sem isolamento geográfico que impeça o fluxo de genes entre as populações.

Fonte: Rerum Natura
 

Satpa

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Uma história de evolução. O roquinho dos Açores. Parte II

Uma história de evolução. O roquinho dos Açores. Parte II

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Há dias publiquei um post sobre a história do Roquinho e das investigações, iniciadas pelo biólogo Luis Monteiro, que conduziram à recente proposta de uma nova espécie, Oceanodroma monteiroi, constituida pela população que nidifica no período quente (Abril-Outubro), em alguns ilhéus junto da Graciosa, no arquipélago dos Açores. Adiantando-me, utilizarei as designações de Roquinho e de Roquinho-de-monteiro, para designar a espécie original e a nova espécie, que são também as populações reprodutoras fria e quente.

O processo de especiação, embora extremamente importante, na medida em que constitiui a base da diversidade das formas de vida, já que se não houvesse barreiras reprodutivas seria impossível uma diferenciação tão vasta como a que conhecemos, não é fácil de estudar, por razões óbvias. São necessárias milhares de gerações para que um processo de especiação se complete, pelo que dificilmente podemos observar um inteiro, no curto período de tempo das nossas vidas, ou da nossa ciência.

Darwin sugeriu a possibilidade da formação de novas espécies no mesmo local, ou especiação simpátrica. Mas, tal ocorrência foi refutada por Ernst Mayr, um dos maiores evolucionistas do Séc. XX, que sistematizou e teorizou o processo de especiação, a partir da genética de populações. Segundo Mayr, seria sempre necessária alguma forma de isolamento geográfico (alopatria) para que a divergência genética entre duas populações se fosse acumulando até ao ponto em que os genomas se tornassem incompatíveis e deixasse de ser possível o entrecruzamento entre elas. Esta forma de especiação designa-se por especiação alopátrica, literalmente ‘em locais distintos’.

Os casos de espécies muito parecidas ocorrendo nos mesmos locais seriam, assim, explicados por uma convergência secundária das duas espécies num mesmo local, depois de se terem especiado em zonas geograficamente isoladas entre si. Um exemplo clássico é o das espécies em anel, como a gaivota-argentea que têm populações espalhadas pelo globo, formando uma banda à mesma latitude, cada uma um pouco diferente da vizinha, até que se encontram, depois de um arco de mais de 30 mil Km. E, nesses locais (Europa ocidental), as populações já são duas espécies bem distintas que não se cruzam. É como se tivéssemos representado no espaço o tempo de especiação.

A refutação de Mayr não foi, contudo, convincente na medida em que, embora se aceite que a forma de especiação por ele defendida será a mais fácil e frequente, não deixa de ser admissível a especiação simpátrica. O difícil é encontrar exemplos.


Ora o exemplo do Roquinho e do Roquinho-de-monteiro ilustra um verdadeiro caso de especiação simpátrica em vertebrados terrestres. Os dados moleculares revelam que a população fria dos Açores (roquinho) está geneticamente mais próxima das populações da Madeira, das Berlengas ou das Canárias do que da população quente dos Açores, ou Roquinho-de-monteiro.

A medição do tempo de divergência evolutiva entre as duas populações é de 75 mil a 180 mil anos. Como a população quente dos Açores só ocorre naquele arquipélago, é pouco provável que a formação da nova espécie se tenha dado em locais separados. Aliás, dada a extrema mobilidade das aves destas espécies – são frequentemente capturados no golfo do México, indivíduos anilhados nos Açores –, não se pode falar de isolamento geográfico nas ilhas atlânticas.

Curiosamente, também nas Galápagos e em Cabo Verde ocorrem duas populações nidificantes em período quente e frio. Também aqui parece haver uma certa segregação entre as populações. Mas, ao contrário do que sucede nos Açores, ocorre fluxo genético entre as populações quente e fria. Isto é, podemos estar a assistir a um processo incipiente de especiação, que poderá vir a evoluir no mesmo sentido do que se verificou nos Açores.

Mas, como podem evoluir espécies num mesmo local?


Um elemento fundamental deste isolamento simpátrico é o das barreiras comportamentais entre populações. Se os membros de uma população só acasalarem entre si e segregarem os da outra, através de formas de reconhecimento intrapopulacional, escolha do par, ou outra forma de segregação entre indivíduos pertencentes às duas populações, cria-se uma barreira ao fluxo genético. Neste contexto, a descoberta de que as vocalizações das duas espécies nos Açores são bem distinguíveis e que os indivíduos de cada população só respondem às vocalizações da sua população e não às da outra é muito elucidativa.

A formação da nova espécie de roquinho (Oceanodroma monteiroi) nos Açores é um caso excepcional de história evolutiva, mas também de história humana, pela forma como nasceu e se desenvolveu a investigação sobre estas duas populações. A riqueza da natureza está nos detalhes. É preciso saber olhar para eles, como o Luis Monteiro soube olhar.


Fonte: Rerum Natura
 
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