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Outro Baptismo

helldanger1

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por:Carlos Castanha

Quis a sorte proporcionar a um homem, a ventura de ser baptizado já na casa dos setenta anos…….

Era o que se considera um veterano nestas coisas da caça. Muitos anos passados por Portugal, na Europa e em África, sofrendo por esta paixão de todos nós, mas ao mesmo tempo obtendo troféus que a maioria nem sabe que existem. Medidor oficial e conselheiro internacional de alguns organismos cinegéticos tinha todo um saber e uma experiência larguíssima, em todos os assuntos relacionados com caça, vindos de uma vida bem usada.

Mas não há bela sem senão, e a este caçador, ocorria muitas vezes a única lacuna que tinha entre os seus troféus, e a muita pena de verificar, a cada dia que passava, a cada vez maior dificuldade de obter tão almejado objectivo.

De África, tinha os cinco grandes já registados. Da Europa, tinha tudo o que quisera fazer. Mas do seu querido Portugal, tinha o pesar de nunca ter conseguido, nem um bom troféu, nem sequer um exemplar representativo… do Lobo Ibérico.

Havia anos que, tanto ele como muitos outros caçadores penavam o difícil calvário das montarias no Nordeste Transmontano, sempre na esperança de uma vez poderem ter a sorte de vislumbrar, pela mira da sua arma, a silhueta desejada. Mas não era fácil, pois, já nessa altura, os bichos eram raros e esquivos, e se bem que os pastores deles se queixassem com razão, poucos os viam à luz do dia.

Nessa manhã solarenga mas gelada, diziam os organizadores da montaria, a mancha estava recheada com bons exemplares de javali, havia corsos, e até estava referenciado um casal de lobos. A tudo se poderia atirar e, embora muitos pensassem tratar-se de mais um exagero da organização, a esperança e expectativa aumentaram.

A armada em que fiquei era numa travessa e como tal a última a entrar na mancha. Após uma descida acentuada para o fundo dum barranco, cruzei a armada de fecho, precisamente no posto onde o velho Monteiro, acompanhado como era habitual pela esposa, lia já os trilhos do mato.

 

helldanger1

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Para mim foi mais uma caçada sem grandes emoções. Muitas ladras e reboliços, muitos tiros e animação em outros pontos da mancha, mas no meu posto, junto ao regato, entre tojos e silvados velhos, nada passou. Foi até com algum alívio que ouvi o morteiro final, pois o frio e a fome causavam já um grande desconforto.

Na volta foi com profunda admiração, e direi mesmo alguma inveja, que recebi a notícia de que o idoso casal fora presenteado com a hipótese de atirar a um dos lobos e que andavam os guardas e matilheiros a procurar o rasto. Quando chegámos à concentração, não se falava doutra coisa, sendo conversa obrigatória entre todos a possível concretização de um sonho antigo. E quando chegaram as primeiras rezes abatidas, bem em destaque em cima do tejadilho duma carrinha, lá vinha o bonito lobo que assomara numas fragas frente ao posto onde o tiro rápido e certeiro do Decano não falhara!

Com todo o respeito que merecia aos outros caçadores a sorte do velho Monteiro, logo foi encenada a cerimónia baptismal que se impunha em tão solene e ansiada ocasião. Rapidamente lhe despiram o casaco que, só por uma deferência extraordinária, foi substituído por um velho impermeável. Sujeito a julgamento sumário, a condenação foi de imediato pronunciada e a pena decretada e executada.

Agora de pé, e com o corpo do lobo atravessado sobre os ombros, recebia da multidão em delírio os aplausos e felicitações da ordem, com que todos os amigos ou simples conhecidos o brindavam. Lembro-me ainda de algumas lágrimas de pura felicidade que escorreram pelas rugas da sua face emocionada, e corada, com a enorme satisfação.

A mãe Natureza concedera-lhe, por fim, tal mercê….

Montaria da Cerdeira, em Bragança a 20 de Fevereiro de 1986

P.S. Mais uma vez aproveito a oportunidade para prestar respeitosa homenagem à memória de Jorge de Andrada Roque de Pinho, pois foi ele o protagonista desta história.
 
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