Enrolamos o estojo, descemos do nosso posto e vamos direitos ao carro, no Gola. De caminho, como sempre, mesmo em passo descansado, vou parando e escutando ao mesmo tempo que dou uma vista de olhos com os binóculos. Nada, e o sono já pesa... Dobramos a curva da ribeira com todo o vagar e, chegando ao carro, vamos já de conversa comentando o que se passara… Nisto, lá longe, muito lá para diante… O grito estridente da garça! Está espantada e zangada…!! Grita e volta a gritar! Rápidamente, num instante, deixo a mochila encostada ao pé de uma azinheira e seguimos ribeira abaixo. O Pedro vai um pouco contra vontade, para ele já chega... Mais e maior gritaria das garças…! Já não é só uma, são duas ou três…! Vou andando à pressa, páro, espreito pelo binóculo, e com as mãos atrás dos ouvidos tento ouvir o mínimo barulho que me possa indicar o que possa ter espantado assim as garças que, cada vez mais longe, ainda protestam enérgicamente. Continuamos, andamos mais e paramos. Mais um pouco… Parece-me ouvir a água... Ouço mexer a água! Serão lontras…? Quase corremos, para baixo, sempre para baixo… Direitos ao barulho que mal se distingue. Paramos, nada vejo, nem com binóculo, nem sem binóculo…! Mas ouço agora, longe e distinto, o som surdo e abafado do cascalho a ser pisado, de mistura com o mexer da água. Estão na água! Mais passos, e água a rebolhar… São porcos de certeza! Um ou dois…! A brisa, Norte, como sempre, corre para baixo encanada pelo vale da ribeira e segue direitinha a eles… Se ficamos especados sentem-nos não tarda… Nem os chegaremos a ver…! Toca a andar para a encosta da esquerda! Para cima, para cima… Bem para cima, para lhe sairmos do vento! Paramos a meia barreira. Com o binóculo, com calma, vou batendo todos os recantos e sombras. Nada… E nada! De repente, lá adiante, à direita, na imensa cascalheira que brilha à Lua, materializa-se uma sombra. Minúscula…! Depois outra, ainda mais pequena. Raios…! Parece que nasceram do chão! Subiram de um fundão e dirigem-se num chouto rápido para o lado de cá, onde desaparecem no meio das trafeiras, antes da margem. Novamente o barulho de água... Entrego o binóculo ao Pedro, que fica ali e sigo ligeiro, sózinho, direito a eles. Apanho as veredas das vacas, que se estendem à meia barreira e estão feitas em pó. Vou, num passo largo, rápido, inclinado, quase a correr, pisando leve… Não há um segundo a perder! Páro, e volto a escutar. Estou agora a uns oitenta ou cem metros. Ouço claro o borbulhar da água e um estralejar rijo e inconfundível… Estão a comer ameijoões, de que são muito gulosos. Sempre em completo silêncio, sigo, com os maiores cuidados, mas sem perder tempo, até que me sinto bem emparelhado com eles. Só me movimento, agora, quando ouço bem distinto o seu barulho… Continuo mais um pouco, passo além do ruído… Desço agora a barreira com todo o cuidado possível, vou parando e andando. Mais parando que andando. Torcendo-me para evitar toques nos ramos… Cautela, que o mato está seco e duro… Nem um roçar! Chego à várzea um pouco por baixo da mexida que se ouve. Como deve ser…! Contornei-os, e estou agora por baixo do vento que os serve. Estão fritos!! Lenta e cuidadosamente, acompanhando sempre o botão entre os dedos, destravo a minha belíssima e fiel Remington 1100. Agora, com a aragem já fresca na cara, aproximo-me por trás, dobrado e tenso, devagarinho… Páro, de cócoras, que a silhueta direita, com a Lua que está, é fatal…! Se eles param, eu paro! Levanto-me, dobrado, dou mais uns passos… Nem toco no chão! Agacho-me e assim fico... Estou em cima deles! Mesmo em cima deles! O mais próximo tenho-o a menos de oito metros, está todo dentro da água, para a direita, parado, quarteado, quase de costas… Encostado a uma rocha comprida que segue d'enquilhado e que quase o tapa. Está meio escondido. Não me parece ser o maior… onde andará o outro…? Nisto, um rebolhar violento vindo de trás da rocha, e vejo então erguer-se, escorrendo água, a cabeçorra, as orelhas e o cachaço do porco que tenho quase de baixo de mim, no seguimento do lombo que já estava vendo…! É o grande!! Estava de cabeça mergulhada à busca do petisco! Ao sacudir as orelhas, saltam salpicos e brilham-lhe as facas… Meto a arma á cara, mas atirar não posso, que ele dá dois passos arrastados adiante enquanto mastiga, tarrincando horrívelmente, e ainda se me tapa mais com o raio da rocha… O rilhar da casca das amêijoas é aflitivo, arrepia…! Como conseguem…!!?