“Fui salvo por latas cheias de munições”
A Minha Guerra: Sorte em Angola
A serem deixados numa zona de combate por um helicóptero Alouette
Combates. Os confrontos eram frequentes. Num deles escapei a um tiro devido à mochila carregada. Mas também houve coisas boas.
Nós éramos ‘Os Cagões’, assim conhecidos pelo aprumo. Cortávamos a barba todos os dias, com excepção de quando andávamos no mato. Mas quando regressávamos ao aquartelamento o capitão mandava-nos logo ‘afeitar’. Chegámos a Angola no navio ‘Vera Cruz’. Estivemos em Grafanil, Luanda, e partimos de seguida para o Alto de Quito.
No acampamento estava quase só o meu destacamento, a companhia que geria a zona de Quibala, e o comando encontrava-se em Benguela. A minha comissão era de 14 meses mas foi prolongada, o que deu tempo para eu ser promovido de furriel a sargento miliciano.
O objectivo da nossa companhia era evitar a introdução dos terroristas no território, através de operações de combate. E houve algumas intensas. Fomos atacados muitas vezes, logo que saíamos do acampamento, por inimigos pendurados de tal forma nas árvores que ninguém os via. A companhia registou dois mortos, vítimas de uma mina, e houve muitos feridos, alguns dos quais ficaram deficientes. Os terroristas já estavam bem equipados, com espingardas e metralhadoras, algumas que nós não possuíamos nem conhecíamos. Os seus ataques obrigaram-nos muitas vezes a recuar para a base: tínhamos tantos feridos que era impossível continuar a avançar no terreno.
Numa altura tive muita sorte. Tínhamos arrancado com uma coluna para o mato mas a minha viatura (uma Unimog) não pegou logo. O motorista, o Matias, da Amadora, com os nervos, não conseguia pô-la a trabalhar. Por fim, seguimos com os restantes camaradas e fomos emboscados mais à frente. Houve bastantes feridos. Mais tarde ripostámos, com helicópteros e aviões, e também causámos baixas no inimigo. Neste combate fui atingido por um tiro que furou a minha mochila ao nível dos joelhos. Lá dentro levava balas enfiadas em latas. Foi a minha sorte, se me tivessem acertado ficava sem pernas. Estávamos com oito ou nove meses de comissão.
Noutra operação, passámos um mês ser comer uma refeição quente. Alimentámo-nos apenas com rações de combate. Andávamos tão fracos que se nos baixássemos quase caíamos no chão, com falta de força. Nestas saídas mais prolongadas, íamos à procura de acampamentos de terroristas mas quase sempre, quando os descobríamos, já lá não estava ninguém. Só numa altura fizemos um prisioneiro, levado de helicóptero para Luanda para nos dar informações.
Entretanto, a nossa comissão tinha terminado, mas ainda tivemos de ficar algum tempo. Recebi uma mensagem urgente para nos prepararmos para uma saída para o mato, na zona do Luso. Quase me acontecia uma tragédia. O meu motorista pisou uma mina, que saltou mas não explodiu. Atrás de nós seguia a polícia, que a sinalizou, e eu voltei atrás para a apanhar. Tive pena de um rapaz que estava na polícia naquela zona, que fora meu cabo em Castelo Branco, porque dias mais tarde soube que os terroristas o tinham matado e a outro camarada.
Nesta altura não estivemos envolvidos em grandes confrontos e até nos pediram para transportar uma negra grávida. Foi curioso. Levámo-la numa Unimog quando começou a ter dores e o Lemos fez-lhe o parto ali mesmo, com um saquito de primeiros-socorros. Montámos segurança na zona e a mulher e a criança ficaram bem. Portanto, na guerra nem tudo foram coisas más. Também houve algumas boas. Por exemplo, criámos equipas de futebol e consegui montar uma sala que serviu de escola, onde ensinei muita gente a ler e a fazer a antiga 4ª classe. Outros conseguiram ali a carta de condução de veículos ligeiros e pesados.
Eu também formei jovens de lá e terroristas, que se entregaram e passaram a colaborar connosco. Tínhamos uma carreira de tiro pequena para os treinar e eu tinha de confiar neles, porque depois íamos juntos para o mato. Como os tratava bem, alguns ficavam meus amigos.
Antes, quando estive no acampamento, adoptei um menino indígena que morava perto sem quaisquer condições. Fugia dos brancos, mas vendo-me vinha logo a correr para mim. Comia ao meu lado na messe e quando vim de férias levei-lhe muita roupa, de uma sobrinha da altura dele. Enquanto esteve comigo passou sempre bem. Tenho saudade daqueles tempos, não da guerra mas da camaradagem, da família em ponto grande que éramos. O meu regresso à Metrópole foi de novo no ‘Vera Cruz’ e não fiquei a dever nada à minha consciência por ter feito mal a alguém.
DIAS PASSADOS NA TIPOGRAFIA
José Guedes era tipógrafo antes de ir para o Exército, seguindo as pisadas dos irmãos mais velhos. Depois do regresso da comissão, voltou a juntar-se aos irmãos na Tipografia Beira Serra. Só recentemente se reformou, não deixando, ainda assim, de passar os dias na tipografia.
José Guedes casou, meio ano depois de regressar de Angola, com Fátima Guedes, natural do concelho do Sabugal, com quem teve duas filhas, hoje com 36 e 37 anos, ambas professoras do 2.º ciclo. Abastado em netos, já conta cinco, o mais novo com dois anos e o mais velho com 11.
PERFIL
Nome: José Guedes Ribeiro
Comissão: Angola (1967/1970)
Força: Batalhão de Cavalaria 1928
Actualidade: Hoje, 65 anos, na Guarda.
