“Tudo o que viesse eu tinha de abater”
A minha guerra
Partida para uma operação. João Rato com a sua secção, prontos para arrancar
A guerra começou por significar a difícil perda do irmão. Depois acabou ele por conhecê-la. Em Angola, este português sofreu e lutou. Muito
Quando assentei praça em Elvas, foi uma grande alegria para mim porque, pensava eu, finalmente tinha a profissão de que gostava: seguir a vida militar. No dia 23 de Outubro de 1967, ao ver os meus futuros camaradas, todos rapaziada pelos 20 anos, tal como eu, percebi que iria fazer novos amigos que me iriam marcar pela vida fora. E como marcaram! Depois de terminar a recruta, fui para o Regimento de Infantaria nº 1, que ficava na Amadora. Lá dei entrada em 1968, para tirar a especialidade de atirador e ao mesmo tempo de minas e armadilhas, e o curso para 1º cabo.
Escusado será dizer que foram outros três meses de grande sofrimento pois, em Março de 1968, recebo a triste notícia de que estava mobilizado para a guerra. Nesse momento veio-me ao pensamento a triste recordação do falecimento do meu irmão, José Manuel Rato, morto em combate no ano de 1966 na Guiné. O choque foi tão grande que fiquei sem sangue, andei uns dias desorientado, mas com os meus 20 anos tudo foi ao lugar. Tinha de ser. No dia 28 de Março de 1968, terminada a concentração no cais de embarque da Rocha do Conde de Óbidos, foi-nos concedido um tempo para contactarmos os familiares e amigos que se haviam ali deslocado para assistirem à partida.
A viagem para Angola foi feita a bordo do paquete ‘Vera Cruz’. Chegados à maior província ultramarina portuguesa, eu e os meus colegas de armas fomos transportados até ao campo militar do Grafanil – onde toda a tropa ficava sediada até ser distribuída. Após alguns dias a dormir no chão, chegou a ordem para sermos deslocados para o Norte de Angola, mais precisamente para o Toto.
Passado mais de um mês nessa região, um dia, pelas oito da manhã, o camarada das Transmissões correu a informar o comandante de que uma coluna de outra companhia, localizada a 40 ou 50 quilómetros, não dava sinais de vida, pelo que o nosso comandante destacou dois grupos de combate para ir ver o que se passava. Ao chegar ao local deparámo-nos com o pior cenário que poderíamos encontrar: foi o nosso verdadeiro baptismo de fogo, em que encontrámos vários camaradas mortos e feridos.
No regresso, começámos a pensar como a emboscada tinha sido feita: chegámos à conclusão de que os inimigos tinham prendido uma galinha na picada para despistar os jipes dos nossos militares, que bateram uns contra os outros. Verdade é que a informação nunca nos foi dada correctamente, foi feita ao longo de semanas, anunciando de cada vez uma ou duas baixas em combate.
Volvidos alguns meses, recebemos a notícia de que alguns de nós teríamos de ir para a região de Bembe, recuperar o espaço físico de uma antiga missão, para que pudesse receber o resto da companhia. Foi o que fizemos. Quando chegou o resto do pelotão, o comandante, José Carlos de Quintal Calheiros, reparou que não havia luz e resolveu dar uma prenda aos seus homens pelo trabalho feito em tão pouco tempo: mandou então vir um gerador de Luanda.
Como queria ver os seus homens sempre alegres, arranjou também dois equipamentos de futebol, um à Sporting, o outro à Benfica. Como era um ferrenho sportinguista, e para que tivesse sempre alegrias, decidiu que os melhores jogavam sempre com o equipamento do seu clube. Depois de várias operações de combate, chega a comunicação de que o 4º grupo de combate tinha de se deslocar para o Leste de Angola, para ‘as terras do fim do Mundo’, para reforçar um pelotão de Cavalaria que já tinha tido algumas baixas. Era uma zona pantanosa: havia poucos tiros, porque eles atacavam mais com flechas, mas não foi fácil.
