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O resultado de artigos sobre se devemos ou não beber leite é muitas vezes este: uma no cravo, outra na ferradura, dependendo de quem se ausculta. Por cada investigação científica que aponte para um papel benéfico ou nocivo, outra haverá para a desdizer.
Muito do que comemos tem vários “mas” na sua composição e para vários especialistas o leite não é excepção. Quando se pergunta à nutricionista Carmo Cabral se recomenda o consumo de leite, a resposta é mais que pronta: “Sim, recomendo: o leite materno.” E termina aí. O de vaca nem pensar, “não somos bezerros”. Quando se pergunta ao nutricionista Pedro Graça se recomenda o consumo de leite, a resposta é mais que pronta também: “Sim, tem muitas vantagens.”
Em 2003, Anne Karpf começava assim um artigo devastador no jornal The Guardian: “Terá sido o próprio relações públicas de Deus o director da campanha a favor do leite? De que outra forma se explica ter conseguido manter a sua imagem imaculada, apesar de toneladas de provas em contrário?” As dúvidas, argumenta, vêm de longe: Karpf cita a resposta do Comité de Nutrição da Academia Americana de Pediatria quando, em 1974, foi questionada sobre se se deveria desaconselhar o consumo de leite pelas crianças: “Talvez” (e mesmo assim, entre 1993 e 2014, os americanos foram inundados com a campanha “Got Milk?”, onde personalidades conhecidas eram fotografadas com bigodes lácteos a recomendar que se bebesse leite).
Actualmente, muitos nutricionistas não usam sequer o condicional. “O leite de vaca não faz sentido”, afirma peremptoriamente Carmo Cabral. “É espécie-específico.” Ou seja, os humanos devem beber leite humano, enquanto são bebés, e é tudo. “A proteína do leite de vaca é muito diferente da do leite humano, praticamente o oposto.”
Quais são, então, os argumentos contra o leite? A começar pela intolerância à lactose (o açúcar dos lacticínios fica por digerir no intestino delgado, podendo provocar diarreia, cólicas e gases), a lista de acusações — demonstradas ou não — é longa: elevado teor de gordura saturada aumenta o risco de doenças cardíacas; o consumo de grandes quantidades de lactose aumenta as probabilidades de cancro no ovário; grandes quantidades de cálcio são um factor de risco para o cancro da próstata e também para a osteoporose (uma diminuição da massa óssea, que leva ao aumento do risco de fractura). Frequentemente, as investigações que apontam para resultados deste género fazem-no com base no consumo de três ou mais copos de leite por dia.
Os ataques não se ficam por aqui. “O leite é muito mais do que [a soma de] proteínas, hidratos de carbono, gordura saturada, cálcio e outros minerais, e vitaminas”, afirma Carmo Cabral. “Tem uma série de compostos bioquímicos, hormonais e outros, que vão ter uma acção no corpo.” A nutricionista adianta que o consumo de leite “está associado a diabetes de tipo 1 e à obesidade: o leite estimula o crescimento, ao aumentar os níveis de insulina” — a “insulina e outros processos bioquímicos”, dirá a seguir, é também uma das razões por que poderá estar associado a doenças oncológicas. “Habitualmente consumimos leite numa altura de crescimento exponencial, e essa modulação hormonal era importante para esse tipo de crescimento”, até aos dois, três anos. Depois disso, não só é dispensável como não é recomendável. “Só se for para substituir alimentos piores, como refrigerantes, snacks, bolos.”
80 litros
de leite foi quanto bebeu cada português em 2013, menos 4,5% de consumo em relação ao ano anterior
Institucionalmente, este é ainda um alimento valorizado. O Estado garante a distribuição de leite gratuitamente a todas as escolas públicas que a solicitem. Em todo o caso, o consumo tem vindo a diminuir, à imagem do que acontece em muitos países ocidentais. Em 2013, cada português bebeu 80 litros, o que representa um decréscimo de 4,5% em relação ao ano anterior (podem entrar aqui factores como o aumento do preço, causado pelas condições climatéricas desfavoráveis para a produção, como a onda de calor no Verão, e a subida dos preços dos alimentos para os animais).
