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O abutre-preto regressou ao território português

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Jun 4, 2016
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O abutre-preto regressou ao território português
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Esta pequena vitória dos esforços de conservação da biodiversidade constitui uma segunda oportunidade para uma das mais emblemáticas aves necrófagas europeias.
Texto e fotografias: Hugo Marques
Com passos seguros, o pequeno grupovai calcorreando um antigo trilho de pastores no Parque Natural do Douro Internacional às primeiras horas do dia. Com arribas salpicadas de velhos zimbros, azinheiras e oliveiras seculares, este território selvagem, inserido num dos mais remotos espaços da Península Ibérica, acolhe há poucos anos uma pequena colónia nidificante da maior ave necrófaga que ocorre na Europa, o enorme abutre-preto.
Em 2018, o biólogo José Alberto Pais encontrou na Biblioteca do Palácio da Ajuda um manuscrito de 1780 relatando o abate, na localidade de Vaqueiros (Santarém), de uma ave que, pelas características descritas, seria um abutre-preto. É o mais antigo registo conhecido da espécie no nosso território. Muita água passou desde então sob a ponte e esta ave já teve o seu epitáfio escrito em Portugal, integrando a longa lista de perdas de espécies selvagens. Foi vítima durante décadas de envenenamento, um processo que visava outros predadores mas que de forma indirecta atingia os necrófagos. O uso de pesticidas era igualmente estimulado para controlo de espécies daninhas, mas teve um impacte tremendo. “Quando foi finalmente proibido, na década de 1970, já a espécie estava quase aniquilada”, explica o biólogo Carlos Pacheco, especialista em aves necrófagas.
O envenenamento, hoje classificado como crime ambiental, foi legal durante décadas. A electrocução ou colisão com postes e linhas eléctricas, o abate ilegal, a degradação do habitat, nomeadamente através de processos de florestação com espécies exóticas e práticas agrícolas intensivas, a redução de disponibilidade alimentar e a perturbação humana, entre outros factores, pareciam conduzir o abutre-preto à galeria das recordações. No final do século XX, a espécie já não nidificava em território nacional, mas, nos últimos anos, abriu-se uma janela de esperança
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Em 2010, dois casais de abutre-preto instalaram-se no Parque Natural do Tejo Internacional e inverteram a história. A majestosa silhueta voltou a ser avistada a planar na zona da raia e no Alentejo profundo, embora ainda em pequenos grupos. O regresso não resultou de um processo articulado de conservação, embora tivessem sido criadas condições de sossego e alimentação que decerto contribuíram para o desfecho.
Na Europa Ocidental, a espécie está intimamente ligada a ecossistemas mediterrâneos, escolhendo maciços de azinheira ou pinheiro para nidificar, em locais remotos com orografia acidentada e afastados da presença humana. O abutre-preto é muitas vezes observado em companhia dos seus congéneres grifo e britango (também conhecido como abutre do Egipto) e as medidas de conservação direccionadas para estas espécies facilitaram o seu regresso.

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O mapa representa os movimentos de quatro abutres-pretos monitorizados pelo projecto. A ave, naturalmente, não respeita fronteiras e exige esforços de conservação transfronteiriços. Alguns abutres mantêm-se num território relativamente restrito, onde encontram abrigo e alimento. Outros deslocam-se em grandes distâncias. Mapa: Anyforms
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Patrulhando os extensos campos da Beira Baixa e do Alentejo em busca de alimento, o abutre-preto é agora também observado no Douro Internacional, onde existe uma pequena colónia, a mais recente em território nacional, com dois casais. Neste território, as incursões em solo espanhol são diárias, pois é aí que se encontra o alimento (animais domésticos mortos) em maior abundância.