Numa altura em que o meu grupo de combate tinha que abater certos e determinados indivíduos, eu fui um dos nomeados para abater quem aparecesse. Nesse momento, recordei-me que anos antes, na Guiné, tinha perdido um irmão em combate. Mas mesmo não sendo uma situação que tomei de ânimo leve, tudo o que viesse e que me aparecesse à frente da arma eu tinha de abater. Depois de mais algumas operações, chegou a comunicação de que tínhamos de regressar ao Norte para formarmos a companhia e regressarmos à Metrópole.
Após chegar, estive meses abalado por tudo o que vivi. Estava muito fraco, pesava menos de 50 quilos. Ainda hoje me lembro dos tempos de África, dos meus camaradas, e, posso dizer, tenho em todos eles um amigo. Ao fim de 30 anos, realizei o nosso primeiro encontro – e não deixarei nunca acabar estes convívios, porque o Batalhão 2840 e a Companhia 2351 são a minha grande família. Desejo um dia, com eles, voltar a Angola. Não morrerei sem lá ir.
NA LIGA A AJUDAR VETERANOS
João Rato, ‘comandante Rato’, continua ligado aos combatentes. "Recebi um convite para fazer parte da Direcção do Núcleo da Liga dos Combatentes de Estremoz’, que aceitei com orgulho. Mas não fico descansado enquanto não resolver um triste episódio de que tive conhecimento: um dos meus companheiros do Ultramar é hoje um sem-abrigo. Irei lutar para encontrar uma solução para todos os veteranos de guerra, para que tenham um fim feliz." A Casa da Idade do Ouro, projecto em desenvolvimento para acolher estas pessoas, está a caminho de cumprir essa vontade.
PERFIL
Nome: João Francisco Rato
Comissão: Angola (1968/70)
Actualidade: Tem 63 anos, é bancário reformado e trabalha na Liga dos Combatentes
A minha guerra
Partida para uma operação. João Rato com a sua secção, prontos para arrancar
A guerra começou por significar a difícil perda do irmão. Depois acabou ele por conhecê-la. Em Angola, este português sofreu e lutou. Muito
Quando assentei praça em Elvas, foi uma grande alegria para mim porque, pensava eu, finalmente tinha a profissão de que gostava: seguir a vida militar. No dia 23 de Outubro de 1967, ao ver os meus futuros camaradas, todos rapaziada pelos 20 anos, tal como eu, percebi que iria fazer novos amigos que me iriam marcar pela vida fora. E como marcaram! Depois de terminar a recruta, fui para o Regimento de Infantaria nº 1, que ficava na Amadora. Lá dei entrada em 1968, para tirar a especialidade de atirador e ao mesmo tempo de minas e armadilhas, e o curso para 1º cabo.
Escusado será dizer que foram outros três meses de grande sofrimento pois, em Março de 1968, recebo a triste notícia de que estava mobilizado para a guerra. Nesse momento veio-me ao pensamento a triste recordação do falecimento do meu irmão, José Manuel Rato, morto em combate no ano de 1966 na Guiné. O choque foi tão grande que fiquei sem sangue, andei uns dias desorientado, mas com os meus 20 anos tudo foi ao lugar. Tinha de ser. No dia 28 de Março de 1968, terminada a concentração no cais de embarque da Rocha do Conde de Óbidos, foi-nos concedido um tempo para contactarmos os familiares e amigos que se haviam ali deslocado para assistirem à partida.
A viagem para Angola foi feita a bordo do paquete ‘Vera Cruz’. Chegados à maior província ultramarina portuguesa, eu e os meus colegas de armas fomos transportados até ao campo militar do Grafanil – onde toda a tropa ficava sediada até ser distribuída. Após alguns dias a dormir no chão, chegou a ordem para sermos deslocados para o Norte de Angola, mais precisamente para o Toto.