Pedro Graça, coordenador do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável, reconhece que “há uma discussão grande e muita polémica” à volta do leite. Mas “quem tem dificuldades de acesso a alimentos de qualidade não deveria prescindir do leite, que é um complexo vitamínico em forma de alimento”.
As “muitas vantagens” começam pelo cálcio — “fundamental no crescimento ósseo e para os dentes”. Os ossos ganham densidade até aos 30 anos e a partir daí perdem-na. “Ficam mais ‘ocos’. Jovens que não consomem lacticínios acabam por ter ossos mais frágeis.” A osteoporose afecta em Portugal mais de meio milhão de pessoas, sobretudo mulheres, segundo a Direcção-Geral de Saúde.
Para os críticos do leite, este é um dos grandes embustes. A osteoporose pode ser combatida com exercício físico regular, vitamina D (através da exposição ao sol, por exemplo) vitamina K (vegetais verdes) e cálcio em quantidade suficiente.
E é aqui que reside a questão. A quantidade certa e saudável de cálcio que devemos ingerir não foi ainda cabalmente determinada, segundo refere um artigo da Harvard School of Public Health, publicado no ano passado. Vários estudos salientam a importância do cálcio para fortalecer os ossos, mas há discrepâncias sobre a quantidade que deve ser ingerida por adultos (no mesmo artigo afirmava-se porém que um consumo moderado — um ou dois copos de leite por dia — parecia diminuir as probabilidades de tensão alta e sobretudo de cancro no cólon).
Já um estudo de investigadores suecos liderados por Karl Michaelsson e publicado pelo British Medical Journal, em Setembro passado, concluía que maiores quantidades de leite levavam a mais fracturas em mulheres. Pior, havia até maior índice de mortalidade, num dos grupos estudados. Isto porque o leite é a principal fonte de galactose, que provoca stress oxidativo (ligado ao envelhecimento), inflamação crónica, neurodegeneração e menor resposta imunitária.
Os autores do estudo — que comparava mulheres que bebiam três ou mais copos de leite por dia com as que bebiam um ou menos — concluem dizendo que “os resultados podem levar a questionar a validade das recomendações para o consumo de grandes quantidades de leite para a prevenção de fracturas ósseas”. Mas devem, contudo, “ser interpretados com cautela” e precisam de ser replicados, alertavam. O artigo inundou os media e animou os opositores aos lácteos, que muitas vezes se esqueciam de referir as reservas dos investigadores.
Quando se trata de prevenir a osteoporose, Carmo Cabral aponta para outras “fontes fiáveis”: couve, brócolos, agrião, rúcula, nabiças, por exemplo, “têm bastante cálcio disponível, tanto como o leite”. Além disso, o cálcio não pode ser considerado isoladamente: “É a vitamina K [que não está presente no leite mas nos vegetais verdes, aponta] que o leva ao osso e não só para os tecidos moles.”
Nem tudo se resume ao cálcio. “Há ainda uma questão importante: a proteína do leite é de grande qualidade. Tem todos os aminoácidos essenciais para o restabelecimento dos tecidos”, refere Pedro Graça. “Todos os dias, o nosso corpo se renova e as proteínas são fundamentais, mas têm de ter qualidade.”
Em percentagens da dose diária recomendada, adianta o nutricionista, um copo de 250 ml garante 38% do cálcio; 16% de proteínas; 11% de potássio (que ajuda a manter a pressão arterial); 10% da vitamina A (importante para a pele); 13% da vitamina B12, que ajuda as células a transportar o oxigénio; 24% da vitamina B2, que tem riboflavina, que ajuda a converter os alimentos em energia; 20% de fósforo, importante também para os ossos.
“Para cada estudo contra o leite, aparece um a favor”, afirma Pedro Graça. “Para a relação entre o consumo do leite e a doença cardiovascular, por exemplo, a evidência científica é quase nula. Mas há alguma discussão sobre a relação com doenças oncológicas: o consumo moderado parece ser protector, mas quando em excesso haverá um efeito negativo. Isso pode acontecer com muitos alimentos.”