A Minha Guerra: Sorte em Angola

A serem deixados numa zona de combate por um helicóptero Alouette
Combates. Os confrontos eram frequentes. Num deles escapei a um tiro devido à mochila carregada. Mas também houve coisas boas.
Nós éramos ‘Os Cagões’, assim conhecidos pelo aprumo. Cortávamos a barba todos os dias, com excepção de quando andávamos no mato. Mas quando regressávamos ao aquartelamento o capitão mandava-nos logo ‘afeitar’. Chegámos a Angola no navio ‘Vera Cruz’. Estivemos em Grafanil, Luanda, e partimos de seguida para o Alto de Quito.
No acampamento estava quase só o meu destacamento, a companhia que geria a zona de Quibala, e o comando encontrava-se em Benguela. A minha comissão era de 14 meses mas foi prolongada, o que deu tempo para eu ser promovido de furriel a sargento miliciano.
O objectivo da nossa companhia era evitar a introdução dos terroristas no território, através de operações de combate. E houve algumas intensas. Fomos atacados muitas vezes, logo que saíamos do acampamento, por inimigos pendurados de tal forma nas árvores que ninguém os via. A companhia registou dois mortos, vítimas de uma mina, e houve muitos feridos, alguns dos quais ficaram deficientes. Os terroristas já estavam bem equipados, com espingardas e metralhadoras, algumas que nós não possuíamos nem conhecíamos. Os seus ataques obrigaram-nos muitas vezes a recuar para a base: tínhamos tantos feridos que era impossível continuar a avançar no terreno.
Numa altura tive muita sorte. Tínhamos arrancado com uma coluna para o mato mas a minha viatura (uma Unimog) não pegou logo. O motorista, o Matias, da Amadora, com os nervos, não conseguia pô-la a trabalhar. Por fim, seguimos com os restantes camaradas e fomos emboscados mais à frente. Houve bastantes feridos. Mais tarde ripostámos, com helicópteros e aviões, e também causámos baixas no inimigo. Neste combate fui atingido por um tiro que furou a minha mochila ao nível dos joelhos. Lá dentro levava balas enfiadas em latas. Foi a minha sorte, se me tivessem acertado ficava sem pernas. Estávamos com oito ou nove meses de comissão.
Noutra operação, passámos um mês ser comer uma refeição quente. Alimentámo-nos apenas com rações de combate. Andávamos tão fracos que se nos baixássemos quase caíamos no chão, com falta de força. Nestas saídas mais prolongadas, íamos à procura de acampamentos de terroristas mas quase sempre, quando os descobríamos, já lá não estava ninguém. Só numa altura fizemos um prisioneiro, levado de helicóptero para Luanda para nos dar informações.
Entretanto, a nossa comissão tinha terminado, mas ainda tivemos de ficar algum tempo. Recebi uma mensagem urgente para nos prepararmos para uma saída para o mato, na zona do Luso. Quase me acontecia uma tragédia. O meu motorista pisou uma mina, que saltou mas não explodiu. Atrás de nós seguia a polícia, que a sinalizou, e eu voltei atrás para a apanhar. Tive pena de um rapaz que estava na polícia naquela zona, que fora meu cabo em Castelo Branco, porque dias mais tarde soube que os terroristas o tinham matado e a outro camarada.
Nesta altura não estivemos envolvidos em grandes confrontos e até nos pediram para transportar uma negra grávida. Foi curioso. Levámo-la numa Unimog quando começou a ter dores e o Lemos fez-lhe o parto ali mesmo, com um saquito de primeiros-socorros. Montámos segurança na zona e a mulher e a criança ficaram bem. Portanto, na guerra nem tudo foram coisas más. Também houve algumas boas. Por exemplo, criámos equipas de futebol e consegui montar uma sala que serviu de escola, onde ensinei muita gente a ler e a fazer a antiga 4ª classe. Outros conseguiram ali a carta de condução de veículos ligeiros e pesados.
Eu também formei jovens de lá e terroristas, que se entregaram e passaram a colaborar connosco. Tínhamos uma carreira de tiro pequena para os treinar e eu tinha de confiar neles, porque depois íamos juntos para o mato. Como os tratava bem, alguns ficavam meus amigos.
Antes, quando estive no acampamento, adoptei um menino indígena que morava perto sem quaisquer condições. Fugia dos brancos, mas vendo-me vinha logo a correr para mim. Comia ao meu lado na messe e quando vim de férias levei-lhe muita roupa, de uma sobrinha da altura dele. Enquanto esteve comigo passou sempre bem. Tenho saudade daqueles tempos, não da guerra mas da camaradagem, da família em ponto grande que éramos. O meu regresso à Metrópole foi de novo no ‘Vera Cruz’ e não fiquei a dever nada à minha consciência por ter feito mal a alguém.
DIAS PASSADOS NA TIPOGRAFIA
José Guedes era tipógrafo antes de ir para o Exército, seguindo as pisadas dos irmãos mais velhos. Depois do regresso da comissão, voltou a juntar-se aos irmãos na Tipografia Beira Serra. Só recentemente se reformou, não deixando, ainda assim, de passar os dias na tipografia.
José Guedes casou, meio ano depois de regressar de Angola, com Fátima Guedes, natural do concelho do Sabugal, com quem teve duas filhas, hoje com 36 e 37 anos, ambas professoras do 2.º ciclo. Abastado em netos, já conta cinco, o mais novo com dois anos e o mais velho com 11.
PERFIL
Nome: José Guedes Ribeiro
Comissão: Angola (1967/1970)
Força: Batalhão de Cavalaria 1928
Actualidade: Hoje, 65 anos, na Guarda.
José Guedes Ribeiro, Angola (1967-1970)