Passado mais de um mês nessa região, um dia, pelas oito da manhã, o camarada das Transmissões correu a informar o comandante de que uma coluna de outra companhia, localizada a 40 ou 50 quilómetros, não dava sinais de vida, pelo que o nosso comandante destacou dois grupos de combate para ir ver o que se passava. Ao chegar ao local deparámo-nos com o pior cenário que poderíamos encontrar: foi o nosso verdadeiro baptismo de fogo, em que encontrámos vários camaradas mortos e feridos.
No regresso, começámos a pensar como a emboscada tinha sido feita: chegámos à conclusão de que os inimigos tinham prendido uma galinha na picada para despistar os jipes dos nossos militares, que bateram uns contra os outros. Verdade é que a informação nunca nos foi dada correctamente, foi feita ao longo de semanas, anunciando de cada vez uma ou duas baixas em combate.
Volvidos alguns meses, recebemos a notícia de que alguns de nós teríamos de ir para a região de Bembe, recuperar o espaço físico de uma antiga missão, para que pudesse receber o resto da companhia. Foi o que fizemos. Quando chegou o resto do pelotão, o comandante, José Carlos de Quintal Calheiros, reparou que não havia luz e resolveu dar uma prenda aos seus homens pelo trabalho feito em tão pouco tempo: mandou então vir um gerador de Luanda.
Como queria ver os seus homens sempre alegres, arranjou também dois equipamentos de futebol, um à Sporting, o outro à Benfica. Como era um ferrenho sportinguista, e para que tivesse sempre alegrias, decidiu que os melhores jogavam sempre com o equipamento do seu clube. Depois de várias operações de combate, chega a comunicação de que o 4º grupo de combate tinha de se deslocar para o Leste de Angola, para ‘as terras do fim do Mundo’, para reforçar um pelotão de Cavalaria que já tinha tido algumas baixas. Era uma zona pantanosa: havia poucos tiros, porque eles atacavam mais com flechas, mas não foi fácil.
Numa altura em que o meu grupo de combate tinha que abater certos e determinados indivíduos, eu fui um dos nomeados para abater quem aparecesse. Nesse momento, recordei-me que anos antes, na Guiné, tinha perdido um irmão em combate. Mas mesmo não sendo uma situação que tomei de ânimo leve, tudo o que viesse e que me aparecesse à frente da arma eu tinha de abater. Depois de mais algumas operações, chegou a comunicação de que tínhamos de regressar ao Norte para formarmos a companhia e regressarmos à Metrópole.
Após chegar, estive meses abalado por tudo o que vivi. Estava muito fraco, pesava menos de 50 quilos. Ainda hoje me lembro dos tempos de África, dos meus camaradas, e, posso dizer, tenho em todos eles um amigo. Ao fim de 30 anos, realizei o nosso primeiro encontro – e não deixarei nunca acabar estes convívios, porque o Batalhão 2840 e a Companhia 2351 são a minha grande família. Desejo um dia, com eles, voltar a Angola. Não morrerei sem lá ir.
NA LIGA A AJUDAR VETERANOS
João Rato, ‘comandante Rato’, continua ligado aos combatentes. "Recebi um convite para fazer parte da Direcção do Núcleo da Liga dos Combatentes de Estremoz’, que aceitei com orgulho. Mas não fico descansado enquanto não resolver um triste episódio de que tive conhecimento: um dos meus companheiros do Ultramar é hoje um sem-abrigo. Irei lutar para encontrar uma solução para todos os veteranos de guerra, para que tenham um fim feliz." A Casa da Idade do Ouro, projecto em desenvolvimento para acolher estas pessoas, está a caminho de cumprir essa vontade.
PERFIL
Nome: João Francisco Rato
Comissão: Angola (1968/70)
Actualidade: Tem 63 anos, é bancário reformado e trabalha na Liga dos Combatentes
João Francisco Rato, Angola (1968-1970)