250 ml
de leite, um copo, contém: 38% do cálcio; 16% de proteínas; 11% de potássio;10% da vitamina A; 13% da vitamina B12; 24% da vitamina B2; 20% de fósforo
José Camolas, nutricionista do serviço de endocrinologia do Hospital de Santa Maria, refere que “o leite faz parte dos cânones da alimentação equilibrada”. Mas tem de estar presente? A resposta não é “tem”, é “pode”. “Em nutrição, não temos a política de dizer que tem de ser assim ou assado.”
Em todo o caso, “faz sentido que um dos grupos alimentares seja dedicado aos lácteos”, defende. “São uma fonte barata e disponível de proteína de boa qualidade e uma das fontes mais biodisponíveis de cálcio. Alguma investigação demonstra que tem um efeito protector da saúde (nomeadamente no controlo de peso e glicémico).”
Em relação aos “senãos”, refere também que “a investigação tem sempre nuances, tem sempre uma verdade e o seu contrário. Há ecos de uma investigação norte-americana que apontava para maior incidência neoplásica. Mas é diferente dizer ‘isto aconteceu ao mesmo tempo que isto’ ou dizer ‘isto provoca cancro’”. Essa relação directa de causa-efeito é mais difícil de estabelecer, até pelas imensas variáveis que entram em jogo quando se fala de alimentação.
Lacticínios a mais fazem mal, tal como qualquer outro alimento em excesso, adianta.
O que parece uma evidência é que, à medida que o tempo vai passando, tendemos a tornar-nos mais intolerantes à lactose, um hidrato de carbono composto por dois açúcares, glicose e galactose — que para serem separados e digeridos precisam de uma enzima chamada “lactase”. “É uma enzima indutível, ou seja, é produzida em função da necessidade”, afirma Camolas. “Os adultos que bebem leite continuam a produzir lactase... Mas, com o envelhecimento, os processos metabólicos transformam-se e há mais intolerância à lactose, [tal como] às gorduras, as digestões são mais prolongadas. Todo o aparelho gastro-intestinal fica menos funcional.”
Segundo a Sociedade Portuguesa de Gastroenterologia, cerca de um terço da população portuguesa sofre de intolerância à lactose (o que não é igual a alergia ao leite, que é uma reacção que envolve o sistema imunitário).
A percentagem é bastante maior noutros grupos demográficos. Em 1965, um estudo da Johns Hopkins University concluía que quase três quartos da população negra americana não digeria a lactose, contra 15% da população branca. A intolerância à lactose é um traço da maioria da população mundial, sobretudo africana e asiática.
Em Julho de 2013, o artigo da Nature “Arqueologia: a revolução do leite” explicava como, há 11 mil anos, quando a agricultura começou a substituir a caça, as populações do Médio Oriente aprenderam a reduzir a lactose — que não conseguiam digerir por falta de lactase — fermentando o leite para fazer queijo e iogurte. Dois mil e quinhentos anos depois, uma mutação genética ocorreu na Europa, mais precisamente na zona da Hungria, dando à população a capacidade de produzir lactase durante toda a vida. “Essa adaptação abria uma nova fonte nutricional que conseguia sustentar as comunidades quando não havia colheitas.” Uma grande parte da população europeia descenderá desses primeiros agricultores que insistiam em continuar a produzir lactase na idade adulta.
E é isso que explica que muitos caucasianos sejam a excepção a este número: 65% da população mundial não produz lactase depois dos sete, oito anos. A capacidade de o fazer perde-se à medida que se cresce.
Pedro Graça afirma que em Portugal há “entre 1/3 e 77% da população com algum tipo de intolerância, que pode quase não se notar, e por vezes até podemos viver com ela”. Graça Cabral contesta e afirma que, mesmo não se manifestando, os efeitos serão nocivos a longo prazo. A razão por se achar que há agora mais pessoas intolerantes à lactose é o facto de “termos uma população cada vez mais envelhecida”, adianta Pedro Graça. “Aqueles que não são intolerantes aproveitem ao máximo as vantagens que o leite traz.”
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