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Ao abrigo do programa LIFE RUPIS, um projecto de conservação do britango, do abutre-preto e da águia de Bonelli, coordenado pela Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, conjuntamente com a Fundação para a Conservação dos Abutres (VCF) e outras organizações nacionais, as duas crias da colónia de abutre-preto do Douro Internacional foram marcadas este ano com transmissores GSM. Só assim se poderão conhecer em pormenor os movimentos e as áreas vitais para a conservação desta espécie.
O que terá levado esta ave, que não nidificava em Portugal, ao Parque Natural do Douro Internacional? “Uma possível explicação é estrutural”, diz o biológo Carlos Pacheco. “No passado, a paisagem era fortemente marcada pelo homem e a produção agrícola de subsistência exigia a exploração dos recursos até ao osso. As campanhas do trigo dos anos 1930 levaram à degradação do habitat.” Todos os pedaços de terra eram usados para cultivo de cereal porque o pão era a base da alimentação. Sobrava pouco para as espécies selvagens e para as suas próprias necessidades.
O movimento demográfico de abandono dos campos no interior de Portugal e Espanha operou uma lenta transformação da paisagem. As antigas áreas dedicadas às culturas de sequeiro foram dando lugar a pastagens para a criação de gado bovino, ovino, suíno e caprino em regime extensivo de montado e a um incremento da renaturalização natural com sobreiros, azinheiras e matagal mediterrâneo. O porco-ibérico tem aqui o habitat perfeito para uma dieta que dá fama mundial a várias marcas de presuntos. Neste quadro de oportunidade, com o ressurgimento dos velhos ecossistemas, também os quatro grandes ungulados da fauna ibérica estão de regresso – o veado, o javali, o corço e a cabra-montês. De certa forma, a fresta pela qual espreitava o abutre-preto abriu-se de par em par. De regresso aos céus, o abutre e o grifo encarregam-se com regularidade de eliminar as carcaças de animais da paisagem, mantendo os ecossistemas saudáveis e evitando a propagação de doenças. São como as brigadas de recolha de lixo nas cidades.
Frequentemente estas aves necrófagas aproveitam os restos de animais deixados por alcateias de lobos. É como se uma cadeia alimentar estivesse a recompor-se em tempo real.
Nas arribas do douro internacional,o pequeno grupo de biólogos e técnicos que acompanho observa a uma distância de segurança o ninho do abutre-preto, com uma cria bem desenvolvida com cerca de 90 dias. A estrutura foi edificada sobre um velho zimbro. Mesmo sem ajuda dos druidas que tornaram famosas estas bagas, os progenitores escolheram esta árvore providencial num local afastado e com uma vista privilegiada sobre o vale do grande rio ibérico.
Os ninhos têm uma dimensão impressionante: chegam a medir quase dois metros de diâmetro, embora sejam construídos apenas com paus e galhos. Os abutres-pretos fazem por norma uma única postura por temporada que será incubada durante cerca de 55 dias. As crias estarão prontas a voar ao final de 100 a 120 dias.
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Os esforços de monitorização de ninhos e de marcação de adultos e juvenis têm produzido informação abundante.
Com auxílio de uma escada, Carlos Pacheco sobe ao ninho, procurando causar a menor perturbação possível. Com movimentos rápidos, coloca na cabeça da cria um caparão de cabedal, com o objectivo de a manter calma. No solo, a equipa executa as tarefas meticulosamente. Mede o bico e as asas, retira amostras de penas e, por fim, coloca o transmissor com cerca de 40 gramas que o acompanhará durante alguns anos alimentado por um pequeno painel solar. A ave não protesta e a acção decorre com tranquilidade.
“A colocação de emissores em abutres é uma ferramenta de conservação poderosa”, explica o biólogo José Pedro Tavares, director da VCF. “Tem de ser feita por especialistas, mas não há evidências de impacte sobre o comportamento das aves. Aliás, aplicamos uma técnica que inclui a queda do emissor ao fim de algum tempo, quando a sua vida útil termina.”
O tempo destas intervenções é cronometrado porque existe sempre o risco de os progenitores regressarem. A ave é por fim devolvida ao ninho e os biólogos respiram profundamente.
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Este tipo de monitorização é fundamental, pois estabelece uma ponte invisível entre a ciência e o mundo natural, “ajudando a determinar zonas de alimentação, movimentos migratórios e até causas de mortalidade, uma informação crucial para planear acções de conservação”, acrescenta José Pedro Tavares.
São 11 horas da manhã, num mês de Julho tórrido, fazendo jus ao conhecido ditado transmontano que prevê nove meses de Inverno e três de inferno na região. Subimos apressadamente a encosta com o sentimento de dever cumprido e alcançamos o topo da arriba sonhando com um banho refrescante.
Os grifos acompanham a cena, fazendo voos em círculo. São cerca de 1.600 casais nos dois parques naturais gémeos, o Douro Internacional e o Arribes del Duero, que constituem, com mais de duzentos mil hectares agregados, um dos maiores espaços da Rede Natura 2000 na Península Ibérica.
Com tão poucos abutres-pretos no Douro Internacional, a possibilidade de observar comportamentos alimentares é reduzida. Uma vez mais é necessário desenvolver uma estratégia. Um pastor conhecido indica-nos que uma ovelha do seu rebanho morreu naquela noite. A carcaça de um animal funciona como chamariz para as aves necrófagas e, com sorte, talvez o nosso alvo resolva juntar-se ao festim.
A equipa coloca mãos à obra e, no dia seguinte, como snipers da natureza, biólogos, técnicos e fotógrafo dispersam-se camuflados pela Reserva da Faia Brava, a primeira reserva natural privada do país, gerida pela Associação Transumância e Natureza, acompanhados pelo guia de natureza Fernando Romão. Aguardamos que a carne fresca, disponibilizada no campo de alimentação para aves necrófagas da Reserva, cumpra o seu papel.

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Com 98 a 107 centímetros de comprimento e quase três metros de envergadura, o abutre-preto é a maior ave que ocorre em território nacional. Durante largas décadas, não nidificou no território nacional.
As esperas são normalmente longas e, com o calor que já se faz sentir, o cansaço atinge o reduzido grupo. Após algumas horas, os grifos, como guarda avançada, detectam o cadáver e vão voando em círculos cada vez mais baixos. Há uma certa timidez nas aves de maior envergadura. “Se não fossem desconfiadas, já há muito que se teriam extinguido”, brinca Carlos Pacheco.
Com cautela os grifos pousam a alguns metros da carcaça. Timidamente, avançam até que, numa espécie de tiro de partida, se lançam de forma desenfreada sobre a carcaça. Num caos absoluto, submergem totalmente a ovelha. Rasgam a pele e devoram a carne que se vai soltando com voracidade. Ouve-se uma sinfonia de grasnidos.
Durante este frenesi, aterram como divindades aladas dois enormes abutres-pretos, juntando-se ao banquete. Sem pedirem licença, tomam a liderança e, munidos do seu potente bico, cortam e ingerem as partes mais rijas do cadáver: os tendões e os músculos. Ao longe, com a prudência que se adivinha, os pequenos britangos aguardam pacientemente pela sua vez.
A satisfação é enorme. Há uma sensação de privilégio por poder avistar todas as espécies de abutres que ocorrem no território nacional no mesmo local. Quem sabe se um dia o quebra-ossos, extinto há mais de 100 anos, não atravessa a fronteira para se juntar aos seus congéneres?
Espécie residente na península ibérica, o abutre-preto percorre ainda assim grandes distâncias na busca de alimento. Os juvenis imaturos fazem movimentos dispersivos para exploração de novos territórios, percorrendo toda a Península Ibérica e podendo chegar ao Sul de França. Num dos mapas de seguimento que a equipa gosta de mostrar, o sinal emitido pelo transmissor de uma ave indicou que um dos abutres resolveu atravessar a cidade de Madrid, sobrevoando o Estádio Santiago Bernabeu!
Antes do regresso dos abutres ao Douro Internacional, já existia o projecto LIFE Habitat Lince-Abutre da Liga para a Protecção da Natureza nas ZPE de Mourão/Moura/Barrancos e vale do Guadiana, no Alentejo, com a criação de uma rede de campos de alimentação geridos de forma a favorecer o abutre-preto. Foi um apoio fundamental, uma espécie de despensa disponível para a retaguarda da espécie. Calcula-se que existam agora no território português 35 casais desta espécie distribuídos em três colónias.
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Os resultados são animadores. O programa específico de vigilância em Portugal foi premiado com a instalação de mais um casal e com a nidificação com sucesso de duas crias em 2020, mas as ameaças continuam à espreita. A ocupação do território por milhares de hectares de monoculturas agrícolas é uma das novas ameaças à sobrevivência de espécies selvagens como o abutre-preto.
A utilização de um medicamento veterinário, um anti-inflamatório para o gado (o diclofenaco) é igualmente suspeito de contribuir para a mortalidade de abutres. Se ingerido através de carcaças de animais tratadas por este fármaco, causa morte imediata devido a insuficiência renal aguda. Uma vez mais, o equilíbrio entre a conservação da natureza e a necessidade de explorar recursos para satisfazer a procura crescente não é fácil de encontrar.

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Pormenor da paisagem envolvente.
Uma brisa fresca corre finalmente enquanto observo ao fundo a garganta do grandioso rio. Aproveitando as correntes térmicas que se formam, um enorme bando de grifos voa tranquilamente.
No meio deste bailado alado, detecto a presença inconfundível do admirável abutre-preto. O seu voo no canhão do Douro é um sinal de esperança e lembra-me as palavras de Miguel Torga no seu poema geológico: “O Douro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza.”
Nota: O projecto está inserido no programa LIFE RUPIS, co-financiado pelo programa LIFE da União Europeia e pela Fundação Mava (Suíça), e liderado Pela Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves em parceria com a Fundação para a Conservação dos Abutres, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, a Associação Transumância e Natureza, a Palombar, a GNR, a Junta de Castilla y León, a Fundación Naturaleza y Hombre e a Edp Distribuição - Energia.


